Não seria possível começar esse texto sem falar de Monteiro Lobato. Toda criança brasileira deveria começar por ele. Comigo foi assim: toda noite uma parte da história, a voz era da minha mãe. Ora contando sobre o casamento da Narizinho com o Príncipe peixe, ora o da Emília com o Marquês de Rabicó. Muitos casamentos… A voz de minha mãe foi substituída pelas muitas que eu imaginava em minha cabeça, quando pude ler sozinha (minha voz favorita era a da Dona Benta, muito semelhante à da minha vó). Junto com o Sítio vieram muitos livros infantis, daqueles que a gente devora em poucos minutos, e depois relê, relê, relê. Não podia faltar também a Turma da Mônica: Cebolinha e a dentuça sempre em guerra! (Ops, eles se casaram também!).

Com o tempo as leituras evoluíram, embora eu não tenha abandonado os livros infantis e Histórias em Quadrinhos até hoje e acho que nunca o farei.

Naturalmente, vieram os livros mais longos e maduros. Lembro-me de por volta dos treze anos ter uma febre de Sidney Sheldon. A febre passou quando no décimo livro li a mesma expressão pela décima primeira vez. Resolvi que era hora de seguir em frente. Quase sem querer me deparei com o maior dilema da Literatura Brasileira: Capitu traiu Bentinho? Claro que não. Claro que sim! Se bem que… (Será que ainda vão descobrir um testamento secreto do Machado revelando esse segredo, para dar fim a tanta angústia?). Mas a essa altura já não havia retorno, precisava de muitas horas de Rua do Ouvidor e assistir Othelo muitas vezes, nas noites quentes do Rio de Janeiro. Mancebos, ourives e rapés eram palavras do meu dia-a-dia. Em seguida, procurei outros amigos: José de Alencar, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, mais tarde um muito jovem Álvares de Azevedo (poderia haver Taverna mais assustadora ou mais sedutora?).

O Brasil era fascinante, mas também os outros países, outros mundos, outros tempos!

Sim. Era preciso visitar a Terra Média de Tolkien para ver os elfos; aventurar-se por Nárnia e aprender o valor da humildade; pegar o trem para Hogwarts e fazer magia, amar e voar (!); enfrentar os longos anos na ilha de Elba; percorrer a Paris de intrigas de Richelieu; viver aquele Admirável Mundo Novo, onde a poesia e o amor eram errados e ultrapassados; almejar grandes feitos como escudeiro do mais importante cavaleiro, no maior romance de cavalaria que já existiu; viajar pelo espaço em uma Odisseia ou simplesmente navegar no Mississipi com os inesquecíveis Tom Sawyer e Huck Finn…

Recentemente também descobri outras terras, como todos os treze distritos de Panem (e a Capital!), Woodbury com seu Governador cruel (esse pude conhecer por livros e Histórias em Quadrinhos, impressionante como as histórias se reinventam!) e claro, Winterfell, A Muralha e Porto Real, a imunda e perigosa capital dos Sete Reinos.

Descobri também algumas transformações: Mr. Hyde que se tornava Dr. Jekyll e vice-versa ou um trabalhador comum transformado em um enorme inseto! Porém, as transformações mais significativas foram aquelas que ocorreram em mim mesma, e que acredito possam ocorrer em todos que se deixam levar pelo mundo da leitura.

Uma de minhas experiências mais importantes se deu quando eu tinha quinze ou dezesseis anos. Encontrei na Biblioteca Pública que frequentava uma edição de Os Miseráveis, era luxuosa, encadernada em vermelho e eu logo resolvi levá-la para casa. No entanto não me foi permitido – era muito preciosa para que eu levasse, só sendo permitida a leitura local. Passei por um breve momento de decepção, mas logo me recompus, afinal, se Victor Hugo levara dezesseis anos para concluir sua obra prima, não seria injusto investir tempo equivalente na sua leitura, se preciso fosse!

Sentei-me à mesa mais próxima e comecei a ler… Esse ritual se repetiu por muitas semanas, sempre na segunda-feira, lá estava eu. Não podia, entretanto, voltar de mãos vazias. Decidi então conhecer Santa Fé e seu famoso Sobrado. Com isso embarquei em duas leituras estonteantes, em paralelo. Ora estava em lágrimas pelo pobre homem condenado por roubar um pão, ora chorava pelo destino de Pedro Missioneiro! Pouco depois, me fascinava pelos ideais iluministas que Victor Hugo ensinava e absorvia cada gota de História do Rio Grande do Sul, com o Erico. Depois de finalizar o primeiro volume de Os Miseráveis, não sei se por pena, confiança ou se farta de me enxergar lá toda semana, a responsável pela biblioteca me deixou levar o segundo volume para casa! Meu sentimento foi de puro orgulho e realização! Eu havia conquistado o direito de ler! Contudo, não abandonei a família Cambará, jamais poderia: li todos os volumes. Creio que nunca tive ou terei experiências de leitura mais revolucionárias.

Uma das consequências foi a escolha de minha profissão: Bibliotecária. Isso aconteceu por mais de um motivo. A paixão pelos livros foi um deles, obviamente, mas também o processo (quase bélico) que passei para ler aquele livro! Se por um lado estar no ambiente da biblioteca me fez pensar que ali era meu lugar, por outro lado havia aquela sensação estranha de frustração. Por um tempo não entendi, afinal eu tinha conseguido ler o livro e fora uma das poucas pessoas a conquistar o direito de leva-lo para casa, emprestado, com assinatura na ficha de empréstimo e tudo. Devia me orgulhar, foi um privilégio. Mas com o tempo esse privilégio se tornou amargo. Por que somente alguém que luta tem direito de ler? Por que somente alguém que não se deixa vencer ao primeiro “não” tem acesso a uma obra prima mundial? Seria o livro mais importante que o leitor?

Questionei tudo isso a mim mesma e a conclusão que cheguei foi que a leitura deve ser acessível a todos, sem restrições ou discriminação. Um leitor insistente não deve ter mais acesso que o leitor tímido. Pelo contrário, é essencial contribuir para que o tímido se torne o desenvolto, para então se tornar o apaixonado! Isso motivou minha escolha profissional e em minha trajetória até hoje, não me arrependi em nenhum momento.

Os livros e a leitura são parte de minha história. Precisam ser parte da história de todos.

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