Eu não sou especialista em ficção científica e, pra dizer a verdade, nem é dos meus gêneros favoritos. Mas Kindred é uma ficção que vale a pena ler e recomendar.
É difícil falar desse livro, por vários motivos que são difíceis de descrever. A frase que abre o livro da edição brasileira de 2017 é uma epígrafe, da própria autora Octavia Butler, que me tocou muito e diz o seguinte: “Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”. Impactante, não é?
Foi um livro que, de início, tive a sensação que não me tocou, embora tenha me angustiado. Um livro que nem parece complexo, mas é envolvente e não sai da cabeça depois que lemos. Para entender melhor, procurei ler resenhas e recomendo uma, depois que lerem o livro, porque é cheia de spoilers.
Penso que pareceu não me afetar pela proximidade que senti dos personagens e pela verossimilhança deles, ou seja, essa sensação muito forte de que essas pessoas poderiam ter existido.
Somando isso ao fato de que a autora cita personagens reais, nos sentimos em um lugar muito particular nessa narrativa, que mistura ficção e realidade com maestria. A autora insere dados históricos na fala da personagem principal, que se utiliza deles para manter-se sã e para garantir alguma vantagem na situação surreal em que se encontra.
A edição começa com um prólogo misterioso, que mais parece o meio do livro, ou o fim. Um trecho que nos deixa procurando pistas pelo livro inteiro, tentando entender como aconteceu. Quando a história começa, a personagem principal, que é também a narradora, nos avisa que vai a contar a história desde de o início.
“O problema começou muito antes de 9 de junho de 1976, quando me dei conta dele, mas 9 de junho é o dia que me lembro. Era meu aniversário de vinte e seis anos. Também foi o dia em que conheci Rufus – o dia em que ele me chamou pela primeira vez.”
O cenário inicial é bem trivial e facilmente imaginável: uma sala, caixas de mudança, desempacotamento, conversa. Uma mulher que arruma, um marido que não quer arrumar.
E então, ela some. Encontra um menino que se afoga. O ajuda. E volta. Para onde Dana foi? É o início das suas viagens no tempo, desavisadas e aparentemente sem sentido.
É um livro de ficção com um pé muito doloroso na realidade. Sobre não ter ideia de porquê e como seu corpo vai pra onde vai, e nem poder controlar o que ocorre com ele.
Quinze segundos no seu apartamento. Muito mais tempo fora para ela. Essa é a primeira dica de que o tempo transcorre diferente no presente e no passado. Filosófico, como tantas outras passagens de Octavia.
“-Você sabe quanto tempo ficou fora?
– Alguns minutos. Não muito.
– Alguns segundos. (…)
– Ah, não…- Balancei a cabeça devagar. – Aquilo tudo não pode ter acontecido em poucos segundos.”
Kindred é um livro cheio de metáforas da sociedade atual e das relações de poder, em que preconceitos e relações racistas contemporâneas se mostram através do enredo que se passa em uma sociedade escravagista.
A autora Octavia Butler mostra, sutilmente, as marcas da escravidão em descendentes que, mesmo tendo nascido livres, carregam consigo conhecimentos de sobrevivência e reflexos dessa história.
“Ou será que eu estava dizendo algo errado? Não havia trocado nem dez palavras com ele. O que podia ter dado errado?”
O livro decorre com a busca de Dana em entender o motivo de suas viagens. Em lidar com o marido que não acredita, apesar de ter visto. Depois, o pavor por não saber quando vai acontecer ou quando vai acabar. As limitações dessa situação. E como sobreviver a elas.
O mais angustiante no livro são as brechas, as pausas, os intervalos – sejam de ida, como de volta. O que quero dizer é que quando ela está em seu tempo, queremos que ela volte ao passado e quando ela está no passado, queremos que ela volte ao seu tempo. Mas as brechas também são metafóricas, filosóficas. É o não dito, o sentido, o que pode ser percebido enquanto coisas antigas acontecem soando tão atuais.
Acho que a maior parte dessa angústia se deve ao fato que vamos percebendo, ao longo da história, que ela corre tanto risco de vida estando no passado, como que é fundamental nesse passado, para assegurar sua própria existência no futuro e para garantir a sobrevivência dos demais.
A relação que Dana estabelece com o menino Rufus é forte, necessária e além do seu querer ou da sua compreensão. Mas é mandatória. E, entre o afeto e o senso de responsabilidade, Dana acaba por deixar que as coisas sigam o curso que precisa, fazendo o que acredita ser necessário entre instinto e ancestralidade.
Dana tem o pensamento rápido, é certeira, e racional. Se adapta com velocidade, resistindo e criando alternativas criativas de sobrevivência para si e para os outros.
O modo como se relaciona com as pessoas que não são de seu tempo, a sensibilidade para compreender as pessoas, o comprometimento com situações que podem colocá-la em perigo e a coragem de fazer o que é preciso faz com que não só nos envolvamos com Dana, mas com que queiramos ser ela, sejamos ela. Mergulhamos na história pelo olhar de Dana.
Ler Kindred faz a gente sentir a dor como se pudesse ser com a gente, como se estivesse acontecendo conosco. Quando lemos histórias sobre a escravidão, ou que se passam nessa época, parece muito distante de nós e, mesmo quando há empatia, ela é uma empatia imaginada a partir de muito distanciamento.
Octavia faz com que, quando Dana viaje no tempo, viajemos com ela e o que ela presencia e vive, acontece conosco também. É um livro em que sentimos junto com a personagem suas dores e aflições, porque embarcamos juntos nessa jornada quando abrimos o livro. A história dela poderia ser a história de qualquer uma de nós e por isso dói mais.
“Não sabia que as pessoas podiam ser condicionadas com tanta facilidade a aceitarem a escravidão.”
Carolina Coelho, tradutora dessa edição, afirma: “Octavia abre feridas e o leitor não as vê se fecharem, o que combina perfeitamente com a mistura de ‘estória’ e ‘história’ do universo de Kindred, que torna difícil e dolorosa a leitura de linguagem fácil”.
É exatamente essa a complexidade de Kindred: é fácil de ler, porque tem uma linguagem clara, nada rebuscada, fluida; mas é difícil, porque a narrativa é elaborada, detalhista e o sofrimento é descrito em minúcias – é visual e visceral. E se fosse você, sendo chicoteado como escravo mesmo sendo uma pessoa livre?
“Eu tomei cuidado. Conforme os dias se passavam, eu criei o hábito de tomar cuidado. Fiz o papel de escrava, prestava atenção a meus modos provavelmente mais do que precisava, pois não tinha certeza do que podia fazer sem ser punida. Pelo que percebi, não podia fazer muito.”
Octavia Butler é atualmente a primeira mulher negra reconhecida por escrever ficção científica. Ganhou inúmeros prêmios e ficou conhecida como “Dama da ficção científica” nos Estados Unidos e, mesmo assim, levamos quase 40 anos para traduzi-la para o português, o que mostra como o racismo ainda perdura em cada brecha da sociedade brasileira, que nega com tanta veemência essa faceta.
Também recomendo o texto “Octavia Butler, a ‘primeira dama da ficção científica’ que reescreveu o futuro” que também é muito bom
Título: Kindred: laços de sangue
Autora: Octavia E. Butler
Editora: Morro Branco
ISBN: 978-85-92795-19-1
Ano: 2017
Páginas: 429