“A história não tolera o vazio (…) Quais são os projetos que vão substituir a fome, as pestes e a guerra no topo da agenda humana no século XXI? (…) Um projeto central consiste em proteger a humanidade e o planeta como um todo dos perigos inerentes ao nosso poder (…) O gênero humano atrasou-se no reconhecimento desse perigo, e até agora pouco fez para combatê-lo. A despeito de todos os discursos sobre poluição, ameaça global e mudança climática, a maioria dos países ainda terá de fazer sérios sacrifícios econômicos e políticos para melhorar a situação (…) No século XXI, teremos de fazer melhor do que isso se quisermos evitar a catástrofe” (Yuval Noah Harari, “Sapiens, uma breve história da humanidade”, pág. 77, 2012, L&PM). 

Penso que a ideia sobre o que a literatura pode promover em nós, Sapiens, dialoga com a ideia de conservação de ambientes naturais e ecologia humana. Paulo Groke, engenheiro florestal, meu amigo mentor nas trilhas dos ambientes naturais, companheiro e cúmplice de tantos trabalhos que colocamos em campo para assegurar vida digna e bonita para todas as vidas, disse:

Cada indivíduo ganha em vigor físico e espiritual quando conhece e estabelece relações com a vida. Isso decorre de experiências acumuladas e que, uma vez incorporadas ao nosso pensamento e atitudes, permitem o desenvolvimento de um modelo mais empático, que considere cada ser vivo como componente da mesma teia. A vida é o próprio exercício da inteligência natural. Por sorte do acaso, recebemos a capacidade de transferir conhecimento e cultura de geração para geração.  A escrita e, consequentemente, a literatura são elementos que foram construídos ao longo de milênios, constituem em poderosa ferramenta de sensibilização para a conservação e empatia com a própria vida”.

A ideia de cuidado com a recomposição de biomas conversa com a ideia de cuidado com o cultivo de sentimentos que façam frente ao ligeiro que tem guiado nossas vidas na sociedade de consumo; com as superficialidades ditas, escritas e repetidas sem qualquer reflexão apurada. Tempos do “pelo menos”, do “é o que temos para hoje”, embora lá no fundo, bem lá no fundo de nós resista a pergunta “será?”, que sufocamos diante das prateleiras de coisas prontas servidas a frio no miudinho das circunstâncias.

Outro dia, escrevi a um amigo dizendo que eu havia sonhado com ele. Não nos víamos há tanto tempo, tempo tomado pela pandemia da Covid19. Neste sonho nos encontramos em um abraço tão intenso que senti sua verdade. O abraço, eu escrevi, ocorreu no corredor de um supermercado. Nada poético, eu disse. E ele escreveu: onde mais poderíamos nos encontrar senão num supermercado?! A vida está um gigante supermercado.

E não é que é? Depositamos nossas crias nas escolas como se fossem notas de crédito de médio prazo que lá no fim serão engrenagens cegas, mas “bem sucedidas” na arte de seguir empunhando a bandeira do ebitda, palavra que tem som de abcêdário, analfabetas das palavras que acordam cuidados. Claro está que há “camadas de êxito” possível de ser alcançado a depender da partida socioeconômica e racial das crianças. Tem um texto que o economista Ricardo Paes de Barros escreveu a meu pedido para o livro A Vida que a gente quer depende do que a gente faz, pág 48, intitulado “Desigualdade no Brasil”, subtítulo: só seremos menos desiguais quando nossa riqueza estiver nas crianças. O texto segue sendo super atual, infelizmente, e começa assim:

“Vejamos os números de nosso país. Vamos acompanhar e comparar o que acontece tipicamente com duas crianças brasileiras igualmente talentosas. Uma delas é uma menina negra, nascida no interior do Nordeste em uma família pobre e cujos pais são analfabetos. A outra é um menino branco, nascido numa próspera cidade da região Sul, de uma família rica, e cujos pais foram à universidade. Embora estas duas crianças tenham o mesmo potencial, apenas uma delas terá as oportunidades e condições para desenvolvê-lo plenamente. Qual delas você acha que será a ‘escolhida’?”.

