“Señores pasajeros, bienvenidos a Habana.” O tom monocórdico da comissária panamenha contrastava com o tilintar nervoso dos meus dedos. A excitação já era balzaquiana. É que cresci ouvindo o meu pai descrevendo Cuba como o único lugar do planeta em que filho de pobre tem direito a pão e escola. Sempre desqualifiquei a fala desabonadora da minha irmã mais velha, que havia passado uma temporada na ilha. Bolchevique, eu? De camarada nunca tive nada, companheiro. Embora seu Cristovão exagerasse na dose das metáforas edênicas, sempre me pareceu confortável acreditar na existência de algum canto em nosso mundo de merda onde crianças e velhos fossem tratados com dignidade.
O avião solavancou. Recordei-me do insulto bilioso propagado nos últimos tempos: “Vai pra Cuba!” E lá estava eu, no aeroporto de paredes rubras, apreensivamente feliz. Debaixo do braço, a entrevista de Jorge Amado[1]: “Nunca houve socialismo, nem democracia.” Desembarquei com a fé de um gato escaldado. Era preciso confrontar as imagens e, quem sabe, criar uma própria. A incumbência era tripla: namorar – tinha me casado dias antes, na festa do glorioso São Sebastião –, receber o Prêmio Casa de las Américas e visitar, na qualidade de representante do Ministério da Cultura, a Biblioteca Nacional. Descobri, ao final da viagem, que nas terras de Fidel, amor, ficção e livros não se separam.
El Vedado. Duvido de que haja lugar mais charmoso para uma lua de mel. Na época de Fulgencio Batista, a região era tomada por cassinos, cabarés e restaurantes suntuosos frequentados por americanos endinheirados. Nem o bloqueio do Tio Sam conseguiu desfigurar a beleza do bairro. De modo geral, os palacetes e a frota de veículos antigos transformaram Havana em um museu a céu aberto. Babei com os Cadillacs nacarados se exibindo pelo Malecón. Era noite quando chegamos. O mar nos acenou bravio, glorioso como o amor. Drummond se fez presente: “O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar.”[2] Optamos por alugar um quarto na casa de cubanos, a modalidade de hospedagem mais típica do país. Fomos muito bem recebidos pelo casal de meia idade.
Espalhados pelo velho apartamento, livros. Muitos livros, espiralados e em brochura, quase todos impressos em papel ordinário. Literatura religiosa e profana dividiam, respeitosamente, o mesmo espaço: narrativas históricas da Ilha, saltérios e epistolários, biografias dos primeiros revolucionários, revistinhas devocionais do Sagrado Coração. Na parede, ao lado de Che, a foto de um Papa sorridente. Marta, a anfitriã, senhora de fala fácil e de olhos devoradores, transitava, desavergonhadamente, por entre as narrativas. Interrompia, sem piedade, a história da Virgem do Cobre para tecer comentários laudatórios a respeito do último relatório econômico do presidente Raul. O marido – sine nomine –, com um bouquin aberto sobre o colo e mãos postas no peito, assistia, admirado, o frenesi da esposa leitora. Recordei-me da Annunciazione, de Frei Angélico. Sorri, contidamente.
