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Penha, líder comunitária e transexual, hospeda em sua casa um pequeno jardim de infância para os filhos de mães que trabalham

Por Antonio Veneri na Carta Capital

Há quase três anos venho desenvolvendo um projeto fotográfico no Complexo da Maré, um conjunto de 16 favelas na zona norte do Rio de Janeiro. Interiores da Maré são retratos de moradores dentro das próprias casas. Registros íntimos que falam de uma realidade que nunca é mostrada.

Favela geralmente é associada apenas a violência. Em parceria com o músico e produtor cultural Henrique Gomes, andei dias e horas pelas ruas da comunidade para registrar através das fotografias histórias do cotidiano.

Ao longo da produção dos Interiores, morei no Complexo da Maré por meses a fio. Vi e participei de muitas coisas: a Copa de 2014, as manifestações e a “ocupação” do Exército, que durou mais de um ano. Mas a experiência mais abrangente, linda e cansativa, foi participar do cotidiano daquelas pessoas, de viver o dia a dia delas.

A primeira coisa que você repara numa favela é que nunca está sozinho mesmo dentro do próprio quarto. O som, as vozes e a música acompanham todo mundo, em qualquer horário, e a trilha sonora é bem variada.

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Luiz Carlos de Souza e Tânia Gonçalves foram dos primeiros a ser retratados no projeto. Entusiasmado, ele pintou as paredes e reformou a casa

Obviamente há funk, mas a Maré foi o único lugar no Brasil onde escutei Billie Holiday e Serge Gainsbourg. A produção contínua de barulho não é por falta de educação, ou essas coisas. A questão é simples: muitas pessoas num espaço muito pequeno geram algazarra. Quando não é a música é o pastor da igreja gritando alto no microfone. 

Reparei que os sons e as cores vivas da favela, sejam nas paredes das casas, sejam nas roupas das pessoas, aquilo é um grito de existência. A propaganda utiliza som e cor para vender; nas favelas, as pessoas os utilizam para viver. Por isso optei para que todas as fotografias sejam em cores. Na Maré, muita gente dorme de porta aberta. Comigo aconteceu várias vezes.

Durante a Copa de 2014, eu estava morando na Maré e um jornal da Itália me pautou as fotos típicas dos torcedores nas praias de Copacabana. Minha vizinha de 70 anos de idade, ao me ver indo para a zona sul, me alertou: “Cuidado! Copacabana é perigosa!” Lembro de ter sorrido, mas o absurdo é que minha vizinha estava coberta de razão.

A Maré é um dos espaços culturais mais animados no Rio. Colaborei com a ONG Redes da Maré, criada por moradores locais, e troquei ideias e experiências com o pessoal da Imagens do Povo, uma escola de fotografia que formou uma geração de fotógrafos. Assisti a várias peças da Cia. Marginal, que retrata a favela de uma forma muito original.

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Nelson e seu cão Pingo

Fizemos uma exposição fotográfica no Travessias, um dos eventos mais interessantes do Rio, e nas ruas da comunidade. Muitas vezes, eu e o Henrique curtíamos show de música após o trabalho. A cena musical da Maré é animadíssima: samba, forró, funk, rock. Tem até metal-evangélico.

Um dos poucos lugares do Rio onde me sinto vivo, um espaço que faz as energias fluírem. Importante: para circular livremente na Maré não tive de pedir autorização a ninguém. É um mito essa história de que você tem de negociar com o tráfico para ser aceito. E um detalhe que toca fundo na minha alma italiana: foi lá que comi a melhor pizza do Rio. Com massa fina e um pouco queimada na borda. Come conviene.

Até aqui parece que estou descrevendo um pequeno paraíso tropical. Seria, se não fosse por certos detalhes: na Maré, todo mundo está ilhado. As pessoas raramente saem de seus limites. Quase ninguém circula ou curte outros espaços da cidade. A Polícia fica a distância e, separados dos agentes do Estado por poucos metros, os traficantes espreitam.

Ensanduichados entre os dois lados, os moradores que precisam entrar e sair para trabalhar ou estudar são os mais afetados. Liberdade para ir e vir só para a droga. Afinal, o pessoal de Ipanema e do Leblon precisa se abastecer.

