O que dizer de novo sobre obras e autoras já tão comentadas, tão amplamente criticadas, sejam reprovadas ou elogiadas? Quando li No seu pescoço (Companhia das Letras), livro da Chimamanda Adichie, fiquei pensando se eu teria algo novo a dizer sobre ele, mas acho que sempre há algo a se falar.
O primeiro conto do livro é tão realista que tive que fazer uma pausa pra lembrar que é um texto de ficção e não um relato pessoal. Não que um texto realista seja uma característica necessária ou mesmo boa de um texto, mas é que me deu a sensação de estar conversando com alguém, ouvindo uma história.
É esse o nível de fluidez da escrita da Chimamanda, é a esse nível de realismo a que me refiro, o de uma conversa. E é incrível. Foi o primeiro livro de ficção que li dela, então dá pra relevar que eu fiquei um pouco confusa entre realidade e ficção.
A complexidade de seus personagens é bem fora do padrão. As personagens são muitíssimo interessantes e incomuns na literatura. Por exemplo, uma reflexão da personagem sobre réplicas de peças de arte em contraposição com a chegada de uma original, causando a retomada de um hábito antigo, chamam a reviravolta do segundo conto que, apesar de ficcional, me parece bem familiar.
O nível de profundidade das personagens é bem importante em dar o tom da maioria dos contos, o que é bem atraente nesse gênero, pois ajuda a criar uma conexão rápida com os personagens (seja de afinidade, seja de repulsa).
Uma característica de bons contos é que eles não findam em si mesmos. São histórias completas, apesar de curtas, complexas, apesar de rápida leitura. Mas deixam um vão, uma brecha à imaginação do leitor. Um depois, um antes, um motivo ou uma consequência a completar.
Chimamanda faz isso com maestria. Isso pode dar a impressão da ausência de um fim, ou dar certa angústia a leitoras ansiosas e curiosas como eu. No entanto, a brecha bem executada é um delicioso exercício de criatividade. No seu pescoço, o conto que dá título ao livro, é a melhor história de relação interracial em que não há compreensão mútua que eu já li.
“Mais tarde, contou para ele porque estava chateada, dizendo que, apesar de vocês irem ao Chang’s juntos com tanta frequência, apesar de terem se beijado logo antes de o garçom trazer os cardápios, aquele chinês presumiu ser impossível que você fosse namorada dele, e ele apenas sorriu, sem dizer nada. Antes de pedir desculpas, ele olhou para você com uma expressão vaga, e você soube que ele não tinha entendido.”
“A embaixada americana” é o texto mais tocante, na minha opinião. Talvez eu esteja, aqui, incorrendo em excessos, com classificações no superlativo ou comparações de “mais” isso, “mais” aquilo. É que me impressiona que um livro dessa qualidade tenha sido tão pouco falado em comparação a outros de qualidade mais questionável.
Esses textos me fizeram perceber como estamos adaptados a um único jeito de escrever e ler literatura. E como isso nos limita. Lembrei-me da fala da própria Chimamanda na palestra Ted talks que a fez ficar famosa no Brasil: o perigo de uma história única (em inglês, The danger of a single story), ou seja, que um único ponto de vista pode ser muito perigoso para a formação de pensamento, de gostos, de opiniões.
Ainda que você não goste dos textos, leia e prepare-se para outro ponto de vista, uma fórmula diferente da americana e da brasileira americanizada ou europeizada. (Embora o texto da Chimamanda muitas vezes me lembre a literatura brasileira considerada marginal). É fantástico. É de mudar uma vida.
“O médico se recusara a lhe dar mais tranquilizantes, pois ela precisava estar alerta durante a entrevista do visto. Era fácil pra ele dizer isso, como se ela soubesse como manter a mente vazia, como se estivesse a seu alcance, como se ela evocasse intencionalmente aquelas imagens do corpo pequeno e gorducho de seu filho Ugonna desabando diante dela com uma mancha no peito tão vermelha que ela quis lhe dar uma bronca por brincar com o dendê que estava na cozinha. Não que Ugonna conseguisse alcançar a prateleira onde ela guardava os azeites e os temperos, não que conseguisse abrir a tampinha da garrafa plástica de dendê. Só tinha quatro anos de idade.”
Há, em todos os textos, o olhar intrínseco de uma cultura diferente da nossa, mas surpreendentemente familiar. A surpresa será maior na medida em que não atentarmos pras nossas origens em África. Uma familiaridade reconfortante, às vezes, com aroma de saudades por mexer com lembranças similares (no meu caso).
“Você se lembra com clareza do calor daquele verão, mesmo agora, dezoito anos depois – a maneira como o quintal da vovó era úmido e cálido, um quintal com tantas árvores que o fio telefônico ficava cheio de folhas, um quintal onde galhos diferentes se tocavam e, às vezes, mangas apareciam nos cajueiros e as goiabas nas mangueiras. O tapete espesso de folhas mortas deixava seus pés nus molhados.”
A última coisa que quero comentar é que notei uma certa recorrência de mulheres com “cabelo cor de metal” que não faço idéia do que seja – se você souber, por favor me conta -, porque fico me perguntando e devaneando: metal alumínio, cobre, ouro…? Na primeira história tinha certeza que era uma ruiva, na segunda achei que era uma grisalha, na terceira achei que podia ser loira.
Pode ser que haja outros elementos que colaboraram para essa construção de cores, mas que não foram registrados conscientemente por mim e talvez o sejam por você. Muitas vezes faço uma leitura apressada e pouco atenta, por conta da empolgação, o que me dá muita vontade de reler. Ou talvez a multiplicidade de possibilidades seja proposital.
Vale muito a leitura, pois é um livro muito rico de personagens, de cultura e com uma boa variedade de narrativas. Tem histórias extremamente sentimentais, crise política e universitária, história com fantasma, crise familiar, perda, privação, guerra, costumes, romance, conversas entre escritores, mas, principalmente, histórias sobre sobrevivência. Enquanto Chimamanda palestra por aí sobre o perigo de um único ponto de vista, eu penso aqui, enquanto a leio, no perigo de ler outros pontos de vista.
O perigo de conhecimento das múltiplas possibilidades; o risco do acesso imaginativo a outros mundos, outros povos, outras pessoas; a ameaça que é conhecer para respeitar outras culturas, outros indivíduos, outros povos; o prejuízo que o acesso à cultura e a outros discursos pode trazer para a capacidade de criar pensamento, alternativas políticas e até entender ironias no final de textos que a autora não sabe como concluir. Grandes perigos.
Título: No seu pescoço
Autor: Chimamanda Ngozi Adichie
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-2945-4
Ano: 2017
Páginas: 233