O livro “Democratizar a participação cultural” (Dobradura Editorial, 2017), de Julio Mendonça, foi lançado no dia 19 de abril, na sede da Ação Educativa, em São Paulo. Como disse Hamilton Faria (poeta, diretor do Instituto Pólis e prefacista do livro) em sua fala, é possível que não estejamos vivendo uma época de mudança, mas uma mudança de época. Em tempos de instabilidade política, seja em âmbito internacional ou nacional, é fundamental que nos questionemos sobre as formas de participação social que a sociedade atual dispõe.

A participação na cultura, a possibilidade de envolver-se ativamente na produção simbólica da sociedade é uma forma de tomar parte politicamente e um aspecto crucial deste questionamento. É neste sentido que, inserido em uma área de ainda escassa reflexão teórica no Brasil, o livro de Julio Mendonça é muito bem vindo.

Embora na Introdução o autor assinale por tema central a “participação cultural como desafio das políticas públicas de cultura” (14), o alcance do livro é muito mais amplo e desde o início são pautados não somente encaminhamentos pragmáticos a respeito da participação cultura. Antes, o autor parte das premissas da participação, da possibilidade de formação de uma cultura e da vida em sociedade, afirmando que cada indivíduo assume compromissos, isto é, toma parte de direitos e deveres em relação à sociedade e à humanidade (ainda que à revelia e que não possua consciência disto); nosso sentido de pertencimento e identidade é que nos motivaria a fazê-lo de forma consciente.

Esta participação voluntária e consciente, observa Julio Mendonça, requer conhecimento dos termos estabelecidos, mas também é o que possibilita o questionamento dos próprios termos, numa tentativa de resistência de redução da cultura aos investimentos determinados exclusivamente pelo Estado ou que se torne um grande campo de circulação de mercadorias culturais, como querem os setores privados da comunicação de massas.

O livro é divido em três grandes seções: Valores, Contexto e Práticas. Em cada uma, busca-se realizar uma discussão abrangente sobre o tema: desde uma revisão bibliográfica até a discussão de bases conceituais para uma reflexão sobre a participação cultural, de uma retrospectiva, passando pela institucionalização da participação social em políticas culturais no Brasil e pelo choque da efervescência cultural dos anos 60 com o projeto repressor da ditadura militar, o autor chega até incursões atuais, como a mediação da participação cultural exercida pelos meios de comunicação de massa na percepção da cultura e as tentativas de deslocar a hegemonia da cultura de um eixo eurocêntrico e a afirmação da diversidade cultural e de saberes e vivências não-institucionalizados.

Mendonça pondera, ainda, sobre suas experiências de trabalho na prefeitura de São Bernardo do Campo (onde organizou o emblemático ABC Rap – Coletânea de poesia rap) e outras iniciativas de caráter prático.

Em Valores há o esclarecimento do conceito de participação. O autor conduz a discussão teórica sobre o conceito baseado em autores como Stuart Hall, Mike Featherstone, Bernardo Kliksberg e a Escola de Frankfurt, buscando entender questões como a necessidade da participação na cultura, qual a relação desta com o desenvolvimento (não somente econômico, mas da qualidade de vida dos indivíduos e o desdobramento disto na sociedade) e como se organiza esta participação.

Ao dissertar sobre a tarefa de promoção da participação ativa da sociedade em seus meios de cultura e a implementação de políticas públicas que são neste sentido, o texto aponta os impasses da atuação do Estado, pouco afeito a este tipo de gestão: em vez de controle, autoridade e legitimidade, a participação lida com a ambiguidade de objetivos, informação escassa. Há ainda problemas de coordenação intergovernamental, recursos limitados como fatores que tornam a tarefa mais árdua.

O autor faz uma retrospectiva da institucionalização da participação social como pauta das políticas públicas do Estado, tornando possível a compreensão do nascimento das formas de comunicação em massa no Brasil e seu papel como indústria cultural, determinante, sobretudo, em momentos de fragilidade política (como o regime militar e, arriscaríamos dizer, o momento atual da nossa política). Se, por um lado, os veículos de comunicação em massa surgem como forma de integração nacional, por outro há o apoderamento da diversidade cultural pela indústria cultural e o aplainamento de suas diferenças.

Especificamente sobre a época do regime militar (que coincide com o estabelecimento definitivo da indústria cultural no país), o crescimento da consciência de um papel político econômico e cultural dos meios de comunicação de massa tem por resposta, com o endurecimento do regime (seu ápice sendo o AI-5), o crescimento da influência da televisão e da cultura de entretenimento acompanhado de um processo de despolitização.

