Por Cacique Pedro Mirim e Rodrigo Gabriel

Com acervo guarani e atividades de leitura mediada, espaço serviu de suporte de saúde e educação durante a pandemia e tem contribuído para a preservação da cultura local.

PARATY/RJ – Bibliotecas são um mar de conhecimento e podem mudar vidas. No caso da Biblioteca Comunitária Itaxĩ-Mirim essa missão é ainda maior. Primeira biblioteca indígena do estado do Rio de Janeiro, o espaço contribui para fortalecer a cultura e a história do povo Guarani Mbya – contando e ensinando a crianças e jovens sobre as tradições, a arte e a língua de seus ancestrais.

Neste artigo exclusivo para a Biblioo, os indígenas Pedro Mirim, de 54 anos, cacique da comunidade, e Rodrigo Gabriel, de 22 anos, atual gerente da biblioteca, contam um pouco da trajetória e da rotina do espaço, localizado na Aldeia Guarani Mbya Itaxĩ-Mirim, em Paraty, região da Costa Verde Fluminense. Uma biblioteca que durante os dois últimos anos foi muito mais que o lugar dos livros e da leitura. Abrigou uma estrutura de atendimento de saúde e vacinação, manteve suas atividades e  este mês, finalmente, irá retomar seu funcionamento pleno.

Biblioteca como ferramenta cultural

Há 500 anos, cerca de mil línguas eram faladas pelos indígenas no Brasil. Hoje restam apenas 274 – uma redução de 75%, segundo dados do IBGE. A manutenção da língua é apenas um dos desafios que nós, povos originários, enfrentamos para manter vivos nossa cultura, hábitos e valores. Com o passar dos séculos, além da tradição oral que marca as populações indígenas, a escrita e as imagens registradas nos livros também passaram a fazer parte e, hoje, são importantes na conservação da nossa história.

Inaugurada em 2019, a Biblioteca Itaxĩ, como costumamos chamá-la, é a primeira biblioteca comunitária indígena do estado do Rio de Janeiro, resultado do desejo e esforço de nossa comunidade e de nosso saudoso Cacique Miguel, que nos deixou em maio de 2021, com 120 anos de idade. Uma realização coletiva junto a outras parcerias que, assim como Miguel, deixará um legado para as futuras gerações Guarani Mbya.

Biblioteca Comunitária Itaxĩ-Mirim. Crédito: Adilson Tupã

Um dos parceiros nessa jornada foi o Instituto Colibri[1], que auxilia no gerenciamento e manutenção da biblioteca junto a nós, moradores locais. A Itaxĩ também integra a Rede Mar de Leitores[2], de Paraty, junto a outras seis bibliotecas da região. Além disso, faz parte da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias[3] e, desde 2018, tem o apoio do Itaú Social[4].

Outra parceria fundamental vem da Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi através do Etno – Etnodesenvolvimento e Economia Solidária em Territórios Indígenas[5], ação de extensão coordenada por Sandro Xucuru, também indígena e servidor da universidade, que desenvolvemos o projeto técnico de nossa biblioteca – um trabalho interdisciplinar respeitoso à diversidade cultural e ao meio ambiente, em prol do desenvolvimento social e dos direitos das populações indígenas.

A rotina da biblioteca

Hoje nossa comunidade é habitada por cerca de 200 pessoas distribuídas em 57 famílias. Construída em seis meses e localizada no centro da aldeia, a biblioteca está aberta de segunda a quinta e recebe uma média de 30 pessoas por dia, a grande maioria formada pelo público infantil.

A mediação é a principal atividade na programação atual e acontece às segundas e quartas, de manhã e à tarde. Por lá, chegam crianças de sete a 11 anos e também adolescentes de 12 a 16. Cada sessão reúne umas 15 pessoas. Todos gostam muito de escutar e conhecer as histórias dos livros, contadas pelos colaboradores.

