Querida Nilma,
Recebi “Cartas do Rio São Francisco, novas e antigas conversas”. Como sempre, me detive na sua dedicatória, sempre tão gentil, sempre tecitura da nossa “fina sintonia”, sempre renovação da nossa amizade. Bendito seja aquele jantar em Bogotá, quando o acaso nos uniu. E eu enfim descobri que a escritora e pensadora que eu tanto admirava, capaz de conjugar as mais contundentes críticas com suprema elegância e delicadeza, era igualmente uma mulher admirável.
Aceitei prontamente seu convite para navegar com você nas águas do rio São Francisco. Embarquei. Impossível a recusa porque você é convite/chamado.
Escrevo em formato carta porque embarquei, de corpo e alma, na sua irrecusável proposta do vagar, que é oportunidade há muito perdida pela rapidez com que a comunicação trafega com a chegada das redes sociais: tão fundamentais para encurtar distâncias com os saberes e igualmente desmobilizadora do mergulho tão necessário para evitar aderir às banalidades e simplificações que promovem tantos equívocos e inverdades. Quando não, crueldades.
Logo nas primeiras ondas me reconheço e nos reconheço, eu e tantas pessoas, como o Velho Chico que você descreve: “outrora caudaloso e profundo, agora bem mais raso e bastante assoreado”. Impossível não sentir na pele a reciprocidade do que nós, tripulantes do Antropoceno, estamos infringindo à Terra. Nós nos desidratamos com ela, na exata medida em que a fagocitamos com voracidade.
Nilma, você discorre sobre um sentido e um chamado à escrita que não conjuga o verbo da economia de mercado e propõe o compromisso lindo de quem escreve pela simples e arrebatadora incapacidade nossa de dar conta sozinha(o) da vida que nos atravessa, sejam dores ou arrebatamentos, para daí então realizar pela escrita o que é tão humano em nós: convidar leitoras e leitores a suspender a vida que atropela e pilha para construir e fortalecer os sentidos do viver. Escrever para dizer, como diz Rilke – seu “companheiro” nesta viagem -, “das recordações herdadas da geração e da gestação de milhões de seres”. Na dimensão mesma do que dizia nosso tão querido amigo Bartolomeu, escrevemos porque não damos conta do que vemos e vivemos, precisamos compartilhar.
“… a arte é uma maneira de viver …” e ao preparar-se para vivê-la de “forma integra, sem arremedos e falseamentos. Ninguém é artista porque quer, mas porque precisa. Exatamente como fazemos com os livros. Lemos para nos lembrar de que somos humanos, precários e finitos, e a palavra redimensionada que encontramos na poesia e na ficção propicia ao nosso próprio léxico interior a construção do sentido para a existência”
Sua carta nos convoca a aguçar os ouvidos. A escutar o batimento do coração da vida. Para muito além do imediato que nos vicia no mesmo compasso em que nos sufoca. Outro dia li que Lacan alertava para o fato de que há o instante de ver e o tempo de compreender; o primeiro, imediato, e o segundo que pede mais. Pede que a gente se demore a escrever; demore a ler. Festina lente. Como você diz: “Ao escritor cabe acatar com reverência os escuros e os claros da vida, recusando-se a simplificá-los com representações banais que só lhes reduzem a própria magnitude”.
Suas Cartas arrebatam e mobilizam. Suas palavras anunciam e denunciam ao mesmo tempo em que nos convocam a mergulhar no profundo para emergir com mais aguçada compreensão das águas por onde navegamos para tão melhor atravessá-las. Impossível não sentir arrepio diante da compreensão imediata de que estamos dilapidando, ao mesmo tempo e com igual intensidade, tanto a natureza quanto as experiências leitoras de crianças, jovens e adultos, ignorando o deserto iminente. Quando você escreve: “Como o São Francisco, que vê a vocação de vida ser traída por predadores ao longo do seu curso”, eu leio que há muito tempo e pelas mais diversas razões estamos predando experiências leitoras de diversas gerações, que tanto poderiam fundar, mas desidratam porque são servidas e servem para desviar o curso do que poderia vir a ser fundante na alma humana. “A emancipação de horizontes”, como lhe escreve um professor de língua portuguesa, grato pelo “patchword” precioso com o qual você vem tecendo sentido e belezas no mundo; indignação e coragem poética.