As livrarias, misto do antigo e do novo, pululam nas praças e avenidas da capital. Pudera. Desde a Revolução, o governo subvenciona a comercialização do livro, que continua a ser realizada em peso cubano, moeda utilizada pelos nativos para adquirir produtos básicos, como água, frutas, arroz e feijão. Além disso, tomou-se a decisão de se reduzir o número de títulos publicados, favorecendo a literatura nacional e, particularmente, a literatura infanto-juvenil. Essas medidas corajosas justificam, em parte, o porquê de Cuba ter sido o único país da América Latina e do Caribe a atingir as seis metas para a educação estabelecidas pela Unesco, dentre elas a escolarização de todas as suas crianças.[3]
O analfabetismo foi sucumbindo à medida que o nacionalismo fincava raízes. Nesse processo de formação nacional, a literatura exerceu um papel extraordinário. Afinal de contas, se toda nação nasce enquanto comunidade política imaginada [4], como ignorar o impacto da ficcionalidade discursiva nesse processo? De fato, a soberania de Cuba não foi assegurada pelo simples desbaratamento do inimigo yankee, mas no avizinhamento cultural dos hermanos que formariam a Nuestra América.[5] Num quadro político dramático – todos os governos latino-americanos, excetuando o México, romperam relações diplomáticas com Havana –, a Casa de las Américas evocava, em seu próprio nome, o espírito martiniano, recobrado pela Revolução, contemplando, ainda, a singularidade. Casa de muitas Américas. Palavras de Fidel: “A fundação, em 1959, da Casa de las Américas, contribuiu para impedir o isolamento cultural nos momentos mais difíceis do bloqueio.”[6]
Não faltou valentia da parte de escritores e artistas da envergadura de Julio Cortázar, Ángel Rama, Efraín Huerta, Victor Jara e Alejo Carpentier. Miro as paredes da Casa. Art déco. Na fachada, ranhuras do embargo. Lá dentro, a Árvore da Vida chamejava por entre as tetas da sereia latina. Coração miúdo. Não era pra menos. Jorge Amado, Lêdo Ivo e Nélida Piñon me precederam. Na língua de Machado, agradeci. Auditório lotado. Constatei diversidade. Latinidades. Nos cumprimentos, intelectuais e gente do povo. Saber revolucionário compartilhado. A Casa resistiu bravamente ao bacharelismo. Sua biblioteca, também. Situado em dois palacetes, o acervo, com mais de 270 mil documentos não é monopólio de iniciados. Adolescentes em idade escolar transitam por lá, compartilhando o espaço com pesquisadores.
Os cubanos querem mais: estão planejando construir uma grande torre. Projeto lindo e audacioso: a torre, revestida por uma lâmina perfurada que, sob a incidência da luz, exibirá os nomes dos principais intelectuais e artistas da América Latina. No interior, a memória bibliográfica de nuestras Américas. O Brasil terá espaço franqueado na Babel cubana. Pediram ajuda. Questão de justiça. Embora o interesse pelo nosso país não tenha diminuído, a coleção permanece praticamente a mesma. Ranhuras do bloqueio. Paulo Freire é sumidade, mas seu xará de sobrenome Coelho também. A Pedadogía estava lá[7]; A Bruxa de Portobello, não.[8] Frustração para os mais jovens. Saí de lá convencido da necessidade de se fazer algo. Embora tivesse ido a Cuba com o dinheiro do meu bolso, estava lá na qualidade de representante do Ministério da Cultura. Com o apoio do então ministro Roberto Freire, enviei para Havana uma pequena coleção de literatura e ciências sociais que será o germe de uma coleção brasilianista. Antes da ereção da torre, construímos uma ponte.
No dia seguinte ao recebimento do Prêmio, ratifiquei minha certeza: além de habilidosos com a palavra, os bibliotecários cubanos são excelentes técnicos. A Biblioteca Nacional José Martí é modelo no quesito “competência”. A gestão da produção bibliográfica nacional é levada a sério, fruto do respeito à Lei do Depósito Legal. Prova disso é que sua bibliografia nacional continua sendo publicada. Mais que isso: o ordenamento jurídico determina que a Biblioteca não se ocupe, apenas, daquilo que é publicado na ilha, mas se ocupe em recolher e disseminar todo e qualquer documento publicado no mundo. Presunção? “Por las venas de Cuba no corre sangre, sino fuego: melodioso fuego que derrite texturas y obstáculos, que impide la mesura.” [9] Já entre nós, a Fundação Biblioteca Nacional (FBN) deixou de editar a bibliografia em papel desde 1997, alegando estar ela acessível em seu catálogo online. Alguns defensores da medida, confundindo a troca de formatos (analógico versus eletrônico) com produtos (bibliografia versus catálogo online), alegaram ser essa a prática usual em todas as bibliotecas nacionais do mundo. Só esqueceram de combinar com os russos.
