O Instituto Pró-Livro (IPL) publicou nessa semana a 5ª edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”. Para quem não sabe, o IPL é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), sem fins lucrativos, criada e mantida pela Abrelivros, CBL (Câmara Brasileira do Livro) e Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), “com a missão de transformar o Brasil em um país de leitores”.
Realizada desde 2007, a pesquisa possibilitou, segundo os organizadores, ampliar a amostra de cinco mil para mais de oito mil pessoas, incluindo a leitura por capitais. “Ampliou, também, seu escopo, para aprofundar o conhecimento sobre o leitor de literatura e sobre a leitura digital, mas manteve a metodologia e perfil da amostra para possibilitar a série histórica sobre o comportamento leitor do brasileiro”.
Vários aspectos me chamaram atenção na pesquisa, mas principalmente o que diz respeito às bibliotecas. Por exemplo: ao perguntar, a partir de uma lista de opções, o que faria a pessoa frequentar uma biblioteca ou frequentá-la mais de uma vez, 29% dos entrevistados disseram que nada os faria frequentar uma biblioteca, embora a maioria tenha respondido que frequentaria bibliotecas por diversos motivos, que vou comentar mais adiante.
É muito difícil dizer o que leva uma pessoa a concluir que nunca frequentaria uma biblioteca, mas alguns aspectos histórico-culturais podem nos ajudar nessa reflexão. A propósito, em outra ocasião já questionei: como um estudante poderia ou deveria valorizar este tipo de equipamento educacional/cultural se ele não teve oportunidade de conhecê-lo nos momentos mais importantes da juventude, especialmente na escola?
Embora o ensino laico tenha sido instituído no Brasil a partir do final do século XVIII, este ficou estrito às camadas mais favorecidas por muito tempo. Como nos lembra o historiador José Murilo de Carvalho, no seu clássico “Cidadania no Brasil: o longo caminho”, quando a República foi proclamada em 1889, 85% da população era analfabeta, quadro que perduraria mesmo com a chegada do novo século, com uma população basicamente rural e profundamente desinstruída e alijada dos bens educacionais e culturais.
A imprensa, do mesmo modo, se estabeleceria de forma tardia no Brasil, o que resultou em violentas perseguições aos que ousassem portar livros tidos como subversivos. Nelson Werneck Sodré (História da Imprensa no Brasil. Mauad, 1999) explica que no período colonial, onde os invasores encontraram uma cultura avançada, estes tiveram de implantar instrumentos de sua própria cultura, de modo que a cultura local fosse gradativamente suplantada.
No entanto, segundo o historiador, “essa necessidade não ocorreu no Brasil, que não conheceu […] nem a Universidade nem a imprensa, no período colonial”. De fato, se se encontram registros de escolas superiores no Brasil no início do século XIX, foi apenas no século XX que se viu instituir as primeiras universidades, como as federais do Paraná (UFPR), do Amazonas (UFAM), a do Rio de Janeiro (UFRJ), entre outras.
Se na zona espanhola as universidades e a imprensa foram fundamentais no processo de substituição da cultura local pela dos colonizadores, caracterizando um “sintoma de intransigência cultural”, por aqui esses instrumentos educacionais/culturais sequer chegaram a ser implementados, exatamente porque se considerava que por aqui não existia um tipo de cultura suficientemente avançada que pudesse representar algum tipo de obstáculo ao intento do colonizador.
Ao mesmo tempo, o livro, “instrumento herético” no Brasil, sempre foi visto com desconfiança, sendo natural apenas nas mãos nas mãos dos religiosos e “até aceito apenas como peculiar ao seu ofício, e a nenhum outro”. Talvez por isso a bíblia sagrada continue sendo o livro mais lido no Brasil, conforme também revela a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, embora este seja um aspecto para novos comentários e análises futuras.
Por agora gostaria de destacar uma outra observação do Nelson Werneck Sodré: “[No Brasil] as bibliotecas existiam nos mosteiros e colégios, não nas casas de particulares. Mas ainda naquelas foram pouquíssimas, de livros necessários à prática, constituindo exceção mesmo os edificantes”, o que demonstra que os livros e as bibliotecas não compuseram nem mesmo o arcabouço da vida privada no Brasil.