“Que se possibilite ao pequeno leitor e à pequena leitora a clareza de que viver comporta ganhos e perdas e de que a linha da vida é trêmula e resistente me parecem os melhores doadores de sentido para o ato de escrever “
Sei que suas escolhas são preciosas, Nilma, e este saber jamais impede que você nos surpreenda com a simplicidade e profundidade delas. Como a fábula que escolheu para falar sobre a importância em distanciar a literatura dos seus usos funcionários – como usá-la para aprender a língua ou como manual de cidadania. A fábula retrata a história do rato que concorda com a proposta do gato para morarem juntos e cooperarem para encontrar alimento no inverno. O que acontece é que o gato consome matreiramente – ou “gatunamente” – e aos poucos o alimento angariado por ambos e de nada suspeita o rato. Até que chega o inverno e tudo se esclarece. O rato, mesmo diante do risco de morte iminente, não se cala e diz inteirinha a frase que põe fim à sua vida. A ideia que você evoca é para fazer frente ao ato de pilhagem, seja movido por ingenuidade ou planejado, rechaçando propostas simplificadoras ou moralizantes. A chave que você nos traz serve para iluminar a razão das razões da potência da linguagem: o rato fala para semear outras palavras no mundo. E apesar do pesar, semear a possibilidade de recriar esse mundo para quem as lê.
“Não cabe à literatura fazer o mundo de outra maneira. A ela caberá tão somente narrar e poetizar o mundo, vertê-lo em perplexidade, náusea, anseio, deslumbramento”.
Nilma, com a contundência e a delicadeza de sempre, você acerta em cheio em outro aspecto fundamental: o livro que é tão somente mercadoria e descartável. Impossível discordar. Também percebo o engodo no qual vemos muita gente mergulhar em terras desérticas de cultura leitora onde vale um vale tudo, que nutre apenas o mercado e não a alma humana. Não se trata de censura, tão em voga para varrer para debaixo do tapete temas que precisamos encarar de frente, para os quais a literatura tanto pode promover, nem de elitismo, no sentido de desfilar cânones sobre o que tem valor ou não, mas do que faz sentido e é significativo e, portanto, deve ser ofertado. Então de novo você acerta em cheio quando diferencia mediador(a) de formador(a), sendo este(a) alguém que vai muito, muito além e nos apoia para indagar o mundo e não a colecionar leituras a metro.
“A palavra, esse corpo para ocupar lacunas da natureza da existência”, como tão precisa e preciosamente você chama nossa atenção, desperdiça sua potência se circunscrita no ato funcionário. Convocada no contexto literário é portal para ousarmos humanidade, alertando que “a literatura não ensina bons modos, não é garantia de nada. Sua única função é lembrar-nos do humano”. Daí o desserviço que é tanto a euforia em sagrá-la à condição de panaceia para as adversidades humanas, que encerram tantas camadas para trato e cuidado, quanto aprisioná-la ao objetivo do ensino da língua. Ela que pede, como tão bem expressa Percival, “mais língua”. E penso aqui, Nilma, em porque temos patinado tanto, fracassado tanto e tanto na implementação e sustentação dos necessários programas de política pública de leitura, literatura e biblioteca, assim como na oferta de formação de qualidade para que educadoras(es) tornem-se boas(bons) leitoras(es), praticamente todos citados por você. Por que nosso fracasso em enraizar convicção sobre a potência da literatura? Por que seguimos desaguando no mesmo martírio do velho Chico?
Você me convoca, nos convoca, a resistir e navegar juntas na inescapável e irrecusável tarefa de assegurar que todas, todos, todes se banhem em rios caudalosos de palavras humanizantes e humanizadoras, significativas e prenhas de cuidados com as vidas.
Que suas Cartas cheguem às mãos e aos corações de milhares de educadoras e educadores e nas escolas Brasil adentro, convidando a experenciar estas águas anunciadas por você, mergulhar no seu profundo e emergir completamente arrebatadas(os) pela ideia de corromper hoje, no aqui e no agora, o uso funcionário do texto literário, submetido à lógica da avaliação e espoliado de toda a sua potência de nos afetar e promover o arrebatamento com a ideia de que podemos e devemos ser tão melhores do que vimos sendo.
“Cartas do São Francisco, novas e antigas conversas” é um livro que não pode deixar de ser lido. É uma carta náutica imprescindível a quem sabe que ler é preciso, para libertar criança e a infância de preconceitos para fundar um mundo melhor para todas as vidas hoje, aqui e agora.
Abraço com profunda admiração e profundo carinho,
Chris