Caríssimo Glauber!

Como vão as coisas por aí? Os últimos acontecimentos nesta banda da terra tem sido de doer. Em face deles, o poeta provavelmente diria: “sejamos pornográficos!“. Mas nem sei bem se seria esse o caso, o de sermos pornográficos, já que a mais tosca pornografia se banalizou no mais cotidiano e insistente discurso do presidente desta República. Tem sido de doer, e por vezes parece que somente uma verve como a sua poderia nos entusiasmar, ou ao menos nos empurrar para a frente. Como de costume, você deve estar antenado e bem informado do que nos vem afligindo, mas gostaria de comentar com você alguns desses acontecimentos, que lhe concernem mais de perto.

Se um dia você pôde elogiar um dos agentes da ditadura militar iniciada com o golpe de 1964, um general, dando-lhe o portentoso figurino de “gênio da raça” (e confesso que nunca entendi bem essa história), não sei o que você poderia dizer dos protagonistas do atual governo. Só sei que não seria possível chamar ninguém de gênio de coisa nenhuma, já que a casta dos militares que hoje ocupam o governo é de gente desprovida de qualquer inteligência, para quem arte e cultura não tem a mínima importância. E creio que, mais do que isso, outra ausência lhe espantaria na atuação dessa gente fardada (e política) de agora: a falta de sentimento nacionalista!

Na semana passada, mais uma consequência da criminosa negligência deste governo (militar) atingiu em cheio a história do cinema brasileiro. Uma das unidades da Cinemateca Brasileira, localizada na zona oeste de São Paulo (Vila Leopoldina), foi atingida por um incêndio. As chamas não tiveram seu estopim deliberado por algum incendiário, mas podemos dizer sem receio de errar que se trata de um incêndio criminoso. A omissão e o abandono, esses sim deliberados, do governo federal, prepararam a centelha destruidora, como muita gente já havia advertido. O próprio Ministério Público Federal havia alertado para o risco de incêndio na Cinemateca, alerta que foi absolutamente ignorado.

Há menos de três anos foi o Museu Nacional destruído por um incêndio catastrófico, também ele consequência do descaso. E agora é a Cinemateca Brasileira que perde parte de seu acervo, em chamas que queimaram documentos da história cinematográfica, rolos de filmes, equipamentos de projeção e livros. Aliás, pelo pouco que soubemos até agora, já fica evidente a dimensão monstruosa da destruição, e parte do seu acervo, Glauber, encontrava-se no galpão atingido pelo fogo. Parte do seu acervo, que foi transferido para a Cinemateca depois do fechamento do Tempo Glauber, fora atingido meses antes por uma enchente — outra parte sendo destruída agora com o fogo que vinha sendo pressentido. Enchente e incêndio seriam evitados, não houvesse sistemática negligência.

“Criminalidade total!”

“Criminalidade total!”. O David Neves conta, em texto de meados dos anos 1960 (sobre Deus e o Diabo na terra do sol), que então você tinha a mania dessa expressão, gritada de súbito como leitmotiv em conversas entre amigos, por vezes deixando interlocutores sem saber do que se tratava. Era início de ditadura militar, ocasião em que se escancarava a criminalidade do Estado brasileiro, e seu leitmotiv tinha toda razão de ser. Penso que se você estivesse nesse momento sombrio entre nós, a expressão teria de novo um sentido evidente: “Criminalidade total”! O momento pelo qual passamos, enfrentando uma pandemia, tornou mais que evidente a criminalidade de um governo genocida e destruidor da memória artística do país.

E a criminalidade desse governo contra a cultura e a criação artística não avança apenas com as trágicas chamas dos incêndios que temos testemunhado. Também na semana passada, o governo federal assinou um decreto que regulamenta o Programa Nacional de Apoio à Cultura, e entre seus objetivos define “apoiar as atividades culturais de caráter sacro” e “apoiar as atividades de Belas Artes”. O tal decreto propõe, portanto, a consideração de categorias ultrapassadas, ignorando o critério adotado até então, que considerava a segmentação de distintas linguagens (cultura popular, livro e literatura, artes cênicas etc.). Dirigismo descarado e cínico, que pretende nos afastar da liberdade garantida por um Estado laico. Para quem, como você, dizia em alto e bom som na televisão — “Nossa cultura é a macumba e não a ópera!” —, certamente haveria grande dificuldade em acessar financiamento através das leis de incentivo.

“É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” — me vem a imagem do filme Vento do leste (1970), em que você cantarola Divino maravilhoso (música do Caetano) na encruzilhada do Godard, de onde você aponta o caminho do cinema do terceiro mundo: “um cinema que vai construir tudo, a técnica, as casas de projeção, a distribuição, os técnicos, trezentos cineastas por ano…”. E certamente você pensava também na necessidade de uma Cinemateca, sem a qual não seria possível a construção de tudo que você apontava. Acho que você estava certíssimo ao discordar do Godard, quando ele lhe disse que era necessário destruir o cinema como forma de atuação revolucionária… E é curioso como outros artistas que estiveram em encruzilhada semelhante (nossos exus divinos maravilhosos), como o Mário de Andrade, chamaram atenção justamente para essa necessidade de construção. “Atenção ao dobrar uma esquina”!

Esse seu cantarolar me leva a outra lembrança, a de Paulo Emílio Salles Gomes. Seu amigo, que você tanto admirava, que tanto batalhou para a criação da Cinemateca Brasileira, também tem parte de sua memória atingida pela negligência que provocou o incêndio da última quinta-feira. Você bem se lembra que foi ele quem, em meados dos anos 1970, promoveu a aquisição de seus filmes para o acervo da Cinemateca, quando você se encontrava ainda em duro exílio na Europa. Foi nessa época que Raquel Gerber e outros organizaram no Brasil um livro com estudos sobre sua criação cinematográfica, que trazia um prefácio belíssimo do Paulo Emílio, do qual não esqueço jamais a frase final: “Ele [você] é uma de nossas forças e nós Brasil a sua fragilidade”.

Acho que por isso a necessidade de escrever pra você, meu caro Buru. A sua fragilidade, que é esse país, bem que carecia de uma dose revigorante de sua força. A pandemia da covid-19 já matou mais de 550 mil pessoas no Brasil, e a “criminalidade total” deste governo reafirma uma ação genocida espantosa. Como se não bastasse, a criminalidade do atual Estado brasileiro ataca a memória cultural e a criação artística de nossa gente — com a deliberada negligência que provocou o incêndio no galpão da Cinemateca Brasileira, no qual parte da memória do cinema foi irremediavelmente destruída, e com decretos governamentais que pretendem dirigir e cercear a livre criação artística.

Como disse Darcy Ribeiro, você foi o mais indignado de nós, e me parece que precisamos com urgência dessa indignação explosiva. Precisamos também um bocadinho da “imaginação glauberiana”, que Paulo Emílio apontava como estando sempre enraizada na própria realidade. Sua indignação, nas palavras emocionadas de Darcy, era consequência também da sua capacidade de ver “o mundo que podia ser”. A “criminalidade total” que atualmente nos ameaça não se perpetuará — permaneceremos atentos e fortes para o combate contra o dragão da maldade. Atentos e fortes para transformar essa nação “sentimental e sem gravata” em um país com mais justiça e democracia. “Que vai ser, Glauber! Que há de ser!”, como disse Darcy. Que sua força e sua indignação nos apontem caminhos. Há de ser, caríssimo!

Marcelo Magalhães

Fortaleza, 3 de agosto de 2021.

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