A consequência disso é que muitos passam a acreditar que as pessoas não valorizam a biblioteca enquanto equipamento cultural, ora porque seriam intrinsecamente ignorantes, atribuindo essa indiferença a um aspecto subjetivo, o que faria parte da “natureza” do povo brasileiro, ora porque este modelo estaria ultrapassado, localizando a biblioteca num momento cultural anterior às novas tecnologias de comunicação e informação.
Para argumentar contra esta falsa percepção, sempre penso o seguinte: se algumas gerações de brasileiros tivessem tido a oportunidade de usar de forma plena as bibliotecas e em um determinado momento concluíssem que estas não eram mais relevantes, seria plenamente compreensível. Mais como podemos pensar e/ou dizer que as bibliotecas não são mais importantes se sequer tivemos oportunidade de conhece-las e usá-las plenamente?
De volta aos aspectos histórico-culturais, não posso deixar de lembrar que além de termos nos demorado a estabelecer por aqui um sistema de ensino e uma estrutura de imprensa, nós passamos por sucessivos momentos de censura aos livros e a imprensa de um modo em geral. Acho que não vale a pena discorrer longamente sobre isso aqui nesse momento, mas vale lembrar que essa é uma prática que se viu de forma plena no Brasil no decorrer do século XX e que ameaça ressuscitar nesse combalido início de século XXI.
Acredito que mesmo que estes fatores não sejam determinantes no fato de um número tão grande de pessoas afirmarem que não frequentariam bibliotecas de forma alguma, eles são bastante reveladores de uma cultura avessa às bibliotecas. Como querer conhecer ou frequentar uma espaço do qual você numa teve conhecimento ou numa teve a oportunidade de desfrutar dos prazeres eventualmente por ele proporcionado? E é claro que este fato está ligado diretamente a ausência, no Brasil, de uma efetiva política de democratização do livro, da leitura e das bibliotecas.
Nunca é demais lembrar os dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas que, embora defasados, apontam que no Brasil existe apenas uma biblioteca pública para cada 33 mil habitantes. Não é demais lembrar, ainda, que existem regiões, a exemplo do estado do Rio de Janeiro, “coração cultural do Brasil”, com uma biblioteca para mais de cem mil habitantes. Também não e demais lembrar que vários municípios brasileiros não contam e nunca contaram com nenhum tipo de equipamento cultural, sendo a televisão, monopolizada pelos grandes conglomerados de comunicação, a única fontes de informação e entretenimento.
Aliás, a falta de bibliotecas perto de casa reflete, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o principal motivo, verbalmente indicado, pelo qual as pessoas não frequentam estes equipamentos (17%). Ou seja, ao contrário do que possa parecer para alguns, quando as pessoas não frequentam as bibliotecas, não o faz por sua “natureza”, mas porque as condições objetivas, como a ausência destas próximas de suas casas, não a permitem.
Não vou discorrer detidamente sobre os demais motivos que levariam ou não uma pessoa a frequentar uma biblioteca, mas destaco que o que faria, entre os não frequentadores, frequentar mais as bibliotecas, são todas condições objetivas, que refletem a nossa cultura política de desprezo à cultura letrada: 1) ter mais livros ou títulos novos (14%); 2) ter títulos interessantes ou que me agradem (11%); 3) ter atividades culturais (11%); 4) ter Internet (10%); 5) ter um bom atendimento (8%); 6) ser atendido por um profissional que oriente sobre o que ler (6%) etc.
No mais, a pesquisa é bastante rica em dados. Isso certamente deverá e será explorado por pesquisadores, jornalista e demais estudiosos do tema. Recomendo muito que baixem e olhem a pesquisa, pois dos dados ali contidos certamente poderão ser extraídas diversas informações não aparentes. Um olhar minucioso pode trazer luz sobre a nossa ainda incipiente cultura do livro, da leitura e das biblioteca.