“Não matarás!”, assim está escrito no livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 13 da Bíblia, livro máximo para a doutrinação de cristãos do mundo inteiro. O Brasil ainda ostenta o título de maior país cristão do mundo, algo que é explorado amiúde por artistas (mesmo não tendo condutas de cristãos), pessoas públicas (que em tudo põe o nome do deus cristão na conversa, mesmo sendo proibido falar o nome dEle em vão), e políticos, que não raro, reivindicam a pertença a alguma denominação cristã para ganhar a simpatia do eleitorado, e, consequentemente, os votos do mesmo.
O atual presidente do Brasil, observando a dinâmica religiosa da maior parte da população brasileira, utilizou em sua campanha (vitoriosa, mesmo com urnas eletrônicas), um slogan que dizia: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”. Com um discurso sem muita sofisticação do ponto de vista da retórica e dos argumentos, o chefe do executivo nacional conquistou mentes e corações para seu intento, haja vista que projeto mesmo não tinha nenhum. Claro que a rejeição ao partido que disputava às eleições com o atual presidente ajudou e muito na campanha vitoriosa, entretanto, a utilização de um discurso com apelos cristãos não passou despercebido.
Outro chefe do executivo, neste caso do executivo estadual, também transita na seara religiosa e cristã. Lembro-me de quando o governador eleito do Estado do Rio de Janeiro foi afastado das suas funções, em decorrência de abertura do processo que veio a culminar na perda do cargo meses depois, o governador atual, o senhor Claudio Castro, estava tocando música numa celebração religiosa em uma simples igreja na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Era a primeira entrevista dele como governador interino do segundo estado em importância financeira, política e cultural do país.
Fiz questão de introduzir este texto chamando a atenção para condutas marcantes tanto na prática cristã (pelo menos no que foi escrito), quanto na prática de alguns políticos do país, que utilizam da religiosidade, boa fé e uma certa ingenuidade de parte da população brasileira, para angariarem votos que possibilitarão a permanência destes agentes políticos por pelo menos, mais 4 anos no poder. E aqui vale ressaltar que não há nenhuma crítica a religiosidade de qualquer pessoa!
No último dia 24 de maio de 2022, houve mais uma operação da polícia do Estado do Rio de Janeiro, em comunidades que sofrem há anos o abandono do próprio estado, bem como a truculência e ousadia de marginais e elementos de grupos paramilitares (que são tão marginais quanto os primeiros). A comunidade da vez foi o complexo da Penha, que reúne diversas favelas na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
O pano de fundo da operação foi comprimir mandatos de busca e apreensão e combater grupos que praticam assaltos em vias públicas da região metropolitana do Rio, em vistas a subtraírem cargas transportadas por caminhões. Essa prática de roubo de carga tem sem alastrado pela região metropolitana, sendo uma das principais fontes de renda que mantém grupos de marginais e seus negócios nebulosos.
Em parceria com a PMERJ nesta incursão às comunidades do Complexo da Penha, estava à Polícia Rodoviária Federal, que utilizou de parte do seu aparato bélico na ação. Não foi a primeira vez que a PRF participou de incursões a comunidades abandonadas pelo estado e explorada pelo tráfico no estado do Rio. Em São Gonçalo, também na região metropolitana, em maio de 2020, o jovem João Pedro de 14 anos, foi assassinado dentro da sua própria casa com tiros de fuzil. Não obstante, a família ficou mais de 24 horas procurando informações sobre o paradeiro do menino, o que foi esclarecido bem depois.
Em maio de 2021, outra operação policial em comunidades abandonadas pelo estado e explorada por traficantes e milicianos, entrava para a história da violência do Brasil. 28 pessoas foram mortas na até então, mais letal operação já liderada pelo estado. A opinião pública se dividiu para tecer comentários sobre o ocorrido. Pessoas com o mínimo de civilidade possível, ao classificar como barbárie o que aconteceu, foram acusadas de defenderem bandidos. Geralmente é assim; quem denuncia o abuso do estado no tocante a questão da violência, sempre é acusado/a de defender bandido; de ter envolvimento com bandido e de ser “esquerdistas”, seja lá o que isso quer dizer.
