Brígido Ibanhes é um conhecido escritor de Dourados, cidade de 210 mil habitantes localizada à 229 km de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Membro-fundador da Academia Douradense de Letras, onde ocupa a cadeira número 02, sócio da União Brasileira de Escritores e membro da Associação de Novos Escritores do estado, Ibanhes se viu surpreendido em 2015 com a súbita retirada de uma de suas obras das estantes das bibliotecas escolares do município.
O romance “Martí: sem a luz do teu olhar” (Edição do Autor, 2007) havia sido uma das obras adquiridas pela Prefeitura local em 2008 para compor o acervo das bibliotecas escolares, num total de 500 exemplares. “Solicitamos que sejam retirados das prateleiras das bibliotecas o livro intitulado ‘Martí: sem a luz do teu olhar’, até a segunda ordem do Núcleo de Biblioteca e o Departamento de Ensino”, dizia à época a nota assinada pela bibliotecária Rose Cristiani Franco Seco Liston.
“O pedido de retirada do livro foi feito em fevereiro de 2014 para que seja colocado o selo de classificação para faixa etária. Ao todo foram quatro obras, sendo dois de poesia, esse que é romance […] e outro de um escritor do Estado de São Paulo, que não me recordo agora o nome. Foi feito no ano passado a reestruturação do acervo das bibliotecas, que faz parte do ‘Plano Nacional do Livro’, e esses exemplares já chegam com o selo de qual faixa etária está direcionado, os que não têm, precisam desse selo. Por isso algumas obras foram retiradas”, disse Liston em entrevista à Folha de Dourados em 2015.
Também de acordo com uma reportagem da Folha de Dourados deste período, uma assessora do então prefeito de Dourados, Murilo Zauith, havia afirmado numa rede social que o livro de Ibanhes apresenta expressões como “aborda a mulher por detrás”, “pegada animal”, “tapão no traseiro”, “potranca” e “omissão peniana”, o que teria justificado a exclusão dos livro do catalogo das bibliotecas. Em função disso, uma Comissão da SEMED foi montada para estudar o livro e demais obras, “respeitando as normas da Biblioteca Nacional [BN]”.
Na verdade, a ação da Prefeitura de Dourados parece ter ido na contramão do que afirmara a assessora do prefeito em relação à Biblioteca Nacional, uma vez que a missão da instituição prevê “atender à sociedade em geral, oferecendo serviços públicos e gratuitos de livre acesso à leitura, à informação e aos registros de expressão cultural e intelectual humana, sem distinção de faixa etária e nenhuma forma de censura ideológica, política ou religiosa em sua diversidade e pluralidade e, desenvolvendo atividades de caráter informativo, cultural e educacional.”
Sobre o enredo do livro, Ibanhes explica que a diretriz principal é a violência contra a mulher, seguida da violência no trânsito, das gangues, da psicopatia etc. “Há também a violência da corrupção política, com a figura de um deputado estadual, ligado ao agronegócio, que se sustenta através da corrupção, e que é casado com uma empresária, dona de um importante jornal local e que acoberta suas falcatruas, representando a imprensa a serviço dos malfeitos. O personagem Benício, jornalista, publica denúncias contra o parlamentar corrupto e se torna alvo de um atentado a bomba”, explica.
A obra ficcional reflete um ato de violência sofrido na vida real pelo escritor. Na noite de 14 de julho de 2006 ele e sua esposa foram vítimas de um atentado a bomba em sua residência, o que lhe provocou traumas que perduram até os dias de hoje. Dentre as possíveis justificativas pelo atentado está a criação em 1991, em Dourados, do Movimento de Moralização e Ética no Trato da Coisa Pública (METRA), instituição que procura combater a corrupção política e lutar pela conscientização cidadã do povo.
“Quando o Benício [personagem do livro] sofre o atentado estou fazendo referência ao atentado que sofri, e isso também, entre outras coisas, contribuiu para a censura ao livro, além da existência nesta cidade de uma poderosa dona do maior jornal em circulação na região que foi casada com um deputado, personagens também que fazem parte da trama do romance; tudo ali retrata fatos de corrupção e escândalos de gente poderosa daqui”, explica ele que até hoje teme por sua vida.
