Por Fabiano Ristow de O Globo
Um mundo devastado onde qualquer vida é aniquilada. Um porco rejeitado numa terra de elefantes. Uma realidade em que expressar emoções é proibido. Dois seres vivos excluídos pela sociedade. E uma cidade distópica em que imigrantes são queimados.
Essas são breves premissas de alguns filmes em cartaz no Anima Mundi que tratam de intolerância, um tema particularmente em evidência na 24ª edição do festival internacional de animação, que começa nesta segunda-feira, com uma sessão no Odeon para convidados, às 20h, e vai até o dia 30, em diversos espaços da cidade, antes de seguir para São Paulo.
Nas obras, a intolerância se manifesta na forma de rejeição pelo diferente e pelo estrangeiro, e no conflito entre classes sociais.
— A discriminação está por toda a parte, e é cada vez mais recorrente no mundo — diz o chinês Wenyu Li, diretor de “Ida à cidade Ele”.
No filme, um porquinho da cidade rural P se muda para a metrópole (chamada Ele), habitada apenas por elefantes. Lá, é vítima constante de preconceito. Os animais maiores se afastam do caipira como se fugissem de uma doença. Mais tarde, uma revelação: alguns dos elefantes são, na verdade, porcos com trombas falsas — uma manobra de disfarce para serem aceitos na sociedade. A metáfora é ampla, e pode ser vista, inclusive, como uma referência à homofobia.
— O mais sério é o preconceito que existe entre pessoas de um mesmo grupo. Elas olham para si e não se aceitam — continua Wenyu Li. — A história precisava de um pouco de humor, e espero que ela ressoe entre o público infantil.
Situação semelhante pode ser vista no alemão “Rua do templo de Bambu”, em que uma imigrante pobre sofre bullying na escola por causa de suas origens.
— A história é baseada numa colega de classe que tive na infância — revela a diretora chinesa Baoying Bilgeri. — Quando me mudei para a Alemanha, li sobre outros casos semelhantes, de crianças que passaram por muitas dificuldades por pertencerem a uma “classe” diferente.
O libanês Chadi Aoun, de “Silêncio”, concorda: o tema da intolerância anda mais presente nas animações. O motivo, para ele, é sombrio:
— Vivo numa parte do mundo em que há muito a ser aperfeiçoado, mas, numa escala global, todo o mundo está sofrendo. A Humanidade parece estar entrando na era das trevas. A democracia obviamente é falha. O capitalismo, apesar de eu viver nele e não ter um sistema melhor para oferecer como substituto, é desumanizante. Países desenvolvidos estão se tornando mais racistas, enquanto os pobres sofrem cada vez mais com a corrupção.
Em “Silêncio”, uma ditadura comandada por fanáticos religiosos proíbe qualquer tipo de expressão. Os habitantes usam máscaras para esconder as feições. Rebeldes recorrem à dança como uma espécie de protesto silencioso, mas a punição para essas pessoas é uma morte sanguinária, em praça pública. Assim como muitos outros animadores, Chadi Aoun se aproveita da liberdade criativa da animação para sustentar críticas a governos autoritários.
— O filme trata da oportuna questão da liberdade e da repressão no mundo árabe, da necessidade da diversidade sexual e espiritual. A juventude herdou uma sistema político em decadência. Encontrou uma forma de expressar suas ideias através das manifestações que ainda afetam a região na esperança de um futuro melhor — diz o diretor, referindo-se à Primavera Árabe.
No curta indiano “Schirkoa”, os rostos da população também ficam escondidos. Nesse caso, com sacolas de papelão. É uma decisão tomada pelas autoridades no poder (chamadas de “intelectuais”), numa tentativa “revolucionária” de neutralizar as diferenças culturais, sociais, religiosas e políticas. Alguns cidadãos, no entanto, têm traços corporais diferentes, o que gera uma ameça à desejada massificação da sociedade. Desafiam a lei e são chamados de “imigrantes”, e queimados em praça pública. Alguns não aguentam a pressão e se suicidam.
— Quando comecei a escrever o roteiro, em 2012, o filme era apenas uma distopia fantástica — lembra o diretor Ishan Shukla. — A premissa, hoje, é uma metáfora do mundo atual. A onda de animações que têm “discriminação” como tema é fruto da consciência e da liberdade criativa nas mãos de animadores independentes.
Num contexto em que animadores expressam sua preocupação com o rumo da Humanidade, “Balada de Natal”, da República Checa, oferece uma das visões mais pessimistas. O filme é ambientado numa terra destruída pela guerra. Um garoto tenta sobreviver entre entulhos, enquanto foge de robôs que exterminam qualquer sinal de vida.
— É um drama humano, mas também um filme apocalíptico referente aos cenários que se repetem após um conflito militar — explica o animador Michael Zabka. — É importante jogar luz no absurdo de uma guerra. A Humanidade ainda comete os mesmos erros irreparáveis.
O belga Pieter Coudyzer, diretor de “Monstro!”, defende a capacidade de se colocar na pele de outros seres humanos como um importante passo em direção a um mundo mais tolerante. O filme retrata a inesperada amizade entre um morador de rua (quase invisível perante os olhos da população) e um alienígena.
— Vivemos num mundo estranho e virtual que afetou nossa empatia. Falamos de insatisfações sobre questões sociais usando “curtidas” e “emojis”. Eis a ironia: estamos nos expressando o tempo todo, e, simultaneamente, expressando nada.
CRISE AFETA O ANIMA MUNDI
O 24º Anima Mundi terá mais de 400 filmes espalhados por um circuito que inclui Cine Odeon, Cinemateca do MAM, Oi Futuro Ipanema, Centro Cultural da Justiça Federal, Ponto Cine, Cidade das Artes, entre outros.
A quantidade de filmes é alta e o circuito foi ampliado, em relação ao ano passado. Mas a crise que tem afetado os festivais de cinema brasileiros também fez do Anima Mundi uma vítima. Os organizadores não revelam o orçamento, mas uma das diretoras do festival, Aída Queiroz, diz que o valor está entre 40% e 50% abaixo do ideal. Como consequência, a edição carioca do evento terá menos convidados estrangeiros e não contará com as oficinas gratuitas de animação.
— A importância da oficina é muito importante, porque dá formação. Podemos até “pular” este ano, mas não outra vez. O Anima Mundi precisa ser executado em sua totalidade. Se não, vai virar só uma mostra de cinema, e essa não é a nossa proposta — diz Aída.