E se crianças ou jovens não sentam nas cadeiras, pacientes e interessadas(os), em aulas expositivas de 50 minutos com lousa digital ou a clássica verde com uso de giz como há séculos atrás, satisfeitas com seus destinos traçados, podem ser rapidamente diagnosticados com transtorno de déficit de atenção (TDAH), para o quê se buscará e encontrará algum medicamento na prateleira mais próxima. Medicam-se milhares de crianças ao invés de mudar as escolas – cerca de 5% são diagnosticadas com TDAH. Será? Em tempos nos quais as experiências menos oferecidas são justamente aquelas relacionadas à linguagem, concentração e interação, substituídas por multitasking em suportes eletrônicos, soa, no mínimo contraditório, não é não?

O cenário nada animador, ao contrário do que possa parecer, não é um convite para jogarmos a toalha, mas para sabermos em qual areia movediça estamos pisando para nos prepararmos para traçar outros caminhos, com rumos bem diferentes. Para responder adequadamente à pergunta que Harari nos coloca no final de “Sapiens”: “O que queremos querer?”. E conclui: “Aqueles que não se sentem assombrados por essa pergunta provavelmente não refletiram o suficiente a respeito”.

Estávamos ainda bocejando no amanhecer do século 21 quando foram declarados os ODS – 8 objetivos internacionais de desenvolvimento – estabelecidos para 2015 após a Cúpula das Nações Unidas, com a adoção da Declaração do Milênio das Nações Unidas. Em 2008 escrevi um artigo no qual chamava a atenção para uma meta adicional, a Meta 9, uma meta transversal que tratasse de “ecologia humana”, de conhecimentos e práticas relacionados ao convívio dos Sapiens entre si, com o ambiente natural e todas as vidas.

Aliás, a razão de existir do livro que citei acima – A vida que a gente quer depende do que a gente faz – foi exatamente o lançamento dos ODS. A ideia foi reunir conhecimento produzido por especialistas em diversas áreas do conhecimento, partindo da literatura, para que fossem lidos e debatidos em sala de aula nas escolas; para que muito mais gente tivesse a oportunidade de conhecer este compromisso, conhecer que há caminhos e pensar em como atuar no miudinho do chão em que pisa. Afinal, grandes pactos só podem ser costurados no miúdo das circunstâncias, com conhecimento e adesão de cada Sapiens, onde quer que viva.

O livro foi distribuído gratuitamente para milhares de escolas Brasil adentro com o convite para participarem de uma reflexão coletiva por meio de participação em um concurso de redação. O resultado está acessível no livro Inventário sobre o que podia ser bem melhor e será o melhor lugar do mundo. Convido você a ir lá conferir: muitos participantes consideram a sua casa, o seu quarto, a sua cidade e a sua escola como os melhores lugares do mundo.  

Em 2015, os 193 países membros adotaram uma nova política global, a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável – foram estabelecidos 17 objetivos com 169 metas – 5 áreas: Pessoas, Prosperidade, Paz, Parcerias, Planeta. A pegada segue sendo a sustentabilidade, um conceito que segue soando insustentável – assegurar as necessidades da atual geração sem comprometer as necessidades das futuras gerações. Difícil imaginar como desataremos esse nó tendo em vista o nosso atual nível de produção e consumo: o peso dos materiais produzidos por humanos já equivale ao peso de toda a vida na Terra.

Vivemos numa Matrix e precisamos dessa consciência para aprender como sair dela, escolhendo a pílula vermelha. Preparar nossas crianças e jovens para não caírem na armadilha do Facebook range rate. O que implica, inclusive, em parar de colecionar dados ruins sobre proficiência leitora no Brasil.

Como atuar para conter nosso ímpeto fascista, ganancioso, nossa compulsão pelo poder? A palavra restaurar faz sentido, muito sentido.  Reconstruir afetos, imaginação, fantasia. A literatura, como escrevi lá no comecinho deste artigo, pode e deve ser ofertada para constituir um inventário da infância. Nossas pequenas heterotopias. Cultivar um caminho ladrilhado pela literatura e caminhar acordando palavras e sentido sobre sensibilidade, cuidado, alteridade, empatia. Cultivar a subjetividade para formar sujeitos que não se sujeitam e não buscam a sujeição de ninguém.

