Uma frustração recente foi perceber que as diversas menções à livros e bibliotecas na versão em quadrinhos de Walking Dead tinham sido omitidas na série de TV. Na segunda temporada, episódio 5, o mala Dale diz “se eu soubesse que o mundo estava acabando, tinha trazido melhores livros”. Essa foi uma das poucas referências importada do quadrinho, onde livros e bibliotecas são recorrentemente mostrados como elementos de resgate da herança cultural perdida, abrigo e local de busca por informações que podem auxiliar na sobrevivência.
Pestes, zumbis e desastres estão na nossa mitologia e em nossas religiões. Mas algum de vocês já pensou seriamente sobre a iminência do fim do mundo como conhecemos? Eu já. E para o caos tomar conta, é necessário muito pouco. Uma guerra localizada que deixa cidades sem energia elétrica por algumas semanas (Síria, distante de nós?). Uma tempestade de grandes proporções que deixa milhares de pessoas ilhadas e sem abrigo (chuvas de verão, distante de nós?). Uma seca prolongada que destrói plantações e eleva os preços dos alimentos, causando distúrbio econômico (sertão nordestino, distante de nós?). Uma erupção vulcânica que bloqueia luz solar e cancela vôos em escala global (Chile, Vesúvio, distante de nós). Uma gripe ou bactéria resistente à vacinas que circula pelo mundo viajando de avião (gripe aviária, distante de nós?).
Então, o mundo está se esvaindo. Em um cenário pós-apocalíptico não há energia elétrica, logo computadores e smartphones não servem pra nada. Sem internet, como nos comunicamos e encontramos informações para sobreviver? O que você precisa? De uma biblioteca, claro.
Se um futuro apocalíptico não é nenhuma impossibilidade, então as bibliotecas se tornam uma boa maneira de preservar nosso conhecimento e quem sabe, a humanidade de fato. Talvez a própria cura para uma epidemia se encontre em um livro de medicina. É o que ensina toda literatura e filmografia básica sobre epidemias globais, apocalipses robóticos e ataques zumbis. Não há cena mais clássica do que em “Um dia depois de amanhã”:
[Os refugiados na New York Public Library estão queimando livros para se manter aquecidos]
Elsa: O que você tem aí?
Jeremy: A Bíblia de Gutenberg. Peguei na sala de livros raros.
Elsa: Você acha que Deus vai te salvar?
Jeremy: Não, eu não acredito em Deus.
Elsa: Mas você está segurando a Bíblia bem apertado.
Jeremy: Eu estou protegendo-a. Esta Bíblia é o primeiro livro impresso. Ela representa a aurora da Idade da Razão. Até onde sei, a palavra escrita é a maior conquista da humanidade. Você pode rir. Mas, se a civilização ocidental está acabada, eu vou salvar pelo menos um pedacinho dela.
Sendo assim, qual é o papel das bibliotecas e dos bibliotecários face, não só a um possível apocalipse zumbi, mas a qualquer outro desastre natural ou sobrenatural que assole a humanidade?
Como bem retratado por Kirkman em “The Walking Dead”, por George Stewart em “Só a Terra permanece”, por Bradbury em “Fahrenheit 451” e tantos outros livros sobre um mundo pós-apocaliptico, bibliotecas e bibliotecários podem assumir três papéis principais para auxiliar na sobrevivência da humanidade:
1) Herança cultural humana
A humanidade vêm há gerações deixando pedaços de sua própria história pra trás, seja acidental ou propositalmente. Garantir a estabilidade a longo prazo e acesso esses artefatos, objeto, dados, documentos ou registros, por meio da preservação e conservação dos materiais, bem como sua curadoria, é o que bibliotecas e bibliotecários vêm fazendo há milênios. Poucas pessoas se dão conta que as bibliotecas são as grandes responsáveis pela preservação da herança cultural humana.
Carl Sagan teve a grande sacada em Cosmos de dizer que, se a biblioteca de Alexandria não tivesse desaparecido, o homem teria chegado a lua mil anos antes. Em uma situação pós-apocalíptica a melhor maneira de não ter que reinventar a roda é aprender com os engenheiros do passado. Se eu quisesse construir uma estrutura de pedra simples para abrigo, mas sem saber como, bastaria olhar livros sobre construções de pedra e as pessoas que as construíram.
Poucos de nós possuem o conhecimento necessário para executar as atividades mais elementares à sobrevivência humana: colheita, caça, preparação de alimentos, geração de energia, saneamento, construção de abrigos, meios de transporte, etc. Entretanto, qualquer uma dessas atividades pode ser destrinchada e compreendida com diversos manuais simples de engenharia, medicina, biologia, física, química ou até mesmo escotismo.