Crianças e jovens guarani reunidos em atividade na área externa da biblioteca. Crédito: Rodrigo Gabriel

A maioria ainda não é alfabetizada, mas compreende bem o português e também o guarani, utilizado na maior parte do tempo durante a mediação. Os mais velhos, vez ou outra, vão até lá para fazer suas próprias leituras e gostam de ler tanto em português como em guarani.

Entre telas e livros

Apesar de nosso esforço, é um grande desafio atrair o interesse de nossos jovens para a cultura indígena e para a história do nosso povo. A visão do juruás (não indígena, estrangeiro, homem branco) acaba entrando, e isso não acontece só entre nós, Guarani, mas também com nossos parentes[1] de outras etnias no Brasil inteiro. Nossa juventude parece estar mais interessada na sabedoria dos juruá, no Facebook, nos videogames e na TV, e isso, por vezes, dificulta a preservação de nossa tradição e nossa memória.

Entre as tecnologias, o celular é o que mais retém a atenção das crianças e adolescentes. Uma ferramenta que pode fazer mal se não há sabedoria para usar, mas que ajuda bastante se a gente sabe ter bom uso. Já foi a época de pensar que os indígenas não gostam ou não utilizam tecnologia. Pelo contrário: ela tem sido importante em nossas lutas e articulações. Não é à toa que, desde 2020, a biblioteca disponibiliza computadores com acesso à internet, que costumam ser mais utilizados pelos moradores que trabalham fora da comunidade, ajudando-os a realizar tarefas e facilitando sua vida.

Por outro lado, não devemos desprezar o valor de uma tecnologia como a biblioteca. Ao oferecer registros de nossa história, de nosso passado, com livros em guarani, sobre nossa gente e também sobre outros povos originários, a Itaxĩ cumpre um papel muito importante: cria consciência e valor tanto no presente quanto para as futuras gerações indígenas. Podemos sentir isso junto aos mais novos.

Buscamos formar pessoas de caráter, capazes de dialogar com a realidade atual, com os juruás, mas também capazes de reconhecer seus deveres e exigir seus direitos como indígenas – seja em relação a seu território, sua língua, sua educação, sua saúde ou seu direito de ser quem é.

Educação e formação

A biblioteca é também um espaço de formação para os próprios colaboradores, que têm acesso constante às leituras, e a possibilidade de ensinar aos mais novos. Eu, Rodrigo, sou o atual coordenador da biblioteca. Atualmente com 22 anos, cheguei à Itaxĩ-Mirim em 2016 vindo da Jaraguá Tekoa[2] Pyau, aldeia que fica no Pico do Jaraguá, em Pirituba, zona oeste de São Paulo. De lá para cá, me casei e nunca mais saí daqui.

Sempre gostei de ler e, logo nos primeiros meses, me interessei pelo funcionamento da biblioteca. Comecei a frequentá-la e, aos poucos, fui aprendendo, até que em 2021 fui convidado para ser coordenador. Lá, eu atuo junto às bibliotecárias Prisciana Jaxuka Benite e Marcilene Rodrigues, e os oficineiros Juci Para Benite, Alminda da Silva e Joaquim Benite, todos indígenas, que contribuem na condução das atividades.

Não completei o ensino médio e tenho o sonho de me tornar professor da educação básica. Meu desejo é ensinar para crianças da comunidade. De certa forma, é o que tenho feito estando na biblioteca. Isso porque, além das mediações, acolhemos muitas crianças que ainda não têm idade para ir à escola. Aproveito os intervalos entre as oficinas para ensinar aos pequenos a escreverem seus próprios nomes, mesmo aqueles que ainda não estão na fase de alfabetização.

Quero poder dar a eles o que tive na minha comunidade, em São Paulo: uma educação de qualidade, que permita que se interessem pelo saber. As leituras ajudam muito nisso, fazem eles quererem entender o guarani, as histórias de nosso povo e também a dos outros povos.

