Em 2011 eu visitei a recém inaugurada Biblioteca-Parque de Manguinhos e saí de lá estupefato: uma biblioteca de primeiro mundo, bem no meio da faixa de gaza carioca, do ladinho da nossa cracolândia. Era a consolidação da santíssima trindade das bibliotecas públicas (recreação, informação e formação) e um modelo para as demais bibliotecas no nosso quintal e toda uma classe de bibliotecários sem muitos parâmetros, como deveria ser uma biblioteca perfeita.

Rapidamente eu quis realizar alguma atividade que congregasse amigos no espaço, para que pudessem saber que aquela biblioteca existia e ver como ela funcionava, pois só acreditava quem via, e que nós, enquanto cidadãos, tínhamos o direito e o dever de usufruir. Lá foi realizado o primeiro Bibliocamp e foi onde conheci pessoas que tocavam o projeto das Bibliotecas-Parque com amor e na raça, como Alexandre Pimentel e Vera Saboya.

Depois vieram as Bibliotecas-Parque da Rocinha, Niterói e Estadual, revigorando uma frente de design arquitetônico e de serviços, copiando o que se via de melhor em bibliotecas fora do Brasil e em outras bibliotecas de excelência por aqui (Mario de Andrade, Biblioteca São Paulo, Biblioteca Pública do Paraná, Biblioteca Pública do Acre, por exemplo). A Biblioteca-Parque Estadual (BPE) foi o exercício final de sublimação das feias bibliotecas de bairro, que convivemos nas décadas de 1980 e 1990, para o que as bibliotecas deveriam propor nos dias de hoje.

Mas vejam só, a alegria que durou pouco. Copio o Felix Richter: “é um projeto tão fantástico, que nem parece que estamos no Brasil. Pois bem, a metáfora fez sentido. Pezão já anunciou que deve fechá-la. E outras três também.”

No meio desse ano eu realizei o segundo Bibliocamp, exatamente no início do período conturbado de redução de horários e encerramento das atividades regulares da BPE. Recordemos: a Biblioteca Parque Estadual permaneceu fechada por quatro anos. Ela foi reinaugurada poucos meses antes da eleição para governador. R$ 70 milhões investidos na reforma, um ano de funcionamento depois, a biblioteca fecha por falta de grana.

A primeira coisa que me vem à mente é que o mais imbecil que se pode fazer em termos de gestão pública é fechar uma biblioteca, uma vez que o investimento e patrimônio se encerram ali dentro: o empréstimo dos livros, o espaço físico e os funcionários. Fecha-se a biblioteca, interrompe-se toda uma cadeia de valor econômico positivo. Isto é, o contribuinte financia a aquisição de ativos que podem ser distribuídos a todos os demais cidadãos (neste caso, os livros e a premissa do empréstimo domiciliar, o usufruto do espaço público e a presença do profissional qualificado).

Se o patrimônio adquirido pelo erário não circula ou não é acessível, o prejuízo é óbvio e cumulativo. É o mesmo crime que, desses recorrentes, um hospital repleto de equipamentos de ponta, mas que permanece fechado. O governo, invariavelmente, gasta mais com medidas posteriores e a economia imediata perde sentido. Jamais poderia se alegar o fechamento de uma biblioteca por contenção de despesas. É contraproducente.

Outro aspecto importante, bem lembrado pela Malena Xavier, é que “fechar um equipamento assim é o carimbo nítido do descaso com programas federais como o Plano Nacional do Livro e Leitura, que tendo seu projeto de lei decretado em 2012, tem como seu eixo de nº 1, o acesso à informação. Descaso com portarias ministeriais, frentes parlamentares, pessoas da sociedade civil se doando por inteiro para abrir uma biblioteca comunitária aqui e ali, para suprir exatamente este tipo de lacuna deixada pelos governos.”

Em relação às iniciativas da sociedade civil, acho louvável a vontade de assumir algum tipo de compromisso com as BPs face ao fechamento temporário: tão logo feito o anúncio do corte a conversa na interweb girou em torno do estabelecimento de uma contribuição mensal ou programa de associados (que as elites americanas adoram fazer com suas bibliotecas, mas sem escapar da falácia da filantropia e das isenções fiscais).