Tom Hanks e Wilson teriam se saído muito melhor do naufrágio se tivessem uma biblioteca na ilha 🙂
2) Resposta a desastres
Informações sobre planos de emergência e evacuações em massa exigem o mais alto grau de coordenação e efeito. Bibliotecas podem assumir um papel vital de fonte de informação relacionada à saúde pública e prevenção de doenças, trabalhando junto às autoridades competentes. Pensem no potencial de coletar informações que poderão auxiliar os poucos humanos vivos a determinar a causa da doença, a fonte da infecção/vírus/toxina, aprender como ela é transmitida e como se propaga, como quebrar o ciclo de transmissão e, assim, evitar novos casos, e finalmente como os infectados podem ser tratados.
Mas os zumbis não estão sozinhos. Furacões, tornados, tempestades e enchentes devastam anualmente cidades mundo afora. Quando as bibliotecas respondem a esse tipo de desastre muitas vezes pensamos sua linha de atuação como uma simples reação aos eventos, trazendo à mente imagens de livros e documentos danificados, sendo recuperados pelos bibliotecários posteriormente.
No entanto, um componente relevante de preservação envolve o lançamento de bases para a resposta humana ao desastre. Desastres catastróficos podem prejudicar tanto as redes de comunicação física como as redes sociais, críticas para a resposta e recuperação eficiente. De suma importância para a gestão de recursos humanos no processo de resposta aos desastres é a manutenção de uma rede de compartilhamento de informações aberta e rápida entre os agentes de resposta (governos, defesa civil, sociedade civil). Ao facilitar a colaboração e o operacional independente da localização, as bibliotecas e suas ferramentas podem melhorar a resposta a desastres.
Bons exemplos dessa prática no Brasil é a seção de prevenção e resposta a desastres da Biblioteca Virtual em Saúde e a biblioteca do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre desastres.
Foi comovente também lembrar os casos dos furacões Katrina e mais recentemente Sandy, onde o prédio da biblioteca era um dos poucos locais públicos onde as pessoas podiam se aquecer, usar tomadas elétricas para carregar seus telefones e computadores, e dar sinal de vida aos familiares distantes. Nas cidades da Região Serrana do Rio e em Santa Catarina afetadas pelas chuvas, é provável que as bibliotecas tenham sido utilizadas como alojamento público e auxiliado na busca e disseminação de informações sobre vítimas e doenças.
Certamente é motivo de orgulho para os profissionais das bibliotecas poder reconhecer o impacto positivo que agregam à comunidade em tempos de necessidade. As bibliotecas devem ser a solução nesses momentos, e não um problema a mais.
3) Biblioteca como abrigo
Pensando comigo sobre a iminência real de um apocalipse zumbi, se eu ficasse preso na biblioteca em que trabalho, as dependências da UFRJ, similar a muitas outras bibliotecas, me dariam uma grande chance de sobrevivência em curto prazo. Não vou entrar nos detalhes do desenho arquitetônico do prédio mas basicamente só há um ponto de entrada, portas que podem ser bloqueadas facilmente movendo algumas estantes para trás delas.
Estantes podem servir de escudo, livros podem servir de proteção contra radiação solar e combustível para fogo (depois de um criterioso desbaste, obviamente). Por quanto tempo eu sobrevivira na biblioteca? Eliminando a melancolia e complicações de sobrevivência e concentrando no aqui e agora desse cenário, a biblioteca é um grande santuário para as primeiras noites de um apocalipse zumbi. Eu mesmo já passei uma noite na biblioteca no meio de uma calamidade e não foi nada mal.
Se tivesse o tempo necessário para pesquisa, que tipo de informação seria realmente útil para sobrevivência? Face a decomposição iminente dos colegas bibliotecários, será que o conselho de ética do CRB me condenaria por canibalismo? [provavelmente não contanto minha anuidade estivesse em dia, nem fizesse uma charge sobre o evento – thanks cauê e caruso]
Admirável mundo novo
Bibliotecários discutem continuamente as mudanças no universo das bibliotecas e como podemos melhor ajudar as pessoas a lidar com essa transformação, ao mesmo tempo que essas pessoas estão cada vez mais imersas em um novo mundo e aprendendo muitas coisas sem nosso auxílio ou intermédio.
O conhecimento armazenado na biblioteca só é sagrado dentro de um determinado contexto cultural. Quando esse contexto desaparece, torna-se nada mais do que um objeto a ser lacrado e preservado em um estado etéreo. Bibliotecários e os usuários muitas vezes percebem a biblioteca como o registro persistente do conhecimento coletivo da sociedade, mas acreditam que a criação deste depósito é inerentemente valiosa.
Quando pensei em escrever um texto sobre o papel dos bibliotecários face ao apocalipse zumbi, não estava tentando ser engraçadinho ou celebrar a cultura pop zumbi e vampiresca [engraçado seria ver um texto como esse publicado em uma revista qualis, aí sim]. Queria chamar a atenção para o fato de que uma mudança significativa em qualquer aspecto do ambiente das bibliotecas pode exigir uma mudança igualmente significativa no pensamento e comportamento humano, e aqueles que não se adaptarem poderão ter sérios problemas.
