Trabalhos como os da professora da Universidade de São Paulo (USP), Sandra Reimão (“Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar“), e mais recentemente da bibliotecária da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE/RJ), Kelly Pereira de Lima (“Onde estão os livros censurados?: ainda os efeitos de 64 nas coleções de biblioteca”), mostram como os livros foram alvos constantes da sanha repressiva da ditadura militar que se estabeleceu no Brasil a partir de 1964.

O trabalho de Reimão, por exemplo, aborda a censura à cultura e às artes e, especificamente, aos livros durante a ditadura militar brasileira, realizada à época pelo Ministério da Justiça através do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), órgão encarregado do controle autoritário às diversões públicas.

Lima, por sua vez, selecionou uma lista de livros censurados durante o período ditatorial, concluindo que naquele período a censura foi utilizada como um instrumento de imposição do poder que amparava o modo manipulador do autoritarismo, interferindo na ordem do discurso no que diz respeito à relação entre texto, impresso e leitura.

Com o fim da ditadura em 1985, e o restabelecimento de uma democracia socialmente frágil, mas relativamente estável do ponto de vista político-eleitoral, se imaginou que o fantasma da censura havia sido definitivamente exorcizado. Mas episódios recentes parecem ter colocado em dúvida essas certezas.

No ano passado ao menos cinco câmaras de vereadores de municípios do Rio Grande do Sul exigiram a retirada do livro “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” do acervo de algumas bibliotecas públicas. A publicação é um catálogo das obras da exposição de mesmo nome que foi cancelada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre (RS), após uma série de protestos nas redes sociais em 2017.

Na mesma época um projeto de lei da Câmara de Vereadores de Marechal Floriano, na região Serrana do Espírito Santo, pretendia criar uma lista de livros proibidos em bibliotecas públicas e comunitárias do município. “[O projeto] tem o intuito de defender as famílias florianenses, principalmente nossas crianças”, disse à época o vereador Diony Stein (PMDB), um dos autores da proposta.

No âmbito federal, o presidente Jair Bolsonaro demonstra desde sua campanha o desejo de “expurgar Paulo Freire das escolas brasileiras”. “Expurgar Paulo Freire das escolas brasileiras” significa, entre outras coisas, que a obra do educador pernambucano, morto em 1997, uma referência a nível mundial, não deve continuar sendo utilizada por professores como material de formação pedagógica.

Se qualquer medida como essa fosse ou viesse a ser levado a cabo, nós teríamos uma verdadeira caça às bruxas não só nas bibliotecas públicas, mas principalmente nas bibliotecas universitárias, exatamente por ser Freire essa referência mundial no que se refere à educação. Para se ter uma ideia, o livro “Pedagogia do Oprimido”, talvez o mais importante de Freire, é a segunda obra mais citada no mundo na área de educação em artigos em inglês.

No final do ano passado a impressa noticiou que o Santo Agostinho, famoso colégio católico e um dos mais caros da cidade do Rio, censurou o livro “Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel, por supostamente “doutrinar crianças com ideologia comunista”, promovendo um “discurso esquerdopata” entre os alunos, como bem lembrou Criatian Brayner em artigo publicado na Biblioo.

Episódio parecido ocorreu também em Brasília no final de 2018. Uma escola particular de elite da cidade decidiu excluir da lista de materiais escolares o livro infantil “A semente do Nicolau” após sofrer pressão de pais de alunos, que protestaram após descobrirem que a obra é de autoria do então deputado federal Chico Alencar, filiado ao PSOL do Rio de Janeiro.

O livro conta, por meio de um conto de Natal, a lenda do Papai Noel e como as crianças podem aprender valores relacionados à solidariedade, espírito natalino e respeito aos idosos. “Sectarismo autoritário estimulado pelo tal ‘Escola sem Partido’, sem reflexão crítica, sem solidariedade, com mordaça, sem Natal”, afirmou o parlamentar e autor da obra.

O episódio mais recente, ocorrido esta semana, envolveu o Ministro da Educação que falou em entrevista ao Jornal Valor Econômico que pretende revisar os livros didáticos sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar brasileira. Ricardo Vélez Rodrigues disse discordar de que houve golpe militar no Brasil e que o ato teria sido “uma decisão soberana da sociedade brasileira”, como o aval do Congresso Nacional.

Mas uma vez, se essa insanidade se realizar, professores, pesquisadores, bibliotecários, escritores e educadores de um modo em geral devem ser os mais atingidos. Já imagino o nível de pressão que instituições e pessoas devem viver numa situação como essas, escondendo publicações e outras fontes de informação que por ventura possam ser objeto de perseguição ideológica.

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