Hoje faz exatamente 140 anos que você passou desta para… Que besteira ia escrevendo eu nesse começo de carta, meu caro! O seu lugar de luta foi sempre entre pessoas vivas, e entre elas você se destacou como alguém engajado no combate convicto pelo direito à vida. O conceito de necropolítica não existia ainda no século em que você viveu, mas foi contra a prática da necropolítica que você empunhou sua sátira, sua vontade, sua candimba, sua coragem, sua inteligência. Não foi pouco o que você fez, mas parte significativa dessa atuação firme foi sendo soterrada pelo entulho produzido pelos agentes da branquitude neste país, que não deixaram de acumular morte e indignidade depois da sua existência entre nós.

Sua existência foi surpreendente e inspiradora, e me parece que ela permanece brilhando entre nós como uma força de combate contra os muitos obscurantismos que nos oprimem ainda hoje. Aliás, gostaria de lhe contar um pouco sobre a “descoberta” pessoal de sua atuação, que desde o ano passado me entusiasma imensamente.

Sou professor de literatura brasileira, e sempre cultivei um interesse particular em torno do século XIX, que é afinal momento em que muitos dos dilemas fundamentais deste país se definiram (basta lembrarmos que é o momento de uma independência suposta, que completará 200 anos em breve, e da formação de uma cultura romântica entre nós). Conhecia por alto suas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, mas muito me faltava para dimensionar esse seu único livro de versos, publicado em 1859: me faltava o conhecimento de sua biografia; me faltava o conhecimento de sua atuação na imprensa paulistana, em que você também foi pioneiro; me faltava informação sobre sua atuação como advogado, jurista e abolicionista. Sem esse contexto, não pude perceber a dimensão vulcânica de suas Trovas Burlescas.

E o fato é que sua produção intelectual esteve excluída de grande parte dos manuais de literatura brasileira mais consagrados nas cadeiras do ensino superior entre nós. Os que lemos e estudamos esses manuais não travamos contato com sua atuação, assim como não tivemos notícias sobre a existência de uma narrativa tão importante como Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, publicado no Maranhão (também em 1859!). A combativa produção literária que sua pena nos deixou, aliás, permaneceu praticamente inédita, perdida e esquecida no território movediço e movimentado da imprensa periódica oitocentista. Neste momento em que lhe escrevo, sua obra completa está sendo compilada em alentados 11 volumes.

Não é de espantar?

Um dos poucos historiadores de nossa literatura que, ainda no século XIX, registrou com algum entusiasmo sua criação foi um conhecido pensador racista. Silvio Romero, que publicou sua História da Literatura Brasileira em 1888, assim abria as páginas que dedicou a você: “Orador, jornalista e poeta, era um quase negro que não tinha pejo de sua raça”. Veja só você, Gama: “quase negro”! Ele tinha razão em dizer que você “não tinha pejo de sua raça”, mas na mesma frase dizia que você era um “quase negro”! Só mesmo uma cabecinha curiosa e carregada de estigmas como a de Romero para registrar “atenções e simpatias”, mas ao mesmo tempo procurar maquiar o fato de que você era sim um escritor negro, sem pejo e com muita vontade de combater um criminoso estado escravocrata (em que a tal necropolítica era praxe).

Nem Romero nem mais respeitáveis historiadores que o seguiram puderam dimensionar sua biografia tão incrível: nascido livre na Bahia, foi vendido como escravo pelo próprio pai (branco, ou quase branco, como você sugeriu) aos 10 anos; escravizado, foi levado de barco até o litoral paulista (Santos), e daí seria levado a pé até a provinciana Pauliceia, onde viveria 8 anos de escravidão; aos 17 anos aprenderia a ler, reaveria sua liberdade e… pouco mais de uma década depois, publicaria suas Trovas Burlescas, livro único na literatura brasileira. E não pararia por aí: pouco depois das Trovas, criaria o primeiro jornal ilustrado de São Paulo (o Diabo Coxo, com Ângelo Agostini), participaria da criação de muitos outros, e se tornaria o mais radical dos nossos abolicionistas, e advogado que libertaria mais de 500 irmãos de infortúnio. Que trajetória, meu caro!

E essa atuação como advogado abolicionista então! Em uma província que se orgulhava de ter sua Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, em que pessoas que haviam sido escravizadas não cabiam no seu território pretensamente livre e branco (ou quase branco), você conseguiu romper essas paredes e libertar mais de 500 pessoas ilegalmente escravizadas. Você revelou para negras e negros, e também para aqueles que carregavam sua “mania de branquidade” (ainda uma expressão do Romero), todo o terror em que se fundamentava o Brasil imperial, que praticava o sequestro, o assassinato e a reiterada prevaricação. Aliás, meu caro, você nos dá a chance de perceber o quanto a criminalidade do estado brasileiro, tão contumaz na prevaricação, tem vasta e infame história. Você, no entanto, insistia: “nós temos leis e eu sei ter vontade”.

Perdoe se me estendo no entusiasmo diante de fatos que você tão bem conhece. Não queria deixar de registrar minha admiração pela sua trajetória nesta data. E queria evidenciar, nesta carta aberta, o quanto sua atuação é ainda atual, e parece estar vibrando entre aquelas e aqueles que seguem no combate. Sua trajetória me recorda sempre da figura fundamental de Exu, orixá da comunicação e senhor dos caminhos, “o deus da contradição dialética” (como nos ensina Abdias Nascimento), e que nos mobiliza para o compromisso com a vida. Compromisso que está registrado em muitos dos seus textos, que brilham ainda e mais nas épocas mais obscurantistas. Como você disse certa feita: “os sóis produzem mundos”!

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