De volta à retirada dos livros das bibliotecas, o fato provocou indignação e protestos por parte não só do escritor, mas de outros cidadãos e autoridades locais. É o caso do vereador Maurício Lemes (PSB) que à época encaminhou ofício à Prefeitura municipal solicitando informações sobre o ocorrido, especialmente sobre o procedimento adotado para avaliação. O vereador também pediu a relação dos livros avaliados, os resultados das avaliações psicológicas, o nome e cargo das pessoas envolvidas no trabalho.
Em resposta ao ofício, a Prefeitura confirmou que a obra fora retirada em observância às normas do Ministério da Educação (MEC), por meio do Programa Nacional da Biblioteca na Escola – PNBE (programa do governo federal que distribui acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência às escolas públicas do país). Segundo os administradores locais, o PNBE obriga o reenquadramento dos livros à correspondente faixa etária dos alunos, que seria de 5 a 14, compreendendo da pré-escola ao 9º ano do ensino fundamental.
De fato, todos os editais de seleção de obras literárias ao PNBE estabeleceram ao longo do tempo a adequação da linguagem e a temática das obras à faixa etária e aos interesses dos alunos do ensino fundamental e do ensino médio como critério para a escolha do material. O problema é que para alguns estudiosos do tema, a expressão “interesses dos alunos” é muito vaga, o que pode acabar gerando injustiças na hora de se proceder a avaliação do material que pleiteia a escolha.
“Essa questão da adequação das obras às faixas etárias do público pretendido suscita o questionamento do que o edital entende por interesse tanto das crianças e dos jovens, quanto dos adultos e dos idosos que estudam nas escolas”, questionam Célia Regina Delácio Fernandes e Maisa Barbosa da Silva Cordeiro, da Universidade Federal da Grande Dourados, em artigo publicado na Revista Educação.
De acordo com os “Parâmetros Curriculares Nacionais”, que são diretrizes elaboradas pelo governo federal com o objetivo de orientar os educadores por meio da normatização de alguns fatores fundamentais concernentes a cada disciplina, “é importante a construção permanente de uma metodologia participativa, que envolve o lidar com dinâmicas grupais, a aplicação de técnicas de sensibilização e facilitação dos debates, a utilização de materiais didáticos que problematizem em vez de ‘fechar’ a questão, possibilitando a discussão dos valores (sociais e particulares) associados a cada temática da sexualidade”.
Segundo este documento, “a montagem de um acervo de materiais na escola [que pode ser uma biblioteca ou mesmo uma sala de leitura] — como textos e livros paradidáticos, vídeos, jogos, exercícios e propostas de dramatização —, é importante para a concretização do trabalho” nos ciclos I (que vai da Educação Fundamental, equivalente aos cinco primeiros anos de estudo – do 1º ao 5º ano) e II (aquele que acontece do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental).
Para supostamente avaliar estas questões, a Prefeitura informou na ocasião que havia instituído uma Comissão de Avaliação de Livros Literários, órgão criado pela Secretaria Municipal de Educação (SEMED), cuja presidência foi atribuída à bibliotecária Rose Liston, a mesma que emitiu a ordem de retirada das obras das bibliotecas. Sobre as avaliações psicológicas, a Prefeitura informou ao vereador que estas ainda estariam “em processo de análise”, e que não haveria previsão para entrega do relatório.
A pressão exercida por algumas autoridades e pela sociedade civil à época fez com que a Prefeitura recuasse na decisão de retirada dos livros das bibliotecas. Mesmo assim, restou a indignação e as dúvidas: a que conclusão chegou a referida Comissão de Avaliação de Livros Literários, montada para avaliar o livro de Ibanhes e os dos demais autores? Quais critérios de fato esta instância do poder público local utilizou para fazer este tipo de avaliação? Se os critérios não são claros, a ação não poderia se configurar como censura?
Passados mais de dois anos da retirada de seu livro das bibliotecas e da posterior instituição de uma Comissão de Avaliação de Livros Literários, Ibanhes enviou uma carta à SEMED solicitando uma cópia do laudo técnico e psicológico e da conclusão do processo gerado pela referida Comissão, mas não teve resposta. “[…] à época da retirada não ficou expressa a motivação do ato administrativo, apenas insinuações de que poderia ser por conta de termos supostamente eróticos, critério que não encontra respaldo nos itens de avaliação do PNBE”, reclamou o escritor.
