Foi em Brasília que encontrei Goethe. Tratava-se da obra “De minha vida: poesia e verdade”, uma pseudoautobiografia do poeta, meu conterrâneo.[1] Depositada na prateleira de uma filial de uma grande cadeia de livraria, a bela edição trazia o título estampado em cor de rosa brilhante numa capa inteiramente branco neve.[2]
Entretanto, devo admitir que nas últimas semanas a minha leitura tem sido bem menos beletrista. Com horror, indignação e às vezes incrédula tenho acompanhado por meio dos artigos da Biblioo (ver aqui, aqui e aqui) os diversos tipos de ataques à liberdade de expressão e as tentativas de censura no Brasil, seja em relação às feiras literárias, performances teatrais, exposições museológicas, bibliotecas escolares ou fatos históricos e científicos registrados em livros, justificados por pretensos “valores morais”.
Além disso, a fim de compreender melhor a situação da política brasileira e da sua sociedade, mergulhei nas colunas da jornalista Eliane Brum.
No intervalo de uma leitura e outra, foi crescendo o desejo de que, na minha próxima visita ao Brasil, possa encontrar naquela mesma prateleira da livraria de Brasília outro clássico da literatura alemã que nos seus 62 anos de vida foi traduzido para 15 línguas. Um clássico que, por não ter sido traduzido para o português, ainda não encontrou o seu caminho para as livrarias e bibliotecas, e, subsequentemente, para as poltronas, sofás e mentes dos brasileiros e demais lusófonos.
Refiro-me à obra intitulada “Sansibar oder der letzte Grund”, de Alfred Andersch[3], que poderia ser traduzida como “Zanzibar ou a última raza͂o”.[4] Publicado originalmente na Alemanha, em 1957, o texto é um clássico da literatura alemã pós-guerra, frequentemente lido nas escolas. E garanto desde já: este livro é, ainda hoje, tão ou mais relevante como à época da primeira edição.
O enredo se conta rapidamente: em 1937, uma pequena cidade litorânea no norte da Alemanha vivia sob o mais absoluto controle da ditadura nazista: anti-semitismo, perseguição de críticos ao regime, eutanásia, proibição da liberdade de expressa͂o e censura da arte (entartete Kunst = “arte degenerada”), bem como a espionagem dos cidadãos estavam à ordem do dia.
Neste contexto, cinco pessoas se encontram mais ou menos por acaso. Embora todas elas fossem adversárias dos “outros”, alcunha atribuída aos nazistas no livro, quase todos sucumbem à tentação de cultivar uma vida discreta, sem polêmicas e riscos. Mas, de repente, o “personagem principal secreto” do livro entra em cena: o “aluno (ou noviço) de convento que lê” (Lesender Klosterschüler).
Embora não passasse de uma imagem sacra, a obra é considerada subversiva pelos governantes; numa certa manhã, os guardas do regime querem retirar a escultura de madeira do seu nicho na igreja e escondê-la para sempre. O fato é que a escultura de madeira é uma ameaꞔa para os nazistas, porque “o aluno de convento que lê” está sendo apresentado num ato de leitura potencialmente independente e crítico.[5]
Outra figura ameaçada no livro é Judith, uma jovem judia, cujo plano de fugir para a Suécia estaria condenado ao fracasso pela falta de solidariedade de quem a cerca. Em relação ao noviço leitor e a judia, será que as pessoas oprimidas se unirão e mostrarão solidariedade, lutando pela humanidade por meio da tutela da liberdade de arte e num legítimo ato de desobediência civil?
Rerik é o nome da cidade costeira onde esse quadro de violência física e simbólica ocorre. Talvez não concordem, mas penso que nestes tempos, Rerik pode estar situada em muitos lugares do mundo. Porque o socialismo-nacional discutido neste livro tem muito em comum com outros sistemas totalitários e autoritários reinantes.
Nesse sentido, ele não passa de uma parábola que pode ser situada além do tempo e em qualquer lugar, aqui e acolá: no Rio, Porto Alegre, Ponta Grossa, Recife, Marechal Floriano ou em Três Lagoas. Este livro discute, principalmente, os valores que merecem ser defendidos, como a liberdade interna e externa, os direitos humanos, o respeito, a humanidade, a decência e a integridade em tempos de desumanidade.
Ele trata, particularmente, de atitudes: ao longo da narrativa, os protagonistas entendem que eles têm uma responsabilidade moral como toda a sociedade. Desse modo, eles conseguem superar o próprio medo, abandonam a zona de conforto para desobedecer, e ingressam corajosamente no território da resistência ativa. Eles entenderam que o mundo depende da responsabilidade coletiva: na sociedade, cada um interpreta um papel, mas cada qual tem que decidir por si mesmo.
Estou convencida, conforme a ideia da littérature engagée, de que a arte e, portanto, a literatura, pode ser um instrumento poderoso. A literatura faz o leitor pensar, e faz questionar a ordem das coisas. Ela promove a empatia, contribuindo, assim, com a humanização da sociedade.
