O que é o PMLLLB-SP?
O Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (PMLLLB) de São Paulo é uma lei (16.333) instituída no município dia 18 de dezembro de 2015. Trata-se de uma enorme conquista para a cidade no que diz respeito às políticas públicas relacionadas ao livro e à leitura. Tem como princípios “o reconhecimento à literatura como direito humano, a compreensão de sua natureza formativa e o incentivo à imaginação, à criação e à educação literária” e “a defesa e a promoção da diversidade cultural, de gênero, étnico-racial, política e de pensamento”.
Foi constituído por meio de um grupo de trabalho com especialistas e representantes da sociedade civil de maneira democrática e acessível às demandas postas. É um documento que visa “estabelecer políticas públicas claras para o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas e garantir recursos para sua implementação”. Estipula metas de curto, médio e longo prazo, devendo obter resultados práticos de seis meses à dez anos desde que foi criado. Apresenta cinco eixos principais: democratização do acesso; fomento à leitura e à formação de mediadores; valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico; desenvolvimento da economia do livro; e literatura. Outros princípios do Plano são garantia de acesso considerando as pessoas com deficiência, incentivo ao mercado do livro, à produção literária e à formação de leitores e interação com políticas estaduais e nacionais ligadas à área.
Qual a importância do plano? Discutindo gênero
É uma lei que direciona como deverá ser feito o fomento e a construção de atividades na prática, e que valoriza o protagonismo da literatura periférica na cidade, assim como da literatura feita por mulheres, por negros e pela população LGBT. Um de seus objetivos é “promover e fomentar a literatura não hegemônica, a literatura marginal periférica e a literatura de mulheres, negros e LGBT.”
Vivemos num contexto de policiamento ideológico contrário às discussões de gênero, de orientação sexual e de questionamento do machismo. Prova disso foi a visita surpresa do vereador Fernando Holiday (DEM) às escolas municipais com o intuito de verificar uma possível “doutrinação comunista/LGBT”, defendido pelo programa “Escola sem partido”.
Ter uma lei como a do PMLLLB que legitime essas discussões e sirva de referência é de extrema importância nesse momento. Esta vai ao encontro do que está presente no Manifesto Ifla/Unesco para as Bibliotecas públicas e à Lei de diretrizes e bases da educação.
Segundo o Manifesto “A participação construtiva e o desenvolvimento da democracia dependem tanto de uma educação satisfatória, como de um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação. A biblioteca pública – porta de acesso local ao conhecimento – fornece as condições básicas para uma aprendizagem contínua, para uma tomada de decisão independente e para o desenvolvimento cultural dos indivíduos e dos grupos sociais”.
Já na lei 9.394/1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional estão garantidos os seguintes princípios “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância”.
Um documento elaborado por relatores da Organização das Nações Unidas e enviado ao governo brasileiro essa semana aponta a censura presente no programa “Escola sem partido”, no sentido em que restringiria o acesso dos indivíduos à informação, abrindo brechas “arbitrárias”. Criticou-se também a retirada do termo “orientação sexual” dos textos curriculares entregues ao Conselho Nacional de Educação. Para a ONU é fundamental a discussão de gênero e de diversidade sexual como uma maneira de se prevenir estereótipos de gênero e atitudes homofóbicas por parte dos estudantes.
Logo, as bibliotecas públicas como espaços de informações locais precisam prezar pelos princípios da pluralidade de ideias políticas e de pensamento, e promoção da diversidade cultural, de gênero e étnico-racial. São pontos fundamentais na construção de uma democracia, visando garantir ao indivíduo a construção de sua cidadania e o seu protagonismo enquanto ser atuante da sociedade.
O PMLLLB e o protagonismo da literatura periférica
A promoção e o fomento da literatura periférica são pontos-chave presentes na lei. Pautada pelo princípio da bibliodiversidade (diversidade da produção editorial e de acervo quanto aos títulos, autores, editores, idiomas), busca-se garantir um espaço adequado para a literatura não-hegemônica e para a literatura periférica.