Alimentando-nos do que precisamos para sabotar a compulsão pelo poder, o autoritarismo e o fascismo que habita em nós e nos transfigurar…. para usar nossa potência e ser muito melhor do que vimos sendo. Conhece-te a ti mesmo, dizia Sócrates. Há quem diga que a ideia é Cuida-te de ti mesmo. Conhecer e cuidar para que possamos nos transfigurar, até a alteração completa para o melhor do que temos sido com a gente, entre a gente e com todas as vidas no planeta.

Com quais histórias estamos povoando o imaginário de nossas crianças?

Assim como escreveu Ricardo Paes de Barros em seu texto publicado no livro A vida que a gente quer depende do que a gente faz, que citei acima, também a ONU enfatiza a importância e urgência em priorizar o atendimento à infância e adolescência, e garantir que tenham oportunidades justas para que sejam cuidadas a partir dos preceitos dos ODS e para que possam praticar os cuidados com os quais suas vidas venham a ser banhadas.

Uma iniciativa recente foi o lançamento do Clube de Leitura ODS (SDG Book Club) das Nações Unidas, durante a Feira do Livro Infantil de Bolonha de 2019. A ideia é que a oferta de literatura desde a primeira infância é potencializadora da sensibilização das crianças, dos 6 aos 12 anos de idade, para a importância dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Para isso, foi feita uma seleção de títulos relacionados com cada um dos 17 ODS, em cada uma das seis línguas oficiais das Nações Unidas: árabe, chinês (mandarim), inglês, francês, russo e espanhol.

A iniciativa é digna de destaque, embora a literatura não possa ser convocada para dar conta de tratar este ou aquele tema e sim para ampliar poros e percepções sobre o arrebatamento que é a vida, para reinventá-la, para extrapolá-la, como ficou bem esclarecido no texto assinado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, seção brasileira do International Board on Books for Young People (IBBY) desde 1968, responsável pela coordenação da seleção do acervo brasileiro:

“A FNLIJ ressalta que a indicação desses ODS não deve implicar uma leitura de caráter utilitário das obras, ou seja, uma leitura limitada e limitadora, especialmente daquelas obras em que o caráter de literariedade é preponderante. A correlação estabelecida entre as obras e os ODS é apenas o reconhecimento de que os textos para crianças e jovens – literários ou não – podem oferecer caminhos para debates necessários à formação das crianças e dos adolescentes como cidadãos do mundo, habitantes do planeta.”

“A ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente. Podemos tecer mitos partilhados (…) Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem precedentes de cooperar de modo versátil em grande número”.

Inúmeras pesquisas têm demonstrado a relevância da literatura na constituição daquelas camadas de humanidade que tanto queremos ver florescer com todo o seu esplendor em nós, Sapiens. Acordam empatia. Imagine que as histórias são cartas que chegam até nós de quem viveu antes de nós, de quem está vivendo no mesmo tempo e para quem as dirigiremos, para àquelas(es) que ainda não nasceram.

Sabiamente escreveu nosso para sempre querido, saudoso e visionário poeta Bartolomeu Campos de Queirós: “De tudo fica a certeza de que é necessário – mais que nunca – educar os nossos sentidos. Só depois de bem apurados, seremos capazes de nomear com mais significado o mundo, que nos recebe para a vida e que estará, sempre, antes e depois de nós. E não há método mais eficaz do que a palavra literária para acordar e atribuir sentido às coisas. É preciso aprender a contemplar as sementes e deixar a palavra dizer a árvore que ela protege em seu dentro” – Bartolomeu Campos de Queirós, “A infância e o livro”.

Aqui você tem acesso ao acervo selecionado por 19 leitores votantes que compõem a seleção anual de literatura infantil e juvenil da FNLIJ. Para saciar a sede de boa literatura, é nas melhores fontes que devemos nos servir, afinal. Quando se trata de literatura, qualidade rima com diversidade, representatividade, proporcionalidade. Sirva-se à vontade, hoje, 12 de outubro, Dia da Criança, Dia Nacional da Leiturapelo qual atuei viva e intensamente. Sirva-se hoje e sempre!

*A imagem que ilustra este artigo é de autoria de Aline Abreu

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