Já faz mais de trinta anos desde a última vez em que assisti o Aborto Elétrico ao vivo. Brasília incendiava. Logo depois, o desajeitado do Renato Russo fundaria a Legião Urbana, um dos maiores grupos de rock n’ roll do Brasil. Nessa época, os garotos do Capital Inicial, Plebe Rude e Paralamas do Sucesso também se movimentavam. Protesto e Resistência, com P e R maiúsculos, eram as palavras de ordem dos 16 aos 30 anos.
É engraçado rever os fatos que atravessaram minha vida a galopes e perceber, ou pelo menos tentar, como eles passaram voando feito tufão. Às vezes, eu fico pensando se aproveitei tudo da melhor maneira possível, se não deixei nada para um amanhã que nunca viria. Era difícil ser estudante secundarista em um país recém-alforriado do domínio de armas, exércitos e punhos de ferro. A geração do meu irmão, quase doze anos mais velho do que eu, cresceu silenciada, sufocando ideias “subversivas” ou espalhando o pensamento de liberdade como se fosse crime, na calada da madrugada.
Há uns bons anos atrás, antes dos meus filhos se tornarem adolescentes de peito inflamado e donos do mundo, eu costumava sentar com eles na varanda de casa. Colocava-os lado a lado e enchia seus ouvidos de histórias. Meu primogênito, um garotão inquieto, costumava me perguntar:
– Papai, o mundo em que você e o tio Paulo viveram era bem pior, né?
Devo confessar que esse sempre foi o meu maior drama. Como explicar para os meus filhos que existiram, existem e sempre existirão mundos distintos? Como falar da existência de realidades que só estão separadas por gerações, hipnotizadas e manipuladas por sociedades sedentas por legitimidade, verdade e controle? Gerações que, em algum lugar de seus corações insurgentes, ainda podem resistir.
No começo da década de 1980, este velho bancário, hoje com pés e asas na aposentadoria, fazia parte de um grupo seleto de rebeldes que curtia muito punk/rock nacional e importado e encarava a democracia como a única responsável pela mudança no rumo do universo. Sim. Minha época ainda sentia o fedor do autoritarismo de militares caquéticos, gente com visão restrita por fuligem. Desejávamos ardentemente por algo novo, algo nosso. Como profetizou Renato Russo – sempre ele – e sua trupe, nós éramos “os filhos da revolução, burgueses sem religião”. Sair nas ruas em protesto não era motivo de status acadêmico, poder ou tentativa patética de ser pseudo-celebridade-cult. Os protestos traduziam a nossa mais sincera revolta contra a ineficiência do Estado, reconhecendo que nossas instituições falharam. Mais do que isso: que nossos pais falharam.
Era outro mundo, outra experiência, outro sentimento. Essência que já nasceu distante do cordão umbilical que uniu a experiência da minha esposa às novas vidas que dali brotaram. Décadas depois, percebo que minha casa está vazia. Meus garotos decidiram ganhar o mundo: passaram pela adolescência sem perceber, entraram na juventude sem lutar e conquistaram a idade adulta sem modificar. Tudo isso me faz concluir que o tempo passa diferente para cada um de nós e que estamos, invariavelmente, conectados ao contexto de pausas e esquecimentos.
Obrigado por me ouvir, garota. O meu caçula tem a sua idade. Como você disse que se chama mesmo?