Na cultura pop televisiva, a diferença entre a biblioteca pré e pós-apocalipse é basicamente que as pessoas sumiram. Um erro bibliotecário inicial nesse cenário é perceber a informação guardada pela biblioteca como um valor de preservação, independente da comunidade que deu origem à essas informações e que desapareceram no apocalipse. Nós cometemos o erro de enxergar a informação como valiosa em si mesma, só percebendo tarde demais que seu valor é determinado pela comunidade.
Para o protagonista Ish Williams, do incrível livro pós-apocalíptico “Só a Terra permanece”, a biblioteca representa um estado de normalidade e a possibilidade de, eventualmente, fazer o mundo regressar a um estado superior, civilizado. Por muitos anos após o desastre, ele se agarra à ideia de que os povos civilizados vão precisar desse depósito de conhecimento a fim de resgatar o ponto onde a civilização anterior parou e continuar a avançar. Ele assume então o papel de guardião da biblioteca, cuidando de preservar o edifício para o futuro. O personagem ainda organiza uma escola entre os sobreviventes e tenta ensinar aos jovens o valor da leitura e escrita. Ele descobre, no entanto, que as crianças nascidas após a praga não tem contexto no qual inserir os livros que estão lendo, e sua aprendizagem de modo algum se relaciona com sua vida diária. Ish percebe que temas como a geografia em escala global têm pouca relevância para alguém que nunca deixa a vizinhança próxima, e matemática abstrata significa pouco para alguém que nunca irá aplicá-la.
Em uma reviravolta interessante, o tratamento da biblioteca como um lugar sagrado é levado ao pé da letra por seus filhos. Não tendo nenhuma compreensão real da civilização morta e, portanto, nenhum contexto para entender a importância dessa coleção de livros, elas só podem ver o acervo de livros como objetos misteriosos que Ish considera como sagrados, por razões além do entendimento de qualquer outra pessoa.
A mensagem positiva a ser tomadas a partir disso é que a biblioteca é inteiramente sobre pessoas, e a importância de seu conteúdo pode ser medida pela relevância de sua coleção para o povo. Quando as pessoas mudam drasticamente, e os seus hábitos e necessidades também mudam, a biblioteca pode rapidamente tornar-se irrelevante se não se adaptar para atender as necessidades das novas pessoas que buscam informações. Embora Ish tente convencer a nova civilização da importância deste tesouro de conhecimento, quando essa informação não atende às suas necessidades, não representa mais um recurso de vida, mas um museu preservado. Ish não pode mudar a biblioteca para atender às necessidades da nova civilização, pode somente selá-la e se concentrar em questões mais prementes.
Nós bibliotecários temos a capacidade de mudar as bibliotecas para que possam continuar a ser relevantes para os usuários com diferentes necessidades e meios de acesso à informação e dessa forma continuar a servir o nosso propósito primordial. É necessário, no entanto, entender as necessidades de nossos usuários para ter certeza de que estamos fornecendo informação que é valiosa de uma maneira que faça sentido para eles. Embora seja necessário traçar uma linha divisória a fim de transmitir a importância das fontes tradicionais, adaptando-se às necessidades dos usuários de novos recursos, devemos ter cuidado para não repetir o erro do personagem do livro, tentando vender informações e formatos que nossos usuários não valorizam. Por outro lado, também podemos fazer como ele, e examinar criticamente nossas crenças e práticas, para que possamos continuar a ser relevantes, em vez de desvanecer.
A cultura pop zumbi nos diz que as bibliotecas são locais ao mesmo tempo seguros e misteriosos. Acredito que um entendimento desses temas pode ajudar a definir o papel da biblioteca na cultura atual e futura de maneira geral.
Precisamos reconhecer que, embora a biblioteca esteja mudando rápido internamente, a percepção das bibliotecas externamente permanece inalterada. A biblioteca ainda é um lugar misterioso que contém itens que podem ou não ser de valor natural e sobrenatural, e as vezes oferece assentos confortáveis para leitura e um ótimo lugar para se reunir. Devemos abraçar estes temas e divulgar a biblioteca de uma forma que desmistifica o que uma biblioteca contém de fato e ao mesmo tempo atender ao desejo de um local que é seguro, neutro e não perturbador. Também devemos salvaguardar nossos tesouros, porque nunca se sabe quando haverá um apocalipse zumbi.
Quais são suas armas contra o ataque zumbi?
Inspiração
Web 2.0 for Disaster Response and Recovery
Earth Abides: Learning From A Post-Apocalyptic View of the Library
What Popular Culture is Telling Us About Libraries and Why We Should Listen