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Belinha e os pais, Antonio e Juliana, vivem e viajam neste caminhão. Quando no Rio, pedem pouso na Maré

Conversando com cariocas de todas as classes sociais, reparei o quanto eles desconhecem a própria cidade. Quando digo que fui a Bangu ou ao Alemão, sou olhado como um bicho estranho. É muito difícil que um morador da zona sul vá a umacomunidade, a não ser para entrar e sair das escolas de samba às vésperas do Carnaval.

A imprensa, brasileira e estrangeira, quando vai fica algumas horas, não capta o cotidiano das pessoas. Na Maré, como em quase todas as favelas, as energias, boas e ruins, sobram. E quando as más energias prevalecem, vira um território de guerra.

Isso acontece:

1 – Quando o Estado decide intervir, através da truculência policial.

2 – Quando explode a guerra entre facções criminosas por disputa de territórios (na Maré há duas facções e uma milícia).

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Gustavo e a filha Sofia,no Parque União, uma das favelas do Complexo

Tais conflitos geram problemas graves: escolas fechadas, balas perdidas, trabalhadores que não conseguem voltar pra casa e um silêncio irreal, assustador. Ouvir o silêncio na favela dá medo porque você sabe que algo vai acontecer.

Na Copa, o governo do Rio de Janeiro, em parceria com o Ministério da Defesa, ocupou a Maré com 2,5 mil soldados. Seria uma estratégia de segurança preventiva, com a promessa de que os militares depois iriam embora e seriam substituídos pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O que não aconteceu. A ocupação fardada durou mais de um ano, ao custo de 500 milhões de reais. 

Muitas vezes, especialmente à noite, saí para observar os olhos assustados e despreparados dos soldados da ocupação. Eram 2,5 mil garotos de 18, 20 anos, em patrulhas noturnas, com tanques de guerra bloqueando os becos e as ruas da favela.

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Crianças da Maré viram figurantes compenetrados, enquanto o improvisado set para o ensaio fotográfico é preparado

Na Festa de São João, assisti a uma cena bizarra: os militares distribuíam doces para as crianças, como faziam as tropas americanas na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Outra vez, enquanto assistia a um show de rock em Vila do Pinheiro, umas das favelas da Maré, a cada 15 minutos passava um tanque de guerra entre o palco e a plateia. E presenciei a eclosão de um tiroteio enquanto a televisão tocava Vai Passar, de Chico Buarque.

Dois acontecimentos que marcaram minha vivência na Maré – acontecimentos que, de certa forma, ainda me fazem ter confiança no ser humano. Um dia, uma senhora que morava na minha rua atravessou a linha de tiro para me ajudar a sair da confusão.

E houve aquele dia em que eu e Henrique caminhávamos em direção à casa de uma família que pretendíamos retratar quando o confronto entre o Bope e os traficantes nos surpreendeu. Conseguimos chegar à casa, mas imaginamos que, com aquele clima, a foto não sairia.

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Gilson Jorge, ativista da ONG Luta pela Paz, com sua mulher Renata e o cão Feliz

Mas as cinco mulheres, de três gerações, e mais um menino, se posicionaram para a foto de uma forma tão forte, espontânea, altiva, e com um olhar tão humano que entendi o sentido do que estávamos fazendo. Lá fora, os tiros de uma guerra infindável; do outro lado da porta, no pequeno quintal, toda a beleza e a força das mulheres da Maré. 

A maioria das minhas vivências na Maré não passou pela violência e não por acaso as protagonistas de minhas fotos são quase sempre mulheres. Lembro, com especial apreço, a mulher vestida de azul, sorrindo em cima de uma laje. Uma autêntica Iemanjá velando sobre aquele mar de casinhas e de seres humanos.

Para Priscilla Monteiro, atriz e psicóloga, quem mora na favela não pode se acostumar com a violência. “Toda vez que os tiros cessam, as crianças voltam a brincar, as mães acompanham os filhos à escola, os velhos continuam a jogar dominó e tudo recomeça . Não nos acostumamos. Nós resistimos.”

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Ruth Rosa Costa, baterista do Canto Cego (rock alternativo), e sua amiga Ana Carolina Oliveira

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