Ao perguntar em que momento tem início a história do leitor podemos organizar nosso olhar sobre os elementos que orientaram e orientam a produção de livros para crianças pequenas e pensar o início da vida e o momento da entrada do bebê no universo da cultura, com Yolanda Reyes (A casa imaginária, 2010).

De acordo com Reyes, “falar de leitura na primeira infância exige contexto porque todos sabem que os bebês não leem, no sentido convencional da palavra”. Mas, segundo ela, “também sabemos que a leitura tem suas raízes na complexa atividade interpretativa que o ser humano desenvolve desde seu ingresso no mundo simbólico”, o que leva a seguinte questão: quando começa então a história do leitor?

Assim também podemos questionar: quando nasce o bebê, também nasce o leitor? Que tal perceber a infância em sua relação com a liberdade e a imaginação? Podemos ir além da percepção de suas capacidades iniciais, motoras, de comunicação verbal e também das ações de cuidado, aspectos que, em geral, orientam o olhar do adulto para a primeira infância.

O escritor e pensador Bartolomeu Campos de Queirós nos convida a pensar em quatro dimensões que ajudam a ampliar nosso conhecimento sobre o encontro entre a criança desde bebê e os livros de histórias. São elas: o afeto, a linguagem, a imaginação e a memória.

Na França, o grupo ACCES tem entre seus fundadores profissionais da saúde, como pediatras, psicanalistas, que como assinalou Winnicott (1982) sobre o olhar da Pediatria, perceberam que a infância deveria ser compreendida para além dos limites da medicina.

Na Itália, o Projeto Natti per Leggere tem como responsáveis por suas ações as seguintes organizações: Associazione Italiana Biblioteche, Associazione Culturale Pediatri e Centro per la Salute del Bambino e também entende que a leitura de livros de histórias contribui para o desenvolvimento saudável das crianças, desde os primeiros anos de vida, e que com a leitura, adultos e crianças podem compartilhar momentos intensos de emoção.

Proponho uma aproximação das ideias de linguagem, afeto, memória e fantasia para aprimorar nossos sentidos quanto ao aspecto do sensível e do subjetivo, presentes no desenvolvimento e formação de um leitor.

Linguagem, afeto e memória

Pino (As marcas do humano, 2005), a partir do pensamento de Vigostki, reflete sobre as marcas do humano nos planos ontogenéticos e filogenéticos do desenvolvimento humano. Marcas compostas por aspectos biológicos e culturais e que trazem uma relação complexa. Os dois nascimentos são articulados. O biológico é envolvido de práticas culturais, sociais, gestos, sons e vozes. O colo que acolhe o bebê ao nascer, além do toque e do tônus traz a palavra, o olhar que carregam os sentidos dos afetos sentidos.

A voz de quem cuida do bebê apresenta o mundo, oferece significado às sensações, embala, consola. Sentidos vão sendo produzidos e partilhados nos processos relacionais necessários à sobrevivência do bebê. Desde muito cedo, a comunicação com o outro é revestida de simbolização. Há uma estreita relação entre biologia e cultura no processo de desenvolvimento do ser humano

Corsino (Linguagem e sentido na Educação Infantil: uma homenagem a Bartolomeu Campos de Queirós, 2015) ao analisar o poema “Os cinco sentidos”, de Bartolomeu Campos de Queirós, confirma a ideia de que o “sentir” e o “produzir sentido” estão profundamente associados. A autora se refere ao aspecto sensível do humano e alude ao duplo significado da palavra sentido contido no poema: “Por meio dos sentidos suspeitamos o mundo (…) Os ouvidos tem raízes pelo corpo inteiro (…) Os olhos tem raízes pelo corpo inteiro (…)”.

Bakhtin (Estética da Criação Verbal, 2003) também aponta essa dimensão do sensível que nos constitui como sujeitos por meio da atenção da mãe no início de nossas vidas. São as palavras dos adultos que definem na criança suas primeiras noções dela mesma.

De fato, mal a pessoa começa a vivenciar a si mesmo de dentro, se depara imediatamente com atos de reconhecimento e amor de pessoas íntimas, da mãe, que partem de fora ao encontro dela: dos lábios da mãe e de pessoas íntimas a criança recebe todas as definições iniciais de si mesma.

Constituímo-nos com a palavra do outro e esta palavra é carregada por afeto. Não é incomum aos adultos comentarem sobre suas memórias infantis, descrevendo a lembrança de livros, de histórias e a presença de adultos carinhosos e atenciosos. Ao permitir o reencontro com sua própria infância, o adulto tem em mãos uma ferramenta preciosa quando pretende estreitar laços com uma criança.

Queirós, no livro “Indez” (1989), traz suas memórias de infância e apresenta o afeto passado pelo avô. “O avô, com Antonio sobre seus joelhos, contava pequenas histórias: ‘Cadê o toucinho que estava aqui? O gato comeu. Cadê o gato?’, que, se não entendidas pelo neto, eram lidas pelos abraços e risos trocados entre o menino e o avô. Histórias lidas pelos abraços e risos trocados. Leitura cuja compreensão literal pouco importava. O som, o ritmo, a voz e a palavra banhados pelo afeto permanecem na memória.

Um livro representa e promove formas de linguagem oral que incluem as relações intersubjetivas.  Nas ações desenvolvidas pelo ACCES o encontro da criança com histórias e uma linguagem específica da narrativa escrita com a dimensão de um trabalho cultural, além de permitir o desenvolvimento das crianças, possibilita uma reestruturação dos adultos envolvidos. Bonnafé (Los libros, eso es bueno para los bebès, 2008) sinaliza a importância da palavra, da narrativa e do lúdico nos livros para crianças de 0 a 3 anos e apresenta o livro como espaço de vínculo entre o bebê e o adulto.

