Por José Castilho no Publishnwes

Os resultados levemente positivos dessa terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil causa certo estranhamento em profissionais do setor e pessoas interessadas no tema. Com um cenário tradicionalmente difícil na área educacional e cultural, principalmente no acesso e disseminação da literatura, o que teria levado a esse resultado?

A primeira impressão é que temos um paradoxo, algo contrário às expectativas tão ao gosto do senso comum que nos bombardeia há muitos anos com frases do tipo “brasileiro não gosta de ler”! Eu costumo responder a essa observação com uma contestação: “brasileiro não lê porque não tem acesso à leitura” ou “brasileiro não lê porque ainda não conquistou o seu direito à leitura”.

O que proporcionaria esse resultado, que se afirma positivo em todos os ângulos da pesquisa? Há um crescimento entre os dados de 2011 e 2015 tanto dos livros lidos por ano (4,0 para 4,96), dos livros lidos inteiros (2,1 para 2,43) e dos livros lidos em partes (2,0 para 2,53).

Com políticas públicas descontinuadas em contextos históricos que em quase nada desenvolveram esforços verdadeiros e de alcance nacional na formação de leitores plenos, minimizando a importância desta formação nos currículos e nas práticas educacionais e culturais, realmente fica difícil compreender avanços. Flutuamos enquanto nação ao sabor das vontades e compreensões políticas mais ou menos republicanas das autoridades públicas em todos os níveis do Estado quando se trata de fortalecer programas e ações voltadas ao desenvolvimento da leitura da população. Estes são programas complexos, de longo prazo, que requerem estudos e investimentos constantes e que não podem ser substituídos simplesmente pela aquisição e distribuição massiva de livros, como os exitosos programas de muitos anos do MEC, por exemplo. Há muito sabemos que apenas adquirir e distribuir livros não são medidas suficientes para superarmos a barreira da não leitura no país. É certo que é preciso adquirir e renovar bibliotecas públicas e escolares de acesso público, mas apenas esta política não resulta, isoladamente e em escala nacional, em leitores.

Mergulhados no pessimismo, que como nos ensina o Aurélio, é a “disposição de espirito que leva o indivíduo a encarar tudo pelo lado negativo, a esperar tudo do pior”, no entanto, constatamos que crescemos enquanto país leitor nesta última pesquisa. E esse crescimento aconteceu em outros ângulos da análise, não apenas nos livros lidos.

Vejamos alguns exemplos do que estou afirmando:

1. A população leitora passou de 50 para 56% do total, ou seja, 104,7 milhões de pessoas. Isso significa 16,5 milhões de pessoas ou mais que uma população e meia de Portugal.

2. Esse crescimento do percentual de leitores ocorreu em todo o território, à exceção do Nordeste que decaiu um pouco e cujas razões desta queda precisamos pesquisar mais acuradamente.

3. Houve um crescimento significativo no número de livros lidos tanto por estudantes quanto por não estudantes, o que é importante se considerarmos que 78 milhões de pessoas acima de 18 anos não completarão o ensino médio no Brasil de hoje, segundo dados da SECADI/MEC. A leitura poderá ser um dos poucos instrumentos de inserção cultural e social que esses cidadãos poderão ter no mundo da informação e da tecnologia que tem como base a escrita.

4. Aumentou em nove pontos percentuais o número de pessoas que declaram gostar de ler (muito e pouco) e diminuiu em sete por cento os que declaram que não gostam. Se levarmos em conta as diversas mídias concorrentes, e somá-las ao desestímulo generalizado pela leitura, esse dado passa a ser especialmente relevante.

5. Igualmente relevante é a constatação da pesquisa que demonstra que 81% dos leitores são usuários da Internet, em contraposição aos 63% da população em geral. Dupla constatação que considero positiva e pedagógica: os que leem incorporam mais a Internet e o acesso virtual do que os que não leem o que dá a dimensão do que ainda podemos alcançar no mundo virtual e do quanto estão errados os que afirmam da incompatibilidade entre os suportes tradicionais e inovadores da leitura.

Antes que me tomem por um Cândido dos trópicos, esclareço que esse conjunto de dados positivos não significa que estamos em boa situação leitora. Ou mesmo que a velocidade desse crescimento, como demonstra a pesquisa, seja sequer satisfatória. Há inúmeros dados e índices negativos que apontam para nossas enormes dificuldades e desafios. Por exemplo, segundo o INAF, 75% da população alfabetizada tem algum nível de analfabetismo funcional, ou seja, 140 milhões de brasileiros não conseguem imprimir significado e obter cognição total de uma página de livro ou de um texto qualquer.

Apenas este dado já seria suficiente para demonstrar que vivemos uma trágica situação conjuntural que nos empurra, se não a mudarmos, para um destino cruel no mundo da informação e do conhecimento, ou seja, a de sermos sempre um país condenado a reproduzir o que outros povos mais preparados intelectualmente nos mandam fazer.

Levanto algumas razões deste modesto, mas incisivo aumento de leitores no país nesse último quadriênio.

1. Os últimos dez anos demonstram um aumento sem precedentes na escolaridade média da população e a redução da proporção de analfabetos e indivíduos com escolaridade até o ensino fundamental.

2. Igualmente houve no mesmo período um aumento da proporção de brasileiros com ensino superior e, sobretudo com ensino médio. Parece-me, e é algo a ser mais bem apurado, que esse dado tem a ver com os resultados da pesquisa que demonstram que a população adulta fora da escola está lendo mais que em 2011.

