“Foi o espetáculo mais importante que eu vi em minha vida.”
(Vladimir Palmeira)
O Rio de Janeiro já foi uma cidade capaz de parar numa sexta-feira à tarde para enterrar um estudante morto pela PM.
Eram de fato outros tempos aqueles em que a revolta contra uma violência policial colocava milhares de pessoas nas ruas.
Agora, “como a morte aqui é tanta” – poderia dizer João Cabral de Melo Neto, sem pensar apenas no Nordeste. Em 68, a morte de alguém, mesmo a de um jovem desconhecido, podia levar o país a uma crise e o povo a indignação, como levou naquela sexta-feira, dia 29, em que 50 mil pessoas acompanharam o corpo de Édson Luís Lima Souto ao Cemitério São João Batista.
No dia em que Édson Luís ia ser enterrado, os cinemas da Cinelândia amanheceram anunciando três filmes que atraíram a atenção dos repórteres e dos agentes de serviço na área. Num país presidido por um marechal e num dia de luto pelo assassinato a bala de um jovem de 18 anos, os filmes em cartaz soavam como uma alusão. A noite dos generais, com Peter O’Toole e Omar Shariff; À queima-roupa, com Lee Marvin; e Coração de luto, de Teixerinha, eram atrações dos cines Império, Pathé e Odeon.
A alguns metros dali, na então Assembléia Legislativa, velava-se ainda o corpo de Édson Luís, que no começo da noite anterior fora baleado no peito por um soldado da PM num choque no restaurante estudantil do Calabouço. Durante a noite e a madrugada, estudantes, intelectuais e artistas lotaram o saguão onde se realizava o velório. Discursos indignados exigiam justiça e os oradores exibiam a camisa ensanguentada do morto.
Tinha sido uma noite agitada, ali e em outros lugares da cidade. Logo depois de baleado, provavelmente já morto, Édson Luís foi levado pelos colegas a Santa Casa de Misericórdia, vizinha do Calabouço, para evitar que a polícia sequestrasse o corpo. Confirmada a morte, os estudantes ergueram o cadáver nos braços e, usando-o como aríete, foram empurrando os policiais até a Assembléia. Elinor Brito, presidente da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço – FUEC -, relataria a cena mais tarde, com dispensável realismo: “Eles queriam tomar o corpo da gente e impedir a entrada na Assembléia. A gente disse: ‘Tá morto, a gente bate com a cabeça do Édson na barriga dos policiais e eles vão recuando’. Eles foram dando para trás.”
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Édson Luís foi sepultado à luz de velas e de archotes improvisados – e ao som do Hino Nacional cantado pela multidão. Depois, já se retirando, todos entoaram a Valsa do Adeus.
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Longe de ser um líder, Édson Luís era, como muitos de seus colegas, um daqueles jovens que vinham do interior tentar estudar no Rio, sobrevivendo graças à alimentação barata do Calabouço. Para estudar, Édson Luís era obrigado a recorrer a pequenos expedientes, inclusive na limpeza do restaurante. Ele não tinha nenhum dos componentes míticos para sonhar em ser o que acabou sendo: um mártir.
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A repercussão de certos acontecimentos políticos nem sempre é proporcional a importância dos atores neles envolvidos. O episódio do Calabouço, que desencadeou uma série de manifestações de protestos que iriam culminar com a lendária Passeata dos 100 mil, três meses depois, ficou na História como um marco.
Pode-se dizer que tudo começou ali – se é que se pode determinar o começo ou o fim de algum processo histórico. De qualquer maneira, foi o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta estudantil. Como cinicamente lembrava a direita: “era o cadáver que faltava”.
Por Zuenir Ventura, originalmente publicado no livro, 1968 o ano que não terminou: a aventura de uma geração.