A meu ver seria perfeitamente possível e oportuno assumir uma modalidade de subscrição (que historicamente foi como as bibliotecas públicas nasceram) e realizar o delivery dos livros por meio de motoboys ou uber em local e hora combinada. O mensalista teria direito a, digamos, cinco livros/entregas. Uma startup faria bem, mas a questão é que não precisamos de um novo sharing economy, porque as bibliotecas já estão pagas.

Os contribuintes financiam a manutenção de bibliotecas e seria um equívoco investir diretamente em um produto ou serviço adicional, quando o esforço despendido seria igual ou menor para estabelecer mecanismos de fiscalização do investimento realizado (gestão participativa, transparência de contas, orçamento dedicado, basicamente). Se pagamos impostos diretos, imposto de renda, o valor do produto, mais o adicional proposto na subscrição à biblioteca, então estamos pagando quatro vezes pelo valor de um. É a mesma lógica de pagar plano de saúde e escola particular para os filhos, quando optamos pelo exclusivismo em vez de fazer valer os impostos que já pagamos previamente.

O ponto final é que o contrato entre a Secretaria de Cultura (SEC/RJ) e o Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG) (O.S. – Organização Social) que gerencia a rede de Bibliotecas-Parque do Rio) foi de R$96 milhões por cinco anos. Recursos provenientes do “poder público”. As bibliotecas fecharam porque o governo do estado não repassou as parcelas conforme combinado. Decerto, os recursos são ilimitados para algumas ações de governo (blitz contra arrastão ou olimpíadas, por exemplo) e restritos em outras, mas enquanto contribuintes precisamos avaliar se: 1) vale a pena investir em bibliotecas públicas; e 2) quanto custa a manutenção de uma rede de bibliotecas públicas.

Sobre: 1) não sou capaz ainda de responder, mas estou interessado nisso e me afeta diretamente. Há muitos casos no Brasil em que o lucro é privado, mas o prejuízo é público (o IDG tem a concessão, mas quem reforma o prédio e compra os livros é o estado); em relação ao ponto 2), meu voto é sim porque a biblioteca pública é niveladora social. Espaço que não exige identificação para entrar e compartilha a ponto de reduzir a zero o valor do objeto de consumo. Se vale de incentivo, de janeiro a outubro de 2015, aproximadamente 570 mil pessoas frequentaram as quatro Bibliotecas-Parque do Rio.

Finalmente as prefeituras do Rio e Niterói se prontificaram a ajudar a manter as Bibliotecas abertas até o final de 2016 ao custo de R$1,5 milhão por mês. O que só causa comoção no eleitor desavisado e que desconhece as outras dezenas de bibliotecas municipais que sobrevivem em situação de calamidade. BPE e BPN vêm funcionando meia-bomba desde maio, com o horário de 11h às 19h, entre terça e sábado. Manguinhos e Rocinha 10h30 às 18h30. Muito longe do ideal, mas é o que nos é oferecido por enquanto.

No dia 28 de novembro deste ano aconteceu um ato em defesa das Bibliotecas-Parque. Cento e cinquenta funcionários do IDG estão em aviso prévio. Nas poucas horas que permanecemos na entrada da BPE foi grande o número de pessoas frustradas por não saber que naquele dia a Biblioteca estava fechada. Muitas delas voltaram para casa sem saber a razão do fechamento, apenas mais uma biblioteca fechada, mais outra experiência ruim no uso dos aparelhos públicos. Quem sabe o CCBB!

Me resta deixar aqui um abraço pro pessoal do Movimento Abre Biblioteca Rio, que tem repercutido o problema e feito a denúncia. Mídia independente cumprindo papel importantíssimo.

É muito improvável que as Bibliotecas-Parque se precarizem a ponto de implosão no curto prazo. Mas é bom ficar de olho, já aconteceu no passado recente. Seria uma perda enorme deixar escapar esse projeto incrível, tão jovem, tão cheio de possibilidades. E que as pessoas se dêem conta que nós financiamos o projeto, sem deixar enganar pelos subterfúgios da cidade-negócio.

*Artigo publicado originalmente no Facebook do autor

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