3. Embora se leia mais no domicílio, ganha espaço o hábito de ler em espaços públicos, o que vem ao encontro do esforço realizado em vários níveis de se criar ou recriar espaços de leitura acolhedores e de convivência entre as pessoas, provocando trocas e experiências coletivas de leitura. Refiro-me aqui às bibliotecas de acesso público, aos saraus que se multiplicam, aos festivais literários, às livrarias repaginadas, entre outras iniciativas que se somam Brasil afora em espaços e eventos multiuso onde a vivência cultural e interativa entre pessoas e textos se complementa fora do espaço e da vivência privada.

4. A leitura indicada ou que provenha de incentivos e mediação também aparece fortemente na pesquisa e, além das figuras tradicionais da mãe e da professora como poderosas formadoras de leitores há um número importante de outras pessoas que incentivam a leitura, demonstrando que mesmo na era virtual é importante promover as atividades dos mediadores, ação influente nos resultados crescentes de leitura no país.

5. A revelação de que metade dos entrevistados indica o empréstimo privado ou de instituições como o principal meio de acesso ao livro reforça também os esforços para a democratização do acesso ao livro pelo incremento de programas de criação ou modernização de bibliotecas no país.

Em resumo, e para não continuar a desfilar mais indícios e indicadores que demonstram uma convergência entre dados obtidos na pesquisa e os programas, ações e projetos que existem de incentivo à formação leitora no país nos últimos anos, quero concluir fazendo mais algumas considerações que contribuem para explicar os números crescentes que obtivemos em 2015.

O primeiro ponto que chamo a atenção é que desde 2006, ou há dez anos, o Brasil pactuou um Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) e este pacto envolveu o conjunto de atores do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas. Essa iniciativa, de origem na política cultural e educacional, não pode ser desconsiderada como um forte incentivo aos milhares de trabalhos pela formação leitora que se realiza há décadas em todo o Brasil e que é diretamente responsável pelo aumento do número de leitores de maneira permanente, para além dos governos e programas públicos.

Se hoje temos um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional por uma Política Nacional de Leitura e Escrita, é porque o PNLL e o movimento social, cultural e educador que ele agregou sob seu texto e objetivos é hoje um valor simbólico fundamental para o incentivo à formação leitora no país. Não é sem emoção, mas também com o olhar de pesquisador, que constato que o PNLL hoje, e em todos os quadrantes do país, é comumente chamado pelos militantes da leitura de “o nosso plano” ou “os nossos eixos”.

Para além do simbólico, a ação indutora do PNLL se expressou em programas federais. Os mesmos alicerces e os mesmos eixos foram a base da formulação no plano federal e em muitos estados e municípios para projetos como a universalização das bibliotecas públicas, colocando-as em quase todas as cidades brasileiras. Lembro que havia em 2003 quase 1.700 municípios sem bibliotecas públicas, número que caiu para cerca de 30 em 2010 e que hoje se estima em torno de um número variável de 120. A possibilidade de acesso ao livro por intermédio de bibliotecas cresceu enormemente nos últimos dez anos. Igualmente deve ganhar destaque o início de uma mudança de mentalidade em relação ao lugar, ao papel e o modo de fazer das bibliotecas contemporâneas, aqui muitas vezes traduzidas como bibliotecas parque, ou, como as chamamos, bibliotecas vivas. Programas de apoio financeiro, seminários de formação com experiências exitosas do exterior foram praticadas com certa frequência nesses últimos dez anos e esse movimento possibilitou novos rumos e objetivos mais elevados dos equipamentos culturais bibliotecários no acolhimento e na formação de neoleitores.

As iniciativas da Diretoria do Livro e Leitura e do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas do MinC, dos Comitês (heroicos) do PROLER, de organizações da sociedade civil, em instaurar, formar e implementar os programas de formação de mediadores de leitura; o investimento no programa Agentes de Leitura pelo MinC em muitas cidades a partir de 2009, também se constituem em ações concretas e realizadas que não podem escapar a uma análise minuciosa e objetiva quando procuramos entender o crescimento de leitores no país.

Em suma, ao apontar inúmeros pontos positivos que caracterizaram a luta por um país de leitores nos últimos dez anos, condensando conceitos e práticas acumuladas há dezenas de anos, eu defendo que o conjunto desses esforços públicos e privados, principalmente da cadeia criativa, produtiva, distributiva e mediadora, começou a dar seus primeiros resultados.

Ao contrário de nos espantarmos com resultados de uma pesquisa com sólida base técnica, tendo como suporte desse espanto a credulidade ou a incredulidade, atitudes que podem ser importantes nas práticas religiosas, mas que são danosas quando se trata de política pública em sociedades democráticas, nós precisamos aprofundar as pesquisas que pioneiramente o IPL em bom momento deu início no Brasil com o apoio do CERLALC.

Objetivamente os resultados deste Retrato da Leitura no Brasil 2015 apontam que há mais acertos do que erros, mais eficiência que deficiência nas ainda insuficientes ações e programas que temos. Não admitir isso é cair num pessimismo que só levará a paradoxos e a perplexidades imobilizadoras.

É importante lembrar que esses movimentos só foram possíveis porque vivemos nos últimos anos em plena democracia onde as palavras inclusão, diversidade, pluralidade, participação e emancipação cidadã foram vértices de políticas públicas de cultura e educação. Sem este ambiente democrático, participativo e includente, seria impossível uma via de crescimento da leitura. A inclusão de novos leitores, a conquista do direito humano à leitura preconizado no PNLL e que sobressai no Projeto de Lei da Política Nacional de Leitura e Escrita em tramitação só é possível se a sociedade brasileira souber manter os rumos jurídicos e políticos de uma sociedade verdadeiramente democrática, constitucionalmente regida pela vontade popular e voltada aos interesses da maioria da população brasileira. Não retrocedamos dez anos quando o livro e a leitura não eram assunto de política pública e estavam aparentemente mortos para os governos.

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