“A curva da letra S”

Eu comparo essa vida

À curva da letra S:

Tem uma ponta que sobe,

Tem outra ponta que desce.

E a volta que dá no meio

Nem todo mundo conhece.

(Pinto do Monteiro)

 

A cultura brasileira é composta por uma infinidade de manifestações culturais, dentre as quais pode-se destacar as que são provenientes da cultura oral. Tais manifestações concentram-se principalmente no nordeste brasileiro, mas estão presentes no país como um todo. É importante ressaltar que as manifestações provenientes da cultural oral são conhecidas por boa parte da população brasileira. Muitos indivíduos sabem ou já ouviram um trava-língua, parlenda, causo, um repente, uma música, uma rima, cantiga de roda, uma narração de história etc.

Mas, afinal o que é manifestação cultural? De forma simplificada, Bodart, no texto “Manifestações culturais e patrimônio cultural”, diz que é toda forma de expressão humana, seja através de celebrações e rituais ou de outros suportes como imagens fotográficas e fílmicas. Além disso, Bodart afirma ainda que expressões das culturas humanas também são propagadas através de outras linguagens, como a linguagem escrita e a verbal. Vale salientar que não se objetiva, aqui, traçar, determinar conceitos sobre manifestações culturais, mas discutir a oralidade dentro desse contexto, objetivando a integração desta e de seus protagonistas em espaços consagrados à escrita como a biblioteca.

Nesse sentido a biblioteca, especialmente a biblioteca pública, na amplitude do seu papel sociocultural, torna-se um dos principais palcos para a expressão da cultura oral, pois conforme Manifesto da Unesco sobre Bibliotecas Públicas (1994), entre algumas das missões dessa biblioteca estão a de “fomentar o diálogo intercultural, favorecer a diversidade cultural e apoiar a tradição oral”. Além disso, é importante destacar que a cultura brasileira, como também a cultura de outros países da América Latina, é marcada por manifestações culturais provenientes da cultura oral, um dos principais legados dos povos indígenas e africanos. Portanto, a introdução de manifestações da cultura oral em ambientes marcados pelo registro gráfico, como a biblioteca, reafirma a complementaridade entre oralidade e escrita, uma vez que ambas ajudam a compor a diversidade cultural brasileira e latino-americana.

Desse modo, a poesia “A curva da letra S”, citada no início deste texto, do poeta e repentista Pinto do Monteiro, um dos principais poetas repentistas do nordeste, é uma ilustração das diversas manifestações culturais da cultura oral. Além do repente, aboios, côco de embolada, literatura oral, cantoria de viola, entre outras, são formas de manifestações que expressam o saber, o conhecimento, a arte, a forma de pensar de um grupo, comunidade, povo, sociedade. São, também, manifestações culturais marcadas pela oralidade, visto que são manifestações provenientes da cultura oral.

Na série “Poetas do repente: tecendo o repente” produzida pela TV Escola e Fundação Joaquim Nabuco etc., o pesquisador e escritor Bráulio Tavares fala que, “o repente existe na maioria das culturas, principalmente nas culturas rurais, nas culturas não literárias, nas culturas que não usam muito a palavra escrita, nas culturas que dependem, principalmente, da comunicação oral, da memória”. Ainda conforme Tavares, […] “no caso do nordeste, principalmente, nós temos uma herança africana muito grande e o africano é um grande improvisador, esse espírito improvisador do africano veio para o nordeste, nós temos ele no maracatu, côco de embolada, temos na cantoria de viola e assim por diante. Então, uma das grandes fontes do repente do nordeste é a África”. O Brasil tem muito da cultura africana, o que ajuda a tecer a diversidade cultural brasileira, especialmente no que diz respeito à cultura oral, conforme Tavares apontou anteriormente.

E em se tratando dos povos e comunidades que não desenvolveram a escrita, povos ágrafos, principalmente, a oralidade, articulação do som que constitui a fala, o ato de falar, tornou-se a principal forma de comunicação e expressão em torno da qual esses povos desenvolveram suas culturas. Isso permite inferir que a oralidade é uma das principais marcas das formas de manifestação cultural dos povos ágrafos, e também dos indivíduos iletrados (analfabetos), uma vez que na condição de iletrado este tem a oralidade como principal forma de manifestação e comunicação.

Nesse sentido, segundo a obra “Literatura Afro-Brasileira” (2006), “nas culturas africanas, principalmente hoje, compreende-se a história a partir da compreensão da oralidade. É através da oralidade, da voz do/s narrador/es que os mitos e os modos de organização dos rituais são transmitidos. Os mitos são constituídos de palavras organizadoras dos caminhos e vivências de cada um, em particular, e da comunidade”. Compreender a oralidade, as manifestações provenientes das culturas orais para compreender a história, especialmente, nas culturas africanas. E compreender a oralidade para compreender a história da escrita e vice-versa.

Dessa maneira, entende-se que a oralidade se configura numa das formas de manifestação cultural que alcança quase todos os indivíduos, quer seja letrado, quer seja iletrado. E a literatura oral – elemento que auxilia na composição do acervo da cultura oral – também é um exemplo disso, uma vez que, conforme aponta a obra “Literatura Afro-Brasileira”, se refere a histórias que tiveram sua origem em histórias contadas de geração em geração, passando de boca em boca, reproduzida pela memória e construída pela atuação coletiva.

