Lendo a nova edição de “Casa de Alvenaria”, de Carolina Maria de Jesus, editada pela Companhia das Letras, me vi em 2021. Explico-me! O livro foi escrito em 1960, mas ao lê-lo você se sente em 2021, menos o vírus, porque Carolina não o previu, mas previu a continuidade do aumento do custo de vida.
Vemos o nosso retrato em 2021 no livro de 1960 porque vemos uma manutenção das mesmas estruturas. Carolina é uma denunciante da continuidade da pobreza. Ela não é somente uma testemunha dos acontecimentos, ela era uma denunciante dos fatos.
Com estratégia literária, ela adentrou o campo inimigo e começou a apresentar a pobreza da elite paulista. Ela denunciava o racismo com um estilo que nos faz questionar se era uma insensatez ou uma crítica. Ela era estratégica, ela colocava peças de xadrez incontestáveis. Ela lia os jornais, colecionava fatos, ouvia e registrava. Se tornou controle social antes mesmo da constituição de 1988. Se tornou a voz do povo, o TV Fama da política.
Ela escrevia, aparecia na TV e nos jornais. Tudo que ela fazia era fotografado, televisionado. Quando lemos os seus diários, ficamos nos indagando se era possível viver tudo isso, conhecer esse tanto de gente, ela estava lá mesmo ou estou lendo a história do Forrest Gump. Será que não foi Carolina a inspiração para uma história que ninguém nega e todo mundo acredita?
Ela era muito real. Ao ler os diários da Carolina, você se sente mergulhado em um reality show. É como se fosse o Espiadinha no Telegram, que passa o resumo dos realitys. A gente se sente apresentando o resumo do reality. Talvez tenha sido dela que se inspiraram para fazer séries e realitys, ela foi um sucesso, quem sabe até o Orwey daria os créditos para ela com a inspiração de uma vida vigiada.
Carolina parece com muitos hoje que confiam no Lula, como ela confiava no Adhemar. Parece com muitos que contestam a política, os preços, o preconceito. Carolina parece muito comigo e com as mulheres pretas que saíram das favelas. Ela parece muito com Marielle, aquela que desafia o poder e o denuncia. Como não lembrar de Marielle quando Carolina diz que os favelados lhe jogaram pedra e os burgueses podem lhe dar um tiro?
Eu olho para Carolina e lembro de mim. Transitando em lugares que nunca me imaginei estar, que eu devia fingir costume, que devia enfatizar meu currículo e justificar a todo momento o motivo deu estar ali. Carolina no seu tempo se identificava como escritora, ao passo que eu a todo tempo tenho que falar que sou bibliotecária, especialista, mestra e o lattes todo.
Como não lembrar das manas pretas que vão fazer atividades em escolas, presídios, que estão no corre no mês da consciência negra para falar algo de positivo que emancipe nosso povo e não ganha nem pra passagem? Eu lembro dela. Ela ficando no hotel serrador no Rio de Janeiro e indo de ônibus de mala e três filhos. Dormindo na rodoviária porque ela foi autografar os livros e não a levaram de carro. Que almoça com os Matarazzo e depois vai dormir numa casa de fundo.
As traduções do dinheiro para a moeda de hoje nos rodapé nos dão uma dimensão assustadora do que pode ter sido a relação com o dinheiro e as vendas de livros. Ela anotava para que a gente visse o absurdo, ela denunciava o pouco que recebia, ela denunciava o cinismo de quem dizia que ela estava rica.
A empregada branca que tem nojo dela parece um personagem. Ela denuncia até o black face. Que mulher genial. A gente fica imaginando e não sabe se é real ou se é verdade. Até o romance com o St. Clayr a gente fica imaginando, ela o beijando com a dentadura nova dela.
Carolina é muito hoje, é muito agora porque as condições dos brasileiros não mudaram. E olha que passamos por coisa pior que hoje, mas agora retroagimos tanto. Não foi o vírus, a gente sabe.
Como não ler Carolina falar da Light e da exploração do capital externo e não pensar na privatização da Caixa Econômica, da Eletrobras e dos Correios ? Carolina é hoje!
Eu não tenho lugar de fala como mãe, mas penso que Carolina tem uma linguagem muito verdadeira com a maternidade. Ela fala do cansaso, dos desafios, dos medos, ela lembra os medos que minha mãe tinha. Minha mãe não era o estereótipo da maternidade, ela me permitiu conhecer a sua humanidade e permitiu que eu a amasse ou a odiasse pelo o que ela era realmente. E esse pra mim é o espírito das mães pretas que são verdadeiras, amam e odeiam com vontade, ensinam seus filhos a reagir e a se defender, lutam para que seus filhos as superem, os defendem. É a vibe de Dona Gisele, mãe do Negão da BL. É a vibe de Carolina. Antes mesmo da maternidade real ser monetizada ela já falava disso.
Carolina era influencer. Lembrei da Camila Loures na hora que ela fala que não gostou da comida chinesa, mas comeu por conta da publicidade. O que ela apresentava vendia, era sucesso. Quem seria tão influencer como Carolina que ia na favela falar para os favelados estudarem para serem ricos. Acho que Carolina estaria sempre no Luciano Huck, no Faro e no falecido Gugu. Seria um show como a Grávida de Taubate. Se estivesse viva hoje ela seria a nossa Gretchen. Um ícone que todos reconhecemos e criamos um carinho como um símbolo nacional.
O Brasil precisa conhecer Carolina e ver que ela é muito mais que uma garotinha escrevendo diários. A quiseram reduzi-la à escritora de diários porque fingiam não entender a força da sua escrita. Mas ela era esperta e sacou que o sucesso do seu livro entre os políticos era porque ele desmentia o mito de São Paulo ser a terra das oportunidades, eles queriam evitar a migração para São Paulo. Eles queriam superar a fome evitando a entrada de mais pobres. Ela sacou e denunciou no livro. Me lembrou minha amiga capoeirista Suellen. Foi uma jogada de mestra.
Recomendo a leitura da obra de Carolina e que vocês conheçam a filha de Carolina, a professora Vera Eunice de Jesus. Vejam os vídeos dela, a convidem para falar de Carolina, vamos aprender juntos de Vera e Carolina.