Imagens que se transformam em notas; visões que dão origem às letras e sons flutuantes, efémeros. A poesia do fugaz, tal como o último suspiro do sol antes do anoitecer ou o olhar perdido para uma lembrança que já se foi. Assim é a música produzida pela banda francesa Alcest, um dos grandes nomes mundiais do blackgaze, uma mistura de shoegaze – estilo de rock alternativo que surgiu na Inglaterra no final dos anos 1980 e que tem como caraterística os riffs longos, hipnóticos, distorções misturadas com melodias suaves (uma gangorra entre ruído e harmonia) – e black metal.
As denominações podem variar – dream pop, post rock, post punk, trip rock -, mas a produção do Alcest vai muito além de rótulos. Formada em 2000 pelo então adolescente Stéphane Paut, mais conhecido como Neige (Neve em francês), a banda bombeia as visões e sonhos do músico multi-instrumentista e compositor, que coloca no papel tudo aquilo que vê e ouve em um mundo distinto do nosso. No decorrer dos anos, o vocalista e guitarrista vem afirmando em várias entrevistas que, desde criança, vê imagens de outros mundos (dimensões), conexões e experiências espirituais que mudaram a sua forma de viver. Na sua infância, essas sensações eram nítidas e mais fortes. Com o tempo, ele encontrou na música uma forma de expressão imprescindível. E dessa vontade de manifestar suas visões e sentimentos nasceu o Alcest.
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As declarações concedidas por Neige em quase duas décadas têm permanecido cada vez mais intensas em suas composições. Em 2005, a banda lançou o EP “Le Secret”, trabalho que rendeu críticas positivas e, aos poucos, foi aproximando o público da cena underground. Apesar da sonoridade mais voltada ao black metal, é possível perceber uma atmosfera mais pausada, capaz de provocar certo sopor – no sentido positivo da metáfora. Mas foi com “Souvenirs D’Un Autre Monde” (2007) que o Alcest começou a conquistar mais espaço e uma audiência continuamente encantada com a música e a identidade atrás dela. As seis faixas do álbum são inovadoras, soando como o distanciamento mágico do shoegaze (alcançado por bandas como Slowdive e Cocteau Twins) e acompanhadas da atmosfera metal. As canções “Les Iris” e “Souvenirs D’Un Autre Monde” estão entre as preferidas do público até hoje. As experiências sensoriais e oníricas protagonizadas pelo músico francês em sua infância ajudaram a construir esse álbum. Em algumas entrevistas, Neige tentou aproximar suas visões, comparando-as, proporcionalmente no que lhes cabe, a filmes como “Um Olhar do Paraíso” (The Lovely Bones – 2009) e o sueco “Deixa Ela Entrar” (Låt den rätte komma), este último no que se refere à ingenuidade e amizade entre duas crianças.
Em 2009, o baterista Jean Deflandre, conhecido como Winterhalter, entra na formação fixa da banda. Antes, Neige trabalhava com músicos convidados e realizava todo o processo de produção sozinho. No ano seguinte, o Alcest lança “Écailles de Lune”, álbum que se tornaria um clássico para o estilo “blackgaze”. Aliando o lirismo onírico do shoegaze aos vocais rasgados do black metal, “Écailles de Lune” faz uso de uma linguagem alegórica para falar de ‘escalas da lua’, ‘avanços da luz’ e ‘oceanos cor de ferro’. É o retrato perfeito das visões de Neige; imagens que podem ter sido vistas também pelo poeta e pintor inglês William Blake (O casamento do céu e do inferno), pelo poeta Arthur Rimbaud (Uma temporada no inferno) e por pintores pré-rafaelitas como John Everett Millais (Ophelia, Autumn Leaves, Chill-October, Dew Drenched Furze), John William Waterhouse (The Lady of Shallot, The Magic Circle, Miranda -The Tempest) e William Holman Hunt (The Scapegoat, Our English Coasts).
O álbum “Les Voyages De L’Ame” (2012) retornou à atmosfera de “Souvenirs D’Un Autre Monde”, focando em músicas ainda mais próximas de campos bucólicos, rastros de memórias apagadas e equilibrando a suavidade com o peso. As canções são extremamente agradáveis e começaram a satisfazer também outro tipo de público, não tão afeito aos pesos e guturais do black metal. Optando por compor e cantar em francês, idioma nativo da banda, Neige trouxe ao cenário da música alternativa uma opção a mais. “Autre Temps”, “Là Ou Naissent Les Couleurs Nouvelles”, “Les Voyages De L’Ame” e “Nous Sommes L’Emeraude” são faixas especiais do trabalho e que revelam a essência do álbum. Com cada novo projeto, o Alcest foi conquistando cada vez mais popularidade ao redor do mundo. Não só pela qualidade musical, mas também por apostar em outra sonoridade, algo que foge dos exaustivos clichês que começaram a vitimar o cenário heavy metal e a música alternativa desde meados da década de 1990.
Com o lançamento do seu quarto álbum, “Shelter” (2014), a banda francesa enfrentou, inicialmente, a desconfiança e a indignação de fãs mais voltados à sonoridade “blackgaze”. Por ter uma estética mais ‘angelical’, dream-pop e menos agressiva, o álbum traz aquela sensação de ‘meditação, yoga e relaxamento’ de canções new age. A mudança aproximou a banda de outro tipo de audiência e fez o público mais “fundamentalista” apontar o dedo. Um ponto extremamente positivo para o Alcest com o lançamento de Shelter é a demonstração de imprevisibilidade e criatividade, comprovando mais uma vez que os caminhos da criação não estão fechados. São destaques “La Nuit Marche Avec Moi”, “Voix Sereines”, “L’eveil Des Muses”, “Shelter” e “Délivrance”.
De lá para cá, os franceses têm feito shows ao redor mundo – já passaram pelo Brasil duas vezes, em shows realizados em São Paulo – e preparam os fãs para “Kodama”, seu mais novo trabalho. Para as apresentações ao vivo, a banda conta com o baixista Indria e o guitarrista Zero. Com três faixas disponibilizadas em canais da internet (Youtube e pelo serviço de streaming Spotify), o quinto álbum promete trazer de volta à vociferação e o peso de Écailles de Lune. A proposta levantada por Neige é a de relação com as forças da natureza, com a permanência em dois mundos distintos – temática sempre retomada pela banda – e a conexão da dimensão física com a espiritual. Influenciado pela cultura japonesa e pela obra do diretor e criador de animação Hayao Miyazaki (“A Viagem de Chihiro”, “O Castelo Animado” e “Princesa Mononoke”), Neige buscou inspiração na obra Princesa Mononoke para construir “Kodama”. Com lançamento marcado para o dia 30 de setembro, a banda tem divulgado as músicas “Oiseaux de Proie”, “Je Suis D’Ailleurs” e a faixa que dá título à obra.
Alcest tem se diferenciado na cena musical pela originalidade, pelo som que induz à imagens – tal qual poemas japoneses – e pela mente aberta, disponível para reflexões e inflexões. Afinal, para viajar entre mundos, é necessário acreditar em si mesmo. Ou, como aconselhava Lao Tzu, reconhecido filósofo chinês: “Um bom viajante não tem planos fixos e não está interessado no destino final”.