Em setembro de 2013, foi inaugurado em Parintins, município localizado a 369 quilômetros de Manaus, Amazonas, o Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro (Unidade Parintins), que pode ser considerado um dos maiores investimentos em termos de equipamentos culturais no estado do Amazonas nos últimos anos.
Parintins é conhecida pela expressividade das manifestações culturais que ocorrem durante os confrontos entre os bois bumbás Garantido e Caprichoso, ação realizada todos os anos no mês de junho no decorrer do seu festival folclórico. O Festival Folclórico de Parintins teve início em 1964, mas cresceu tanto que nos dias atuais atrai plateias formadas por pessoas advindas das cidades amazônicas, bem como de localidades do Brasil e de outros países que se encantam com a beleza da música, da dança e dos ritmos que emergem das histórias ligadas aos povos indígenas e dos moradores que vivem nas cercanias da floresta.
O palco das disputas ocorre no interior do Bumbódromo (Centro Cultural e Esportivo Amazonino Mendes), que consiste em um tipo de estádio construído em formato de cabeça de boi, com capacidade para abrigar mais de 35 mil pessoas. As instalações do Bumbódromo (construído em 1988), precisavam de investimentos e o governo do Amazonas optou por empreender reforma e ampliação do espaço (valor orçado inicialmente R$ 32 milhões, mais que foi ampliado para R$ 48 milhões). Não consegui encontrar um número exato (oficial) do valor gasto, já que a página web do governo não apresenta de forma clara informações dessa natureza, um grave erro que deve ser sanado visando se adequar ao que determina a Lei nº 12.527 (Lei de Acesso à Informação).
O certo é que onde havia o Bumbódromo, foi agregado o Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, com estrutura formada por seis andares distribuída entre salas de aula e espaços culturais.
Do ponto de vista das áreas destinadas as apresentações no período do festival, uma matéria publicada em 11 de maio de 2013, no Jornal do Amazonas, trazia no enunciado Obras no Bumbódromo de Parintins, no AM, estão 80% concluídas. Sobre as transformações, apontava que:
“A arena onde os bois se apresentam aumentou quatro metros. Foram construídos 28 camarotes em dois novos pavimentos. Três elevadores também foram instalados e o público ganhou quatro novos banheiros. Uma grande estrutura metálica está sendo montada no centro do Bumbódromo […].”
A providência era necessária? Sim, já que Parintins recebe milhares de visitantes durante as festividades e até mesmo por que a cidade não dispunha de equipamentos culturais básicos, como salas de cinema, galeria de arte e espaços para exposição e até mesmo um museu que pudesse informar aspectos relacionados aos bumbás, principais responsáveis pela efervescência cultural da cidade. Contudo, o grande valor despendido na obra pode ser visto como um desrespeito às outras localidades do estado que permanecem esquecidas em seu quadro de ineqüidade. Também o fato da percepção de que o espaço do Liceu foi concebido bem mais para atender aos interesses do público externo que virá no período da grande festa.
A imagem abaixo foi feita do interior de uma das salas de aula. Todas são envidraçadas e convergem para o ambiente da arena do Bumbódromo. As salas serão utilizadas como camarotes durante os dias de festividades. É um tipo de medida que vem sendo viabilizada por cidades que empreendem megaeventos no intuito de assegurar formas pelas quais a sociedade possa se beneficiar em momentos posteriores as grandes festividades. A proposta é que no local, sejam oferecidos cursos profissionalizantes de nível básico e tecnológico durante o ano inteiro.
Arena do Bumbódromo em Parintins, vista do interior de uma das salas do Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro – Foto: Soraia Magalhães
Até ai tudo bem?
Em alguns aspectos, tudo bem, não fosse o fato do valor do empreendimento chegar a quase 50 milhões de reais e o Amazonas estar geograficamente dividido pelo total de 62 municípios onde a maioria não possui estruturas para realizar seus festivais, tampouco possuem museus, teatros, cinemas e principalmente bibliotecas públicas.
Mesmo a cidade de Parintins é carente neste sentido, apesar de possuir a Biblioteca Municipal Tonzinho Saunier, que se encontra em condições precárias de funcionamento. Na cidade, já houve também uma Casa da Cultura que aguarda há décadas por uma reforma que o poder público não viabiliza, mesmo sob o clamor dos movimentos sociais e de uma parcela da classe cultural e artística de Parintins.
Fachada da Biblioteca pública municipal de Parintins – Foto: Soraia Magalhães
Em vista do volume do investimentos, a previsão era de que os moradores de Parintins estivessem satisfeitos durante a inauguração do Liceu, contudo uma parcela da sociedade foi às ruas para demonstrar que discorda da forma com que são empregados os recursos públicos para a cidade. Conforme apontou o jornalista Wilson Nogueira, na matéria Parintins sem Fantasia, publicada no Jornal Diário do Amazonas de 9 de setembro de 2013:
“Em Parintins, há duas semanas, estudantes e professores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e membros dos movimentos sociais locais ocuparam o prédio da Casa da Cultura, iniciado na década de 1990 e nunca terminado. Os manifestantes reivindicam a conclusão da obra, pressa na apuração do desvio de mais de meio milhão de reais, punição dos prováveis criminosos e, também, responsabilizam os prefeitos que, por incompetência, má-fé ou desleixo com o patrimônio público, empurraram o problema com a barriga até agora.”