É curioso como os ânimos da população ficam aflorados quando acontece algo deste tipo no país (sobretudo no Rio de Janeiro, que acaba sendo uma espécie de laboratório da violência nacional). Não há pena de morte no Brasil, pelo menos no ponto de vista da lei, entretanto, quando se trata de matar traficantes em comunidade abandonadas pelo estado e exploradas por marginais e milicianos, a opinião pública, não raro, aponta para uma aprovação da ação policial.
Aqui podemos fazer à ponte com o início do texto, em que eu trouxe uma pequena, mas incisiva passagem bíblica. Segundo dados do IBGE, há hoje no Brasil cerca de 80% da população que se declara cristã. Isso mostra que o país continua com um alto índice de pessoas com religião, e, sobretudo, a religião cristã. Ora, se fizermos uma pesquisa nesta mesma população sobre a conduta da polícia em comunidades abandonadas pelo estado e explorada por marginais, teremos, sem dúvida, um alto índice de aprovação, mesmo que o saldo seja de 28 pessoas mortas.
Acredito que precisamos entrar numa seara delicada agora, algo que gera algumas dúvidas, mas também mal cartismo por parte de pessoas que vivem para distorcer o debate de ideias. A pena para o marginal já está tipificada nos códigos regidos pela legislação brasileira. E neste caso, não há a tipificação de pena de morte como pena para quem transgrida à lei. Sendo assim, ter uma pessoa morta por forças do estado em operações, já compromete toda a operação.
Se há marginais a solta, o estado dispõe de instrumentos legais para que essas pessoas possam ser capturadas, indiciadas e levadas a julgamento. Se o estado não consegue cumprir com determinações estabelecidas pelo próprio estado, há de se pensar se quem lidera o estado tem condições de continuar no cargo. Sair matando pessoas indiscriminadamente como pretexto para se combater crimes, coloca o estado na mesma posição de quem comete crimes, ou seja: não se combate crime praticando crime!
Este é um assunto delicado que, como mencionado acima, causa dúvidas em alguns, mas faz com que outros aproveitem para espalhar suas toscas e capiciosas contribuições nefastas, que mais plantam dúvidas e/ou afirmação de justiçamento.
Lembro que em 2021, o governador Claudio Castro, questionado sobre a ocorrência, disse em pronunciamento que: “[…] a operação ocorrida no Jacarezinho, foi uma fiel cumpridora de dezenas de mandados expedidos pela justiça…” Oi?! A justiça mandou matar 28 pessoas?! E continua dizendo que o tráfico impôs uma rotina de terror e humilhação aos moradores. Trafico que tem terreno livre para exercer o terror, pois o estado abandonou há décadas às comunidades.
Das 28 pessoas mortas em maio de 2021 no Jacarezinho, a maioria eram de pessoas negras e/ou com traços negróides, embora a pele não fosse retinta. O filósofo Achille Mbembe, em seu aclamado livro, “Necropolítica”, afirma que este conceito corresponde a capacidade de criar parâmetro em que a vida é secundária diante da morte, de forma legítima. O autor continua dizendo que a necropolítica se dá não apenas pela morte, mas pela destruição dos corpos.
Você lembra como os corpos do Jacarezinho foram transportados? Jogados em caçambas de viaturas do estado; com perfurações de balas disparadas por arma de grosso calibre, a curta distância. Cabeças estouradas, corpos perfurados e arrastados pelas vielas desertas de uma comunidade da cidade maravilhosa…
Como não lembrar de Cláudia Silva Ferreira, mulher preta e moradora de comunidade. Foi jogada na caçamba de uma viatura da polícia, depois de ser alvejada por uma bala. Este corpo que já sofria por ser mulher, este corpo que já sofria por ser preta, mesmo depois de ser perfurado por uma bala que mata, foi arrastada por cerca de 350 metros, no asfalto, em um dia de sol na cidade maravilhosa.