Uma das metas de curto prazo da lei em relação à democratização do acesso é:
– Assegurar que o acervo contenha livros dos escritores da comunidade e obras que retratem a literatura marginal periférica e a ancestralidade.
No que diz respeito à valorização institucional da leitura:
– Criar projetos de formação de lideranças locais para ações de fomento ao livro e à leitura e premiar as melhores práticas;
– Garantir que a bibliodiversidade seja exigência nos critérios de aquisição de acervo e de outros projetos em editais de fomento à leitura e à literatura;
– Fazer das bibliotecas de acesso público um espaço de interação social, especialmente nas periferias em que faltam equipamentos públicos;
– Organizar, com diferentes coletivos, ações culturais em que a literatura seja uma das linguagens desses eventos.
Outros pontos presentes na lei,
– Incentivar e apoiar os saraus para que se multipliquem nas periferias da cidade e nas áreas centrais, ampliando-os para diferentes setores, como forma de resistência, participação e reflexão em prol da leitura;
– Apoiar eventos literários que normalmente não são contemplados pelo poder público;
– Estimular e apoiar ações de saraus, contações de histórias, slams (batalhas de poesia), clubes de leitura e programas da literatura marginal periférica.
Esse papel de destaque da literatura periférica está ameaçado pela política de doação de livros proposta pelo programa “Biblioteca Viva”. Como garantir o princípio da bibliodiversidade e o protagonismo da literatura periférica em um contexto em que grandes editoras estão doando 200 mil exemplares que irão compor o Sistema municipal de Bibliotecas? A produção de autores independentes e de editoras pequenas está ameaçada, assim como a garantia da diversidade na coleção das bibliotecas municipais.
O PMLLLB existe como uma proposta de política afirmativa para amenizar a desigualdade do mercado editorial e abrir espaço para novas publicações inclusive das comunidades locais onde essas bibliotecas estão instaladas. Está claro na lei “Garantir a participação de editoras independentes – micro, pequenas e médias – nos programas de incentivo à publicação e outros editais para o setor, a fim de evitar que se transformem em meios de fortalecimento de grandes grupos editoriais”. Então como, ““Valorizar o poeta, o escritor da periferia e sua literatura” e “Estimular o surgimento de novos escritores por meio de atividades diversificadas e apoiar financeiramente escritores independentes e projetos de produção literária”?
Basta que a distribuição do orçamento municipal, e que a criação de editais, de eventos, de fomento à produção literária independente leve em consideração esses pontos previstos na lei e que o programa Biblioteca Viva parece ter esquecido.
Além de obras de literatura periférica no acervo das bibliotecas municipais, é primordial que as atividades culturais desenvolvidas nesses espaços sejam elaboradas em consonância com os desejos e as necessidades das comunidades atendidas e dos coletivos periféricos de cada região.
Quais as inconsistências entre o PMLLLB-SP e o Programa Biblioteca Viva?
São vários pontos de desencontro entre o Programa Biblioteca Viva e o PMLLLB apesar desta lei estar presente na portaria do Programa (número 36, de 25 de março de 2017).
Uma das questões é em relação ao desenvolvimento de coleções e à convocação de bibliotecários.
No PMLLLB consta “Utilizar as políticas públicas para criar e desenvolver coleções que sejam inclusivas e que reflitam o caráter multiétnico do país e da cidade”. Já o Programa Biblioteca Viva não deixa claro quais são os critérios utilizados na aquisição e no descarte de materiais que vem acontecendo; e tampouco se irá usar o documento que está sendo feito por uma comissão elaborada para pensar o desenvolvimento de coleções do Sistema Municipal de Bibliotecas, e que deve ser finalizado ainda esse mês.
A coleção de uma biblioteca é pensada sempre de acordo com a comunidade a que ela atende. Existe a necessidade de se realizar estudos de usuários e ninguém melhor para entender da comunidade do que os próprios trabalhadores daquele equipamento. A biblioteca pública precisa ter garantido o princípio da bibliodiversidade e da pluralidade de ideias. Para isso existem os bibliotecários, profissionais responsáveis e capacitados para desenvolverem uma política de coleções adequada. Aquisição e descarte de materiais são feitos baseados em critérios, que não podem ter como base apenas princípios ideológicos.