Nogueira aponta ainda que o espaço reivindicado consiste no prédio inacabado da Biblioteca Municipal Vera Lúcia Simplício, conhecido como Casa da Cultura de Parintins.
Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro (Manaus e Parintins)
Em Manaus, funciona desde 1997, o Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro (antes chamado Centro Cultural Cláudio Santoro). Sob a coordenação da Secretaria de Cultura do Estado, consiste em espaço criado para a promoção de cursos livres de artes (Visuais, Dança, Música e Teatro). As atividades são realizadas no interior do Sambódromo, Centro de Convenções de Manaus. Neste espaço existem duas bibliotecas que compõe o quadro de bibliotecas geridas pela Secretaria de Cultura no Amazonas (Biblioteca Braille e Biblioteca de Artes).
Deve ter surgido dai a ideia para a criação do Liceu (unidade Parintins), aliando a estrutura em salas de aulas e camarotes. Dos R$ 48 milhões para a reforma e ampliação do Bumbódromo, os idealizadores deixaram para a cidade, além de salas de aula (camarotes), uma sala de cinema (cineclube) que não comporta mais de 50 pessoas; uma biblioteca (minúscula) que quase não dispõe de mesas para uso do acervo no ambiente e também não possui capacidade para receber mais de 50 pessoas; duas salas para exposição de artes visuais e dois espaços para o memorial dos bois bumbás.
Áreas reservada para a biblioteca – Foto: Soraia Magalhães
Em vista da falta de ambientes culturais na cidade, os espaços construídos não deixam de ter importância, mesmo apresentando condições restritas em termos de tamanho, mobiliário e serviços.
Por curiosidade, busquei elementos para avaliar o que é possível fazer como o montante de R$ 45 milhões em reais. Para tal, investiguei valores investidos para a construção ou reforma de algumas das melhores bibliotecas do país, como por exemplo, a Biblioteca de São Paulo que em 2010, custou cerca de R$ 12,5 milhões. Outra construída no mesmo ano, a Biblioteca-Parque de Manguinhos, no Rio de Janeiro, foi orçada no valor de R$ 8,7 milhões em uma área de 2.300 m². Em se tratando de reforma, foram gastos com a Biblioteca Mário de Andrade cerca da 16,3 milhões de reais. O bom é que essas bibliotecas de fato atuam como promotoras do acesso à informação e ao uso do espaço como lazer e ao incentivo à leitura e a cultura de seus usuários.
Muitos poderão desconsiderar minhas observações apontando que as obras da reforma do Bumbódromo e a construção do Liceu vão além de um espaço de biblioteca, contudo essa é a chave do problema, haja vista que o governo do Amazonas tem a intensão de criar outros Liceus e gastando quantos milhões mais? Em benefício destes, é possível que o interior do estado jamais chegue a possuir uma biblioteca pública de qualidade. Nos Liceus, os moradores dos municípios contarão (quando muito) com pequenas salas, fragmento do que pode vir a ser uma biblioteca de qualidade.
Investimentos em equipamentos culturais para o Amazonas
Pensando na democratização da cultura no estado do Amazonas, faz-se necessário considerar a construção dos equipamentos culturais como elemento da promoção da cidadania, numa perspectiva extensiva a todos os municípios e com planejamento de espaços adequados aos ambientes visando efetivo fomento cultural.
Esta seria uma medida absolutamente necessária haja vista que várias localidades do estado não possuem bibliotecas públicas e a maioria, quando as dispõe são dotadas de ambientes desinteressantes, sem profissional capacitado, sem serviços.
Sabendo da existência de um projeto de interiorização que objetiva levar a proposta do Liceu Cláudio Santoro para outros municípios do Estado, me pergunto: este modelo é o ideal? A que valor financeiro estimado? E qual o critério de escolha das localidades? A imprensa amazonense noticiou que os próximos a dispor do benefício serão os municípios de Itacoatiara e Tabatinga.
Referente a estes municípios, pude constatar em pesquisa realizada entre 2012 e 2013, quando visitei 25 municípios do Amazonas, que o município de Itacoatiara era o único que possuía o maior número de equipamentos culturais, dispondo de biblioteca pública, cinema/teatro, espaço museológico e galeria de artes. Quanto a Tabatinga, não dispunha de biblioteca pública, tampouco outros espaços culturais e ao indagar do secretário de educação do município em 2012 sobre o problema, sua alegação era de que os moradores utilizavam a Biblioteca do Banco da República, na cidade vizinha, ou seja em Letícia, na Colômbia.
Até bem pouco tempo, o governo do Amazonas disponibilizava poucos recursos para o fomento da cultura no interior do estado, especialmente no que tange a criação de espaços culturais (equipamentos culturais). Será que essa situação mudou? Talvez seja a hora de se discutir o valor dos implementos e apontar o que queremos. E por que não começando a exigir bibliotecas públicas com padrão de qualidade?