Lembrando que a televisão é um meio de participação passiva, onde o espectador não toma parte nas decisões do que será veiculado nem no processo de fabricação, e que seu estabelecimento no Brasil representava a chegada da indústria cultural brasileira a um nível internacional, Julio Mendonça afirma: “a população brasileira experimentava, sob ditadura, um novo patamar da dificuldade de participação política – e a participação cultural também é uma forma de participação política” (41).

Se, conforme o livro sustenta, a participação política e cultural ativa não é uma característica inata do indivíduo, mas, pelo contrário, necessita ser aprendida e estimulada, também a apatia em relação à política e a cultura é uma construção social pautada pelos detentores da produção de informação, no sentido de atender aos interesses de uma determinada classe.

A segunda seção, Contextos, é uma exposição que busca mostrar isto através da análise de dois episódios do primeiro mandato do governo Lula: o projeto de regulamentação dos meios de comunicação e o referendo a respeito da proibição da venda de armas no país. Em 14 páginas, Mendonça mostra como o papel da mídia foi determinante na recepção e leitura dos acontecimentos pela sociedade.

No primeiro caso, o livro apresenta e pondera entre argumentos que mostram não existir consenso entre os pesquisadores a respeito do impacto dos veículos de comunicação de massa. No entanto, baseado em teóricos de peso, como o filósofo Jürgen Habermas, Mendonça se mostra capaz de esclarecer sua tese: independentemente de chegarmos à conclusão da influência ou da não-influência da mídia sobre a opinião que cada indivíduo tem de um determinado assunto, a narrativa construída pelos veículos de comunicação não é isenta, e seus interesses tornam-se explícitos na própria maneira como fabrica e difunde a informação.

Práticas (a maior seção do livro) aparece como contraparte à reflexão teórica desenvolvida nas duas primeiras seções. O nome dispensa explicações: a seção reúne reflexões sobre propostas e experiências de âmbito local (São Bernardo do Campo, onde Julio Mendonça atuou como diretor do Departamento de Ações Culturais) e internacional (há uma subseção dedicada às experiências de planificação cultural em outros países). A urgência de uma reflexão sobre a participação fica clara já no primeiro parágrafo: “A participação ativa é uma condição fundamental para a democracia. É ela que concretiza o exercício democrático […] a participação social e política ativa constrói as garantias informais […] que podem assegurar a democracia” (69).

O autor apresenta neste capítulo as dificuldades na definição dos temas de relevância nacional e observa que quanto mais numerosa for a população de uma cidade, menores as chances de representação adequada da diversidade cultural ali existente. Ele elenca e comenta o que entende por “características gerais do aprendizado da participação” (72), isto é, as condições em que se dá o aprendizado da participação ativa no Brasil e seus percalços: interdisciplinaridade, pesquisa pouco sistematizada sobre o tema, educação não formal e não convencional como núcleo de desenvolvimento desta participação. Levando em conta o reconhecimento destas condições, Mendonça parte para o estabelecimento de uma metodologia e de técnicas de estímulo à participação.

Retomando o viés histórico, esta última seção recupera o Plano Nacional de Cultural, elaborado pelo governo Lula em 2010, entendendo-o como uma guinada na compreensão e gestão da cultura pelo Estado. A partir do PNC, a prefeitura de São Bernardo do Campo realizou a 1ª Conferência Municipal de Cultura, encaminhando propostas para a integração entre diversos setores da sociedade em torno da participação social. Para pensar esta integração, Mendonça faz uma reflexão sobre o conceito de planificação cultural, em sua definição, “uma visão ampla das formas e estruturas da vivência cotidiana, do trabalho, do comércio, do entretenimento como recursos para pensar estrategicamente ações integradas dentro do setor público e envolvendo o setor privado para estimular o desenvolvimento da economia criativa, da melhor apropriação do espaço urbano e da integração social” (86).

Se tratando de um livro voltado para o exame do planejamento de ações de políticas públicas, embora o autor traga discussões de amplo espectro, a temática sempre retorna. Neste sentido, a continuidade do debate da planificação cultural discute os limites da democracia representativa e os direitos culturais garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, para novamente reforçar a tese que percorre todo o livro: “Para ter seus direitos respeitados, inclusive o de ter respeitada sua identidade cultural e seu direito de fazer escolhas, as pessoas devem poder participar de modo consciente e autônomo” (91).

Mendonça consegue, desta forma, contribuir com o que considera uma tarefa do Estado brasileiro – e, eu gostaria de acrescentar, da sociedade como um todo: “construir novos instrumentos e, principalmente, a experimentar novos processos e métodos” na busca de uma participação social efetiva e consciente. “Democratizar a participação cultural” é, assim, um livro que toca questões fundamentais e se relaciona com o tempo presente, fornecendo material para a transformação social que precisamos.

Título: Democratizar a participação cultural

Autor: Julio Mendonça

Editora: Dobradura Editorial

Ano: 2017

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