Judicialização
Esgotada as tentativas de resolver o problema de forma amigável, Ibanhes procurou a Justiça e ajuizou uma ação contra a Prefeitura exigindo a nulidade de retirada da sua obra das bibliotecas locais, pois, segundo ele, os servidores públicos que executaram tal ação não tinham competência para tanto. Para sua surpresa o juiz da primeira instância não só resolveu julgar a ação de forma antecipada (o que impossibilitou Ibanhes de arrolar testemunhas), como indeferiu os pedidos do autor.
Alegou o magistrado em sua decisão que a aquisição dos exemplares da obra por parte da Prefeitura garante a esta a propriedade e, por consequência, o uso dos mesmos como bem entender. Além disso, o juiz entendeu que “não compete ao Judiciário se imiscuir [tomar parte] no mérito administrativo e analisar a oportunidade e conveniência da adequação de seus livros aos moldes educacionais”.
“Mesmo porque, em ampla análise, trata-se de cumprimento da proteção integral conferida pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] aos infantis usuários das bibliotecas municipais. E sobre tanto, também não cabe ao autor qualquer defesa ou contraditório, posto que o mero cumprimento de diretrizes de ensino”, sentenciou o magistrado de primeiro grau, o juiz José Domingues Filho.
Inconformado, o escritor recorreu da sentença. Só que os juízes da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul entenderam que muito embora o ato de determinação de recolhimento dos livros tenha sido realizado por autoridade incompetente, houve posterior convalidação, pois foi sanado o vício com a reedição do ato. “Sem indício de arbitrariedade, é vedado ao Poder Judiciário se imiscuir no mérito do ato discricionário”, disseram os juízes na sentença.
Ibanhes explica que à época que começou a estudar o processo junto com seus advogados, eles acharam que seria mais fácil tentar anular o ato administrativo, mas a opção acabou por frustrar-se com a sentenças desfavoráveis ao escritor nas duas instâncias. Ibanhes admite que chegou a pensar em alegar a censura, apelando à Constituição Federal de 1988 que estabelece em seu artigo 5º ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Na continuidade da luta por saber os motivos reais da retirada dos seu livro das bibliotecas da sua cidade, Ibanhes apresentou recentemente uma manifestação que foi distribuída para a 16ª Promotoria de Justiça do Ministério Público do Estado em Dourados por conta da falta de resposta ao requerimento de informações que ele fez em agosto de 2017, mas o escritor ainda não obteve resposta.
A Biblioo procurou a Prefeitura de Dourados para saber a que conclusão chegou a referida Comissão de Avaliação de Livros Literários, montada para avaliar o livro de Ibanhes e os dos demais autores. No dia 8 de julho nós recebemos a resposta por meio de um email não assinado da Secretaria Municipal de Cultura (SEMEC) informando que nossos questionamentos estavam sendo encaminhados à Comissão do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura, Escrita e Bibliotecas.
Em um outro email do dia 15 de julho a SEMEC disse ter encaminhado nossa solicitação a uma mulher chamada Sonia que, segundo a Secretaria, é a responsável pela Plano Municipal do Livro e da Leitura, Literatura, Escrita e Biblioteca de Dourados, ao que parece ligado à Secretaria de Educação do Município. Sonia*, que alegou estar de férias no perído em que tentamos contato, respondeu no dia 1 de agosto, ou seja, após a publicação da primeira versão dessa reportagem. Sua resposta foi contraditória, uma vez que afirmou primeiro que “esta situação foi resolvida na gestão passada”, para em seguida dizer que “nas bibliotecas escolares e pública nunca foi retirado nenhuma obra deste autor”.
No dia 25 de julho já havíamos enviando email à SEMED com os questionamentos, mas também não obtivemos retorno até agora. Além das conclusões da Comissão para a retirada do livro das bibliotecas, perguntamos quais critérios de fato esta instância do poder público local utilizou para fazer este tipo de avaliação e se os livros chegaram a ser restituídos às bibliotecas locais. Também procuramos por meio do Facebook a bibliotecária Rose Cristiani Franco Seco Liston, que assinou a determinação de retirada do livro de Ibanhes das bibliotecas de Dourados, mas até o fechamento desta reportagem não tivemos retorno.
*Esta reportagem foi atualizada no dia 04 de agosto para acrescentar a resposta da senhora Sonia