Outros, por ignorância, chegaram mesmo a proclamar a morte da bibliografia nacional, como se os dados catalográficos pudessem suprir o papel daquela. Lá em Cuba, os bibliotecários sabem distinguir, com precisão, uma bibliografia de um catálogo. Palmas pra eles! Ao término da visita oficial, tive que concordar com a fala recente de dois pesquisadores da Universidade de Brasília[10]: “A BN coopera com a invisibilidade do livro ao não exercer suas missões”, ao não “difundir os registros da memória bibliográfica e documental nacional”; ao atuar, em parte, como “centro referencial de informações bibliográficas”; ao não atuar “como órgão responsável pelo controle bibliográfico nacional”; ao não “assegurar o cumprimento da legislação relativa ao depósito legal”.
Além de cumprir com o seu dever legal de gerir o patrimônio bibliográfico, a Biblioteca Nacional de Cuba coordena uma poderosa rede de bibliotecas. Criado em 1963, o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) abarca 401 instituições. Tive a sorte de visitar algumas delas. A Rubén Martínez Villena funciona no coração da cidade velha, pertinho das muralhas de pedra. Deleite puro. É verdade que nem todas são tão amplas e bem equipadas. De todo modo, as feridas produzidas pelo bloqueio do Tio Sam não me impediram de ser fisgado, em cada bairro e esquina, por uma bibliotecazinha.
Em 2016, elas atenderam quase nove milhões de pessoas em um país com pouco mais de onze milhões de habitantes. De imediato, pus sob suspeita o relatório do Instituto de Museus e Serviços de Biblioteca, dos Estados Unidos, que associou a baixa frequência às bibliotecas públicas ao investimento orçamentário modesto. Resistindo à tentação de cair no lema “sin plata no hay nada”, os bibliotecários cubanos aprenderam a ler os sinais dos tempos. Isso fez com que passassem a planejar seus produtos e serviços de forma cooperada.
Cuba, céu ou inferno? Durante os vinte dias, resisti, bravamente, ao binarismo tupiniquim. Sequer visitei o Cemitério Santa Ifigenia, temendo que as cinzas do glorioso Fidel tomassem, revoltosamente, a minha retina. Apesar dos cuidados, não saí de todo ileso. É que, embora enfrentando dificuldades maiores que a nossa, as bibliotecas alcançaram um apelo social de dar inveja. Voltei para casa seguro de que a choradeira ensimesmada e a virulência arrogante são péssimas parceiras. O melhor é investir na resiliência e cooperação. Duvida? Vá pra Cuba.
[1] MORAES NETO, Geneton. Dossiê Moscou: um repórter brasileiro acompanha, em Moscou, o desfecho da mais fascinante reviravolta política do século XX: o dia em que começou a busca por uma nova utopia. São Paulo: Geração, 2004. p. 118.
[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. O mundo é grande. In:______. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 1278.
[3] UNESCO. Educação para as pessoas e o planeta: criar futuros sustentáveis para todos. Paris: UNESCO, 2016.
[4] Anderson, Benedict R. (1991). Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. 2 ed. London: Verso, 2006.
[5] MARTÍ, José. Nuestra América. Buenos Aires: Losada, 1939.
[6] Apud FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Treinta años de la Casa de las Américas. Estud. av., São Paulo, v. 3, n. 5, p. 69-75, abr. 1989, tradução nossa.
[7] FREIRE, Paulo. Pedagogía del oprimido. Montevideo: Tierra Nueva, 1968.
[8] COELHO, Paulo. A bruxa de Portobello. São Paulo: Planeta, 2006.
[9] CHAVIANO, Daína. El hombre, la hembra y el hambre. Barcelona: Planeta, 1970. p. 206.
[10] JUVÊNCIO, Carlos Henrique; RODRIGUES, Georgete Medleg. A Bibliografia Nacional Brasileira: histórico, reflexões e inflexões. InCID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 7, n. esp., p. 179, ago. 2016.