Acervo

Atualmente, o acervo da biblioteca conta com cerca de mil exemplares, sendo mais de 10% das obras em guarani. Mas há também livros em português – com prioridade para autores indígenas, quilombolas e negros – e ainda uma parte do acervo de obras de escritores brancos e da literatura clássica brasileira. Entre os livros de destaque estão “O Presente de Jaxy Jaterê”, de Olívio Jekupe e texto em guarani de Werá Jeguaka Mirim; “Pyxaĩ”, de Xeramõi José Fernandes e “O Descobrimento do Brasil”, com roteiro de Juliana Dalla, que reconta a história da invasão dos colonizadores ao Brasil. Em breve, receberemos mais livros em guarani.

É interessante perceber como a biblioteca se tornou também um espaço de socialização da nossa comunidade. Semanalmente, jovens e adultos se reúnem em sua área externa. Os mais velhos, para fazer oficinas de artesanato, como cestaria, escultura e miçanga. Os mais jovens, para conversar.

Pandemia

Tivemos muitas dificuldades durante a pandemia. Em alguns momentos, principalmente no início, os colaboradores não podiam estar junto com as crianças em razão do isolamento. A escola da aldeia, por exemplo, ficou fechada e sem aulas durante dois anos. Apesar de algumas interrupções, procuramos deixar a biblioteca aberta.

A medida foi importante para manter alguns de nossos pequenos mais ativos. Nos períodos de queda do número de casos, realizamos oficinas com número reduzido de crianças, utilizando máscaras e seguindo todos os protocolos sanitários. Foram diversas atividades educativas, culturais e lúdicas, como oficinas de artesanato, cestaria, pinturas e leituras mediadas.

Além de suporte à educação, a Biblioteca Itaxĩ também teve importante função para a saúde dos moradores da aldeia durante a pandemia.

No início deste ano, o posto de saúde da aldeia foi interditado pela Defesa Civil. Tinha problemas estruturais e não poderia mais ser usado. Sem outro local possível para adaptar a estrutura de saúde, decidimos coletivamente que a melhor solução seria utilizar o espaço da biblioteca, facilitando o atendimento e a vacinação da comunidade, que se não fosse assim, teria que se deslocar por 15 km até o centro de Paraty, onde está localizada o posto de saúde mais próximo.

Durante três meses, utilizamos, então, uma parte da biblioteca para consultas, realização de exames e atendimentos médicos de forma geral. Mesmo nesse tempo, a biblioteca continuou funcionando e aberta à comunidade. Mas a instalação de uma estrutura de saúde atrapalhou muito o fluxo de crianças, que deixaram de frequentar o espaço pelo medo das agulhas e injeções que costumam marcar o imaginário infantil.

Uma nova fase

Este mês, a Biblioteca Itaxĩ  – durante castigada pelas chuvas que atingiram a Costa Verde em abril – está sendo pintada e reformada. A estrutura de saúde já foi retirada, e nosso espaço vai voltar a ser ocupado por livros, crianças e histórias. Quase dois anos e meio depois, seu pleno funcionamento será possível. Nós temos perspectivas positivas e animadoras, e gostaríamos de reforçar que nosso espaço está aberto para receber visitas, bem como doações.

Os apoios por meio de novos títulos, materiais e recursos financeiros são bem-vindos para ajudar a manter e, quem sabe, ampliar as ações de nosso espaço. Para doar, veja canais abaixo ou acesse: https://rnbc.org.br/a-rnbc/#doe

Saiba mais sobre a Biblioteca Itaxĩ-Mirim

[1] Termo utilizado pelos povos indígenas para fazer referência a indígenas, sejam eles de uma mesma etnia ou de outra.

[2] Aldeia Guarani, em guarani.

[1] Conheça o Instituto Colibri: https://colibri.org.br/

[2] Conheça a Rede Mar de Leitores, de Paraty: https://rnbc.org.br/redes/mar-de-leitores/

[3] Conheça a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias: https://rnbc.org.br/redes-e-bibliotecas/

[4] Conheça o Itaú Social: https://www.itausocial.org.br/

[5] Conheça o projeto de extensão Etno/UFRJ: https://nides.ufrj.br/index.php/projetos-soltec/etno

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