Assim, considero que ler histórias para e com crianças é constituinte deste universo socialmente construído e deve ter início desde muito cedo. Essa ideia de que nos constituímos com a palavra do outro, também é discutida por Britto (O mundo da escrita no universo da pequena infância, 2005), que aponta a importância para que as crianças pequenas tenham contato com histórias por meio da voz do outro, o que ele chama de “ler com os ouvidos e escrever com a boca”.

Este autor defende que ao ter contato com o som de um texto escrito “a criança não apenas se experimenta na interlocução com o discurso escrito organizado, como vai compreendendo as modulações de voz que se anunciam num texto escrito”

Entre a imaginação e a realidade

Ano de 2020, todos convivendo com a quarentena provocada pelo Covid-19, e adultos e crianças em contato com suas forças e fragilidades. E por isso, em família ou na relação profissional, buscamos entender o impacto deste momento no desenvolvimento infantil, entre tantos outros desafios que o momento exige.

Como equilibrar realidade e fantasia? Em recente conversa promovida pelo Espaço Néctar, instituição que trabalha com psicologia da infância, “tendo o lúdico como força inspiradora”, um dos fundadores da Prática Psicomotora, Bernard Aucouturier sugere: “Contem histórias para as suas crianças. Uma história faz bem a uma criança.”

A sugestão de Aucouturier dialoga com a intenção de valorizar o espaço da fantasia no desenvolvimento infantil proposta por Vygotsky (La imaginacion e El arte em La infância, 1987), que interrelaciona imaginação e realidade. Segundo este autor, a atividade combinatória do processo de criação acontece gradualmente, ascendendo de formas elementares e simples para outras mais complexas. Nesse sentido, em cada escala de crescimento, há uma forma própria de criação. Para compreender melhor o mecanismo psicológico da imaginação e a atividade criadora relacionada a ela, é explicado o vínculo existente entre a fantasia e a realidade na conduta humana.

O autor acrescenta ainda que “a imaginação não é um divertimento do cérebro, algo aprendido de graça, mas sim uma função vitalmente necessária”. Essa consideração chama a atenção para o erro do senso comum em criar uma fronteira impenetrável entre fantasia e realidade.

Para Vygotsky (1987), “a atividade criadora da imaginação se encontra na relação direta com a riqueza e variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que constrói os edifícios de sua fantasia”. No entanto, esse processo não é instantâneo. Primeiro acontecem as experiências, seguido de uma fase de incubação ou amadurecimento.

Este autor nos leva a refletir sobre a importância de ampliar as experiências das crianças quando o objetivo é proporcionar bases sólidas para a sua atividade criadora. Tal princípio nos leva a indagar qual a possibilidade de acesso a novas vivências que proporcionamos às crianças, especialmente na pré-escola e na creche.

A presença do livro na infância e o ato de ler histórias para e com crianças é uma alternativa para ampliar as experiências a partir da imaginação/experiência do outro, como sinaliza Vygotsky (1987). Mas também podemos encontrar muitos debates sobre o encontro da criança pequena com livros de histórias priorizando a dimensão da aquisição da linguagem apenas no aspecto da alfabetização, ligada à relação fonema-grafema, o que Bonnafé entende como:

La tentación de lo utilitario, como la presión insistente para el aprendizaje precoz, reviste muchas variantes. Los demônios de la rentabilidade, por desgracia tan difundidos entre los adultos, se verán con frecuencia más afirmados en los grupos desfavorecidos o entre niños con grandes dificultades en su desarrollo. (BONNAFÉ, 2008, p. 163)

Bartolomeu Campos de Queirós (2009) sugere um projeto literário como ação política e, Bonnafè (2008) discute a questão para além das leis de mercado, para que esta produção não conduza às relações das crianças por apenas uns dos aspectos de seu desenvolvimento. O bebê e a criança pequena estão atentos ao que ocorre a sua volta, mesmo que seus processos de percepção e de expressão ainda não se encontrem esquadrinhados dentro dos padrões e normas.

Ao incluir a criança desde bebê no ato de comunicação literária como caminho de aprendizagem, proporcionamos situações para a convivência com a linguagem em suas muitas possibilidades. Dessa forma é possível compreender o desenvolvimento de uma criança como processo, que não é linear e nem homogêneo.

Para Bonnafé (2008), a criança pequena desde bebê tem em seu cotidiano o contato com duas formas de linguagem: a do cotidiano e a narrativa. Cada uma destas linguagens atende a necessidades diferentes. Destacamos aqui que o encontro com a narrativa, entre tantas possibilidades, proporciona o contato com a relação entre imaginação e realidade, que Vygotsky (1987) apresenta como potência na constituição do sujeito e de suas relações e que Bonnafé (2008) reitera como encontro:

Sin embargo, los niños que durante sus primeros años recibieron menos el lenguaje del relato conservan en ellos el deseo y la capacidad de colmar este vacío. Es importante ayudarlos a crear ocasiones de encuentro; y este encuentro con un libro, a cualquier edad, es como el encuentro con un nuevo amigo; no puede imponerse, sólo sugerirse. (BONNAFÉ, 2008, p. 49)

Este encontro com um novo amigo é um convite sem imposição. A entrada de bebês e crianças pequenas nas creches determinou o incremento da produção de livros para esta faixa etária. Ao nos referimos aos livros de literatura infantil, estamos tratando de relações, vínculos que se dão por meio da linguagem, considerada por nós como resultado das ações dos sujeitos que são constituídos na e pela linguagem.

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