Quanto à presença de bibliotecários, existem mais de 150 profissionais aprovados em concurso público homologado no ano de 2016 esperando para trabalhar nas bibliotecas municipais e nos Centros Educacionais Unificados (CEUs), muitos com Mestrado e Doutorado, prontos para contribuírem com a melhoria das unidades informacionais da cidade.
Outra questão, no PMLLLB temos claro a necessidade de articulação entre as bibliotecas públicas municipais e as bibliotecas comunitárias,
– Garantir apoio para bibliotecas comunitárias por meio de programas de fomento;
– Incentivar a interação entre bibliotecas comunitárias e seu entorno, em caráter de corresponsabilidade, garantindo sua sustentabilidade;
– Criar política pública de apoio às bibliotecas comunitárias, desenvolvendo programa específico para esse fim, particularmente nas áreas mais pobres em infraestrutura urbana, em parceria com entidades que já desenvolvam ações locais ou que estejam interessadas em desenvolvê-las.
As bibliotecas comunitárias desempenham um papel fundamental no desenvolvimento de atividades leitoras na cidade, e nem foram citadas pelo programa Biblioteca Viva, desrespeitando o que consta no PMLLLB.
Outros pontos de discordância foram levantados pela educadora e mediadora de leitura Mara Esteves no artigo publicado na Biblioo.
O Biblioteca Viva é a vitrine para a proposta de privatização da gestão das bibliotecas municipais. Visa servir como base indo de encontro à proposta democrática de gestão que consta na lei do PMLLLB.
Busca-se uma gestão democrática com participação popular. A portaria de número 77 SMC-G/2016 cria os conselhos comunitários consultivos para as bibliotecas públicas municipais.
Cada conselho é um colegiado com funções consultivas e fiscalizadoras que visa o controle social e a participação popular na defesa e promoção das políticas públicas envolvidas na área. Cabe ao conselho participar da elaboração de políticas públicas, assim como colaborar na definição de diretrizes, prioridades e metas das bibliotecas; propor, analisar e acompanhar projetos para as bibliotecas; avaliar o desempenho das bibliotecas e propor alternativas; e principalmente mediar a relação da comunidade do entorno da biblioteca com o poder público.
Trata-se de uma gestão democrática e compartilhada entre a comunidade e o poder público, nesse sentido é absurda a proposta de privatização da gestão por meio de Organizações Sociais, ferem-se a portaria e a lei.
Por que o PMLLLB-SP incomoda tanto?
Em dezembro de 2016 foi constituído o Conselho do PMLLLB com representantes do poder público e da sociedade civil. Os representantes da sociedade civil foram escolhidos por meio de voto popular. Foram contemplados representantes das seguintes áreas: bibliotecas; bibliotecas comunitárias; centro de pesquisas, universidades e faculdades; coletivos culturais relacionados à leitura e literatura; educação; escritores; mercado do livro; e pessoas com deficiência.
Estamos na segunda quinzena de abril e os representantes do poder público vem postergando a primeira reunião oficial do Conselho, cada hora sob uma desculpa diferente.
Tentaram questionar a legalidade do Conselho, o que não foi possível já que a eleição aconteceu de maneira legal. E fica a pergunta, por que esse boicote ao PMLLLB?
Trata-se de uma lei municipal que é referência para a elaboração de leis relacionadas ao livro e à leitura em outras cidades brasileiras. Que foi feita de maneira democrática, ampla, por meio de audiências públicas, grupos de trabalho. É uma enorme conquista para a cidade. Mas, é uma lei que apresenta pontos em discordância com o programa Biblioteca Viva e com a já anunciada privatização da gestão das bibliotecas municipais e de centros culturais.
A lei foi elaborada e votada de maneira democrática. O Conselho existe como fiscalizador das metas do plano, e terá um papel fundamental para a sua implementação.
A questão que fica é, por quê o PMLLLB incomoda tanto a gestão atual? Senhor secretário de Cultura, André Sturm, e o representante do poder público no Conselho, Alonso Alvarez, respeitem a lei!