Conforme Câmara Cascudo (2006), no livro “Literatura oral no Brasil”, “a literatura oral brasileira reúne todas as manifestações da recreação popular mantidas pela tradição […] [e] se comporá dos elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual. Indígenas, portugueses e africanos […]”. Desse modo, compreendem-se como elementos compositores da literatura oral, histórias míticas que contam a história do início do mundo, histórias mágicas, contos, causos, entre outras manifestações literárias preservadas, principalmente, por meio da palavra cantada ou falada.

Assim, nos meandros da cultura oral, além da literatura oral, observa-se também que a oralidade aparece como manifestação cultural na música, uma vez que esta é também uma forma de expressão de um povo, veiculada principalmente pela voz e a sonorização.

Nesse sentido, a música é uma expressão cultural que fez e faz-se presente, ao longo dos tempos, na vida de quase todo indivíduo, independente deste ser letrado ou iletrado. Entende-se que a música alcança tanto os iletrados quanto os letrados pelo fato da oralidade e a sonorização serem algumas das principais características dessa manifestação cultural. Pode-se dizer, de modo geral, que o som alcança quase todos os indivíduos. No artigo “Música: uma aventura entre o oral e o escrito”, Ramalho (2003) afirma que “a oralidade, no campo da linguagem musical, abrange todas as esferas das expressões sonoras, sejam elas de caráter tradicional ou revestidas de uma elaboração mais culta. A música, arte do tempo, apresenta modos de comunicação que superam o texto escrito, uma vez que […], a oralidade é seu substrato essencial”.

No texto “Literatura e oralidade: da canção poética à canção popular”, Luciana Ferreira Moura Mendonça afirma que a voz, a sonorização, antes da constituição do livro como suporte de leitura, contribuiu para garantir a divulgação da arte poética e o desfrute desta por parte da coletividade. Nesse sentido, Lyons (2002), no capítulo “ Os novos leitores no século XIX: mulheres, crianças, operários” no livro “História da leitura no mundo ocidental, vol. 2” diz que “nas ruas londrinas, os vendedores de música, ofereciam seus folhetos no pátio dos prédios residenciais, cantadores colocavam suas baladas à venda cantando […]”. Ainda de acordo com Mendonça (1998) “mesmo quando o uso do sistema gráfico foi mais difundido, a música permaneceu uma tradição oral”.

 Desse modo, entende-se que a música, enquanto forma de manifestação cultural, está entranhada no cotidiano do indivíduo independente deste saber ler e escrever e conforme Evandro Rodrigues da Silva, na sua dissertação de mestrado “Ouvidos abertos: a oralidade, a escrita e a canção”, música e letra são a escrita cantada. Assim como o sarau de poesia é a escrita falada.

Dessa forma, a Música Popular Brasileira (MPB) torna-se um exemplo desse fato, visto que a composição das letras dessas músicas, dentre outros aspectos, retrata, na maioria das vezes, o cotidiano da vida das pessoas. Segundo Telma Ardoim, no texto “Os ecos da oralidade na música popular brasileira”, a canção popular é fronteiriça à linguagem escrita e oral, apresentando aspectos das duas linguagens em diferentes graus. Nesse sentido, ela afirma que Tatit em sua obra “Análise Semiótica através das Letras” diz que “a voz da fala não é subsumida de modo absoluto pela voz do canto. Ao contrário, o segredo da canção popular é exatamente preservar o elã conferido pela fala coloquial. Ainda de acordo com Ardoim, no seu texto supracitado, a coloquialidade, a presença da voz da fala na MPB, torna-se um diferencial em relação à música erudita, uma vez que esta última tem uma proximidade maior com o texto escrito formal.

Seja Música Popular Brasileira (MPB), repente, cantigas de roda, côco de embolada, causos, versos, rimas, poesia, contos, palavra cantada ou falada, contação de histórias etc., observa-se que, independentemente de o indivíduo saber ler ou escrever, as manifestações culturais provenientes da cultura oral, de certa maneira estão presentes no dia a dia dos indivíduos e ajudam a tecer a diversidade cultural brasileira. Além disso, tais elementos provenientes de manifestações da cultura oral tornam-se acervos férteis para a introdução e exploração da cultura oral em ambientes consagrados à escrita.

De modo geral, nota-se que há muito tempo a oralidade e escrita contribuíram e contribuem entre si para a produção e difusão cultural, seja pela palavra cantada ou falada, seja pela palavra escrita. Portanto, não há como não haver espaço para as manifestações da cultura oral em ambientes como a biblioteca, cuja existência gira em torno do registro escrito. Nos últimos anos algo está mudando com relação a esse fato, principalmente em algumas bibliotecas públicas. Logo, as manifestações da cultura oral e, seus protagonistas, não devem em ambientes consagrados à escrita, serem enxergados de maneira contraditória e preconcebida.

Assim sendo, e considerando a riqueza, o valor cultural e histórico e a importância da manifestação das culturas orais, que ajudam a tecer e compor o acervo da diversidade cultural brasileira, a biblioteca, especialmente a biblioteca pública, na amplitude do seu papel sociocultural, torna-se um dos principais palcos para a expressão da cultura oral. Torna-se palco ideal para a manifestação da poesia e palavra cantada. A biblioteca torna-se também um dos palcos apropriados para acolher e integrar a poesia falada ou a palavra cantada que vem da voz de todos os indivíduos, quer seja letrado, quer seja iletrado.  A biblioteca pública, como instituição sociocultural é um espaço para manifestação das culturas provenientes da oralidade como também é um espaço, no contexto da democratização e acesso a informação e aos bens culturais, que deve acolher e integrar os indivíduos letrados ou iletrados à cultura oral e escrita.

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