Sendo assim, será que este livrinho alemão não poderia funcionar como uma espécie de “livro de autoajuda” para um outro país que, segundo Eliane Brum, é formado por uma “sociedade adoecida pelo ódio”, incitada por “um Governo que estimula a guerra entre brasileiros”?[6]
Como não reconhecer que os judeus perseguidos pelo Terceiro Reich no romance têm muito em comum com o espectro mais amplo de tipos débeis do Brasil atual. Além de negros e índios, como ignorar a virulência diante dos favelados, moradores de rua, LGBTQs e, bem no fundo, de quase todos nós?
Pois “Sansibar” é uma obra que convida a leitora e o leitor a reconhecerem paralelos entre todos os regimes de poder. Mas não é só isso: ela tem a capacidade de produzir mobilidade. Ela nos motiva a nos levantar da poltrona, a ir para as ruas como ativista indignada e indignado,[7] a demonstrar solidariedade com os mais vulneráveis da sociedade e a lutar pela democracia.
Mas não se pode esperar muito de um indivíduo atuando sozinho. O escritor Alfred Andersch, defensor da literatura como ferramenta para construir uma nova moral social, se esforçou, ainda adolescente, para provar a eficácia de uma ação conjunta e solidária; entretanto, decepcionou-se com a oposição dividida e encolerizada, não conseguindo impedir a tomada do poder de Hitler, em 1933. O fato é que, seja em 1937 ou em 2019, a sentença é a mesma: “Se contarmos apenas com um, não podemos nada. Temos que ser um+ um+ um. E então poderemos muito.”[8]
Recorrendo, mais uma vez, ao tom profético de Brum: “É urgente se unir para resgatar o que resta de democracia no Brasil antes que o autoritarismo se instale por completo” porque “já não há mais tempo”.[9]
Exagero? Catastrofismo? Até recentemente eu não tinha certeza. Mas desde o tweet de Carlos Bolsonaro sobre “a transformaꞔa͂o que o Brasil quer” que “por vias democráticas […] na͂o acontecerá na velocidade que almejamos”[10], os meus sentimentos já mencionados de horror, indignação e incredulidade sa͂o acompanhados de medo puro.
Porque eu aprendi na escola, ao ler “Sansibar”, que o fascismo na Alemanha chegou ao poder por meio do voto direto, em pleno vigor da democracia, pouco antes de deixar cair a sua máscara e mostrar a careta feia da ditadura.
Alfred Andersch, a propósito, escreveu o livro almejando o leitor contemporâneo de 1957. Para ele, havia paralelos claros entre a Alemanha de 1937 e de 1957, quando a democracia, as liberdades civis, os direitos humanos e a solidariedade da sociedade deram mostras de fissura.
Penso que está na hora de “Sansibar oder der letzte Grund” ser conhecidos pelos brasileiros! Já na͂o há tempo a perder. Quem assumirá a tarefa de editar este livro? Seguramente o editor deverá ter um certo quê de heroicidade.
Afinal, o texto, ao tratar de valores e atitudes ameaçados e menosprezados, como humanidade, prestalidade e solidariedade, será catalogado por muitos como subversivo. Da minha parte, aqui no interior da Alemanha, só me resta apostar na tradução desta joia literária.
“Bons livros na͂o são para frac@s.”[11]
Quem ousa?
[1] Goethe, Johann Wolfgang von: De minha vida: poesia e verdade. 2017, editora Unesp.(Original 1811 / 1833).
[2] Ibid.
[3] Andersch, Alfred: Sansibar oder der letzte Grund. 2006 (17° tiragem em 2006, publicado pela primeira vez em 1957), Zurique, editora Diogenes Verlag.
[4] A ediꞔa͂o inglesa se chama “Flight to Afar“, a espanhola “Zanzíbar o la última razón“.
[5] Estou preparando mais um artigo sobre “o aluno de convento que lê“ e o discurso de leitura relacionado com este figura.
[6] Eliane Brum, Cem dias sob o domínio dos perversos. A vida no Brasil de Bolsonaro: um Governo que faz oposição a si mesmo como estratégia para se manter no poder, sequestra o debate nacional, transforma um país inteiro em refém e estimula a matança dos mais frágeis. Coluna. El País, 13.4.2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/10/opinion/1554907780_837463.html. Acesso em: 15 de set. 2019.
[7] Convite à (re-)leitura do livrinho de Stéphane Hessel: Indignai-vos! 2011, editora LeYa (original em francês: Indignez-vous! 2010, Ed. Indigène).
[8] Eliane Brum, Cem dias sob o domínio dos perversos. A vida no Brasil de Bolsonaro: um Governo que faz oposição a si mesmo como estratégia para se manter no poder, sequestra o debate nacional, transforma um país inteiro em refém e estimula a matança dos mais frágeis. Coluna. El País, 13.4.2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/10/opinion/1554907780_837463.html. Acesso em: 15 de set. 2019.
[9] Ibid.
[10] Carlos Bolsonaro no Twitter, 10 de set. 2019.
[11] Obrigada, Christine Castilho Fontelles! Castilho Fontelles, Christine: Porque ainda acredito na importancia da biblioteca e na posse da palavra. Artigo na Biblioo, 23 de agosto de 2019. Disponível em: https://biblioo.cartacapital.com.br/por-que-ainda-acredito-na-importancia-da-biblioteca-e-na-posse-da-palavra/ Acesso em: 15 de set. 2019.