E aqui voltamos ao complexo da Penha. Em uma terça-feira de sol na cidade muitas vezes cantada por diversos artistas, o Estado sobe o morro para cumprir mandados de prisão, busca e apreensão. O saldo, já conhecido de muitos, beira à casa dos 25 óbitos, dentre os quais, Gabrielle Ferreira da Cunha, que estava dentro da sua casa, na localidade da Chatuba, no complexo de favelas. Presos até agora não se tem notícias! Mais uma vez, os corpos que foram jogados nas caçambas das viaturas, são corpos pretos, e quando não retintos, com traços negróides, para não restarem dúvidas de quem estamos falando.
Não se engane, o estado que trago a baila, é o mesmo estado em que um bombeiro militar vai ao seu carro, pega uma arma, e atira em um atendente de uma lanchonete, por conta de R$ 4,00. Foi neste estado que uma delegada foi presa em seu apartamento com mais de 1,9 milhão de reais em espécie. Aconteceu neste estado um assassinato, em que 3 militares da Marinha espancaram um policial civil, jogaram-nos dentro de um carro da própria Marinha, e lançaram o corpo no rio Guandu, sendo constatado como causa da morte, afogamento. Este mesmo Estado em que policias de 7º batalhão mataram uma juíza…
Faz necessário lembrar aqui, por uma questão de lógica no argumento, que as duas maiores apreensões de fuzis no Estado do Rio de Janeiro se deram sem que um tiro fosse disparado. Estou falando da operação que interceptou a chegada de peças de fuzis ainda no aeroporto internacional do Rio, e da operação que flagrou e apreendeu 117 fuzis do tipo M-16 que seriam montados, numa casa que fica em um famoso condomínio da Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade maravilhosa; condomínio este que têm ilustres moradores.
Como se observa, as operações que resultaram em mais de 50 mortes, dentre as quais pessoas comprovadamente inocentes, não apreenderam fuzis e drogas que fossem capazes de confrontar com o número de armas apreendidos em duas operações que não houve sequer um tiro, quanto mais mortes.
O governador do Rio de Janeiro veio a público defender as operações, afirmando, dentre outras coisas, que não aceitaria anarquias no Estado. Eu fico me perguntando se o governador sabe o significado clássico de anarquia… Em dois anos de governo, foram 39 operações polícias, e um saldo negativo de 181 mortes. Para os ávidos por sangue e carne preta, até que o governador do segundo estado em importância no Brasil, vai bem, obrigado.
O presidente do país, em mais um momento de lucidez, do ponto de vista da psicopatia que o envolve, comemorou a ação policial na Penha, algo que já tinha feito também por ocasião da chacina do Jacarezinho. Diga-me uma novidade se tratando de uma pessoa que foi incentivadora da criação de grupos paramilitares, chegando, inclusive, a convidar estes grupos para virem atura no Rio.
Em suma, para não os cansar mais, o que se vê no Rio de Janeiro é a barbárie em estado bruto, cometida não apenas por parte dos marginais (que de resto não se tem muito o que esperar), mas por parte do estado, que deveria ser o primeiro a cumprir às regras que ele próprio estabeleceu e tem a obrigação de fiscalizar. E por parte dos agentes do estado, muita hipocrisia e zero exemplo de cristandade e se serem cidadãos de bem; embora o conceito de cidadão de bem nos últimos tempos, vem sofrendo mudanças bruscas, como por exemplo: é cidadão de bem que defende a morte de marginais, é preconceituoso, ignorante, sexista, xenófobo… sendo assim, vou preferir ser um cidadão do mal, que sempre vai lembra do mandamento: “não matará!”