As lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as tragédias que os políticos representam em relação ao povo” (Carolina Maria de Jesus).

Na literatura brasileira existe um reflexo bastante perverso do racismo que reverbera nas histórias infantis e juvenis, livros didáticos, programas de televisão, stand ups, revistas e inúmeros livros de autores renomados.

A literatura representa algo indispensável para a formação de seu povo, mas quando está atrelada a coisificação e ao apagamento de determinado grupo, em que privilegia um lado e negligência outro, há um grande problema; e este problema persiste há séculos: é a herança escravocrata brasileira legada à literatura e à cultura.

Quantos Sacis Pererê, Tias Anastácia, Tios Barnabés e Pais Tomás serão preciso para justificar a suposta democracia racial em nosso país?

Temos um efeito simplesmente devastador nas identidades das pessoas quando se fala em etnia, muitas pessoas possuem extrema dificuldade em se aceitarem e reconhecerem suas identidades ainda hoje, revelando uma questão muito séria e fundamental.

A história da literatura no ocidente sempre invisibilizou a contribuição de povos não europeus, tanto na participação com escritos, quanto no protagonismo nas histórias, com intuito de negar e esconder suas identidades para subjugar e manter sob a condição subalterna os povos que estavam sob seu domínio.

No Brasil colônia, no período barroco, um dos autores mais expoentes foi Gregório de Matos, que ficou marcado pela sua fixação na mulher preta e na hiperssexualização de seus corpos e pela inferiorização da figura do homem preto em plena Bahia.

Foi influenciado por Portugal e sua tradição escravocrata trazendo dessa forma: “…quais destes lhe são mais gratos? Dou ao demo os insensatos, dou ao demo a gente asnal, Que estima por cabedal, pretos, mestiços, mulatos…”

A literatura que predomina não vem dos trópicos, por mais temperos estigmatizantes que coloquem, está totalmente vilipendiada num projeto valorado a partir das vicissitudes do sistema eurocêntrico, em que o “belo” é sempre o europeu e o “feio” recai sobre o africano e o nativo/indígena.

A prosa que proseia não remete as Rebeliões das Senzalas, de Clóvis Moura, colocando a figura do preto e da preta enquanto protagonistas, vez que das fugas e na incessante busca por liberdade, a forma de resistência mais eficaz foram os Quilombos.

Quilombos que se tornaram a grande ameaça dos colonizadores, o rumo da prosa está na espetacularização da miséria e na cabeça preta boa de levar croque, segundo Monteiro Lobato, resultado da personagem estereotipada na obra a neguinha:

“… assim cresceu negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos…, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes… a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta. — Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas…”.

Observamos que a personagem principal em uma caracterização absolutamente proposital, isso em tempos de vigência da Lei do Ventre Livre e que antecedeu a pseudolibertação dos escravizados.

Essa cultura da reprodução da violência desde os tempos do cativeiro, até os dias atuais é herança da escravatura, onde aqueles que desobedeciam eram tratados da pior forma possível e para serem exemplos do que acontece para que ousar desafiar é o castigo.

Monteiro Lobato cria de forma bastante distorcida, a partir de dois personagens já existentes nas culturas africanas (Ossain da cultura Nagô e Iorubá) e nativas (cultura Tupi-Guarani), o seu Saci Pererê que é desonesto, mentiroso, ardil, sem uma das pernas, com gorro europeu que usa cachimbo e vive aprontando.

Aquela alcunha de malandro até hoje estigmatiza a maioria étnica da população sendo descendente de africanos escravizados no Brasil.

Outro autor renomadíssimo e complicadíssimo sob o ponto de vista do oprimido certamente foi Gilberto Freyre e sua obra ‘Casa Grande & Senzala”, quando procura estabelecer uma harmonização entre o cativo e seu sinhô ou sinhá, tendo o referido autor elogiado o processo da colonização lusitana.

Freyre enaltece os portugueses que seriam os mais maleáveis entre os europeus, que seriam mais receptivos a ideia de miscigenação já demonstra sob qual aspecto o autor está vinculado, secundarizando a violência ao qual as mulheres escravizadas estavam submetidas seja na Casa Grande ou na Senzala.

Ângela Davis tece em uma análise contundente:

“…enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O Estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres pretas na condição de mulheres trabalhadoras…”

Um Estado que traz em sua arquitetura a história sob o ponto de vista dos colonizadores europeus, preterindo a perspectiva do oprimido e vangloriando a colonização, o mito da Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre ainda permeia e nos rodeia bastante, enraizado com a pseudo justificativa de democracia racial.

Na contramão da narrativa ditada pelo homem branco, a resistência prossegue desde os Quilombos até os tempos atuais. Existe uma ampla produção literária que traz o contraponto do homem e da mulher preta na literatura, transformando-os em sujeitos protagonistas de suas próprias histórias.

São exemplos disso Abdias Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Clóvis Moura, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis e Solano Trindade, que são alguns dos autores e autoras que merecem nossa atenção, além das produções das edições dos Cadernos Negros que trouxeram sólida contribuição.

Para Clóvis Moura, autores como Gonçalves Dias, Bilac, Alberto de Oliveira, Artur Sales e próprio Machado de Assis (que até num comercial em sua homenagem foi retratado como branco) branquearam-se, assim como Cruz e Souza que “escondeu sua angústia, não transformando em poesia auto afirmativa da etnia negra”.

A literatura brasileira que sempre marginalizou, invisibilizou e menosprezou a literatura preta, advinda dos guetos, das favelas e dos movimentos sociais, o que não encontra guarida hoje no enorme e significativo movimento preto literário contemporâneo.

Desde Lima Barreto que sempre denunciou o racismo no Brasil, e que foi ignorado em sua época, Maria Firmino dos Reis, com suas obras “Hino a libertação dos Escravos” e “A Escrava”, e mais recentemente a autora Conceição Evaristo, cuja contribuição sempre secundarizada e sua obra de difícil acesso, demonstram o quanto temos um longo caminho a percorrer.

Atualmente existem inúmeros pontos de resistência literária. Um exemplo é a Biblioteca Comunitária Solano Trindade, situada na Cidade Tiradentes, onde atualmente são realizadas inúmeras ações como: atendimento a consulentes, reuniões de organização, grupos de estudos, mediação de leitura com estudantes da rede pública de ensino, o Sarau da Resistência Preta e o Slam Letra Preta.

Essas atividades possibilitam o recorte étnico racial, colocando de forma categórica os pretos e as pretas, visando o protagonismo ao qual a maioria da população foi tratada historicamente de forma desigual.

“Ainda sou poeta

Meus poemas levanta os meus irmãos.

Minhas amadas se preparam para a luta,

Os tambores não são mais pacíficos,

Até as palmeiras têm amor à liberdade…! ” (Solano Trindade – Canto dos Palmares)

*Este artigo contou com a colaboração de Julia Santos, formada em Biblioteconomia e Ciência da Informação (FESPSP ), atua como bibliotecária, gestora cultural e mediadora de Leitura na Biblioteca Comunitária Espaço Jovem Alexandre Araújo Chave, (Rede LiteraSampa); Suilan de Sá do Vale, integrante do Coletivo de Esquerda Força Ativa, mediadora de leitura e coordenadora da Biblioteca Comunitária Solano Trindade, além da colaboração de Cris Lima, psicóloga e educadora popular, atua como co-gestora na Biblioteca Comunitária Djeanne Firmino, na Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e na Rede LiteraSampa.  

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