Este texto tem a ingênua proposta de provocar um olhar sobre um pontinho recém existente no planeta Terra, batizado de Biblioteca Comunitária Itaxi-Mirim. Vamos contar a história de seu nascimento, começando por pedir a benção e a licença para Nhanderu![1]

A etnia Guarani é milenar e resiste há séculos aos impactos da chegada do homem branco no continente americano. Estamos falando de um povo que vive em um território que compreende regiões no Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina. São conhecidos por diferentes nomes: Chiripá, Kainguá, Monteses, Baticola, Apyteré, Tembekuá, entre outros.

Criança Guarani. Foto: Miguel Angelo Jr. / Divulgação

No entanto, sua autodenominação é Avá, que significa “pessoa”. Os grupos Guarani que vivem no Brasil são:  Mbya, Pãi-Tavyterã, conhecidos como Kaiowá e Avá Guarani, denominados Ñandeva. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA) mais de 57 mil residem hoje em suas aldeias nos seguintes estados: RS, SC, PR, SP, RJ, ES, MS e PA.

No município de Paraty, Rio de Janeiro, temos três aldeias indígenas Guarani:  Araponga, próxima ao bairro Patrimônio, Rio Pequeno, próxima ao bairro Graúna, e Itaxi, no bairro de Paraty Mirim, e mais uma mobilização para a construção de uma quarta aldeia, do povo Pataxó.

Ao chegarmos na aldeia Itaxi, ao lado da estrada que vai dar em uma linda praia de Paraty Mirim, encontramos uma pequena estrutura para venda de artesanato, uma pequena escola e um postinho de saúde. A construção da escola foi fruto de uma doação, que depois de reformada tornou-se uma escola indígena. Este ano, ficou sete meses sem aula de ensino fundamental por falta de contratação de professores.

Esta escola é estadual, o que dificulta qualquer reclamação, solicitação ou mesmo diálogo, pois o escritório da Regional da Educação fica a 200 km, em Volta Redonda. Não há telefone fixo, apenas um orelhão, normalmente sem funcionar. Não há sinal de celular e às vezes é possível se comunicar em alguns lugares via WhatsApp.

Os pais criam seus filhos com muito carinho, sem gritos ou castigos. Dialogam só no idioma guarani até em torno dos 8 anos de idade, desta forma preservam e mantém sua cultura. As crianças são muito livres, brincam e riem com facilidade.

São carinhosas e adoram dar e receber afeto. Temos, com certeza, muito o que aprender com a sabedoria indígena e nos repensar, principalmente na relação com a família e com a natureza. Estas raízes estão sendo permanentemente fortalecidas.

Biblioteca Comunitária da Aldeia Itaxi. Foto: Miguel Angelo Jr. / Divulgação

A Biblioteca é um importante instrumento para a Cultura Guarani. Foto: Miguel Angelo Jr. / Divulgação

A Aldeia Itaxi possui uma pequena área demarcada e é ladeada pela Mata Atlântica, portanto plantar só é possível em pequena quantidade e no sistema agroflorestal. O turismo ao mesmo tempo que possibilita escoamento da pequena produção artesanal, acaba impactando bastante no dia a dia da aldeia, localizada num dos principais fluxos turísticos de Paraty.

Para sobreviver, vendem artesanato na rua do Comércio, no Centro Histórico de Paraty, onde muitas vezes não são bem-vindos. Ao perguntar para uma artesã Guarani sobre se gostam de ir à cidade vender seu artesanato a resposta é rápida: “Preferimos ficar na aldeia, mas precisamos vender nosso artesanato para comprar comida.”

As dificuldades para uma sobrevivência com alimentação, saúde e educação vem a cada ano se agravando.

Muitos males os Guarani tiveram e ainda têm que suportar, como a invasão e destruição de sua terra, a ameaça contra seu modo de ser, a expulsão, a discriminação, o desprezo e mesmo assassinatos, que vieram com a chegada dos “outros”, dos colonos, dos fazendeiros e agropecuaristas.

Sobre o tema da demarcação da terra, a liderança Keretxu diz: “Para nós, como estamos hoje, é necessário, mas sentimos como numa gaiola”. Para entender esta resposta é importante destacar que os guaranis sempre foram livres e esta liberdade vem sendo ceifada há mais de cinco séculos.

Quanto ao posicionamento do governo atual, Keretxu questiona: “Começo a dizer que esse ser não tem a mínima ideia do que é uma riqueza. Graças a demarcação de terras indígenas, com a luta que se mantém do nosso povo, toda essa riqueza é apenas o nosso lar, foram décadas, centenas, milhares de anos de lutas, e agora vêm esse ser ambicioso, racista, dizer que somos incapazes de proteger as nossas terras!”

Em meio a essa situação difícil de aceitar, buscamos uma forma de enfrentamento para, de alguma forma, garantirmos os direitos humanos desta comunidade. A Mar de Leitores, Rede de Bibliotecas Comunitárias de Paraty, integrante da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias – RNBC, recebeu um pedido e atendeu a um desejo da comunidade indígena: “Queremos uma biblioteca na aldeia.”

A relação com a Aldeia Itaxi já existia por meio de projetos realizados com as instituições que integram a Mar de Leitores e este pedido e interesse foi visto pelos integrantes da rede de Paraty como um desafio e um presente. Receber uma biblioteca indígena na rede é de enorme riqueza, aprenderemos muito com a cultura Guarani.

Cacique Miguel, de 120 anos. Foto: Miguel Angelo Jr. / Divulgação

Entre o desejo e a inauguração contamos com a participação importante da equipe da UFRJ, que havia auxiliado a aldeia na elaboração de um protocolo de ações para proteção de diversos tipos de assédios e impactos prejudiciais à identidade cultural guarani.

Com apoio da Universidade, lideranças indígenas se reuniram com representantes da Mar de Leitores e o desejo virou desenho de uma construção em mutirão e no caminhar desta jornada aprendemos a respeitar o tempo de cada um.

E no dia 18 de outubro de 2019 vimos nascer este lindo rebento, que chegou como uma luz no meio de tantas dificuldades. Festejamos e nos emocionamos com a fala do cacique Miguel, de 120 anos, ladeado por sua esposa e companheira, com 101 anos, e pelo coral de crianças indígenas, numa apresentação linda, mágica e encantadora.

Muitos dizem que é mito a busca da terra sem males, mas para nós esta busca e esta terra é verdadeira e existe. Ela está se fortalecendo através da leitura e literatura, com acesso aos livros, em um espaço comunitário que irá estimular, principalmente, crianças e jovens a lutarem para concretizar seus sonhos.

Hoje na Aldeia Itaxi está pulsando uma Biblioteca Comunitária construída por Guaranis, administrada pelas jovens lideranças Adilson Tupã e Flávia Ara’i, que já tem um sonho para realizar: “Queremos fazer um dicionário guarani para reproduzirmos palavras e frases que falamos na Aldeia Itaxi e deixar em um livro impresso para o conhecimento dos juruás (homens brancos).”

Há muito por fazer, muita água por correr e muita vida e olhos negros que brilham e sorrisos lindos a nos fazer lembrar o Poeminha do Contra de Mario Quintana:

Todos esses que aí estão

Atravancando meu caminho,

Eles passarão…

Eu passarinho!

[1] Como são chamados os deuses da cultura guarani.

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