As avaliações que temos feito sobre o universo do livro, da leitura e das bibliotecas em particular, e da cultura em geral, têm sido bastante negativas nos últimos anos. No entanto, 2019 parece ter sido um ponto fora da curva no que se refere a estes temas. O primeiro, e talvez mais importante, motivo foi a escolha de um governo que não só não prioriza as políticas públicas nessas áreas, mas que as escolheu como inimigas que devem ser liquidadas.
Não atoa temos visto desde o início do ano iniciativas do governo Bolsonaro que afrontam de forma direta a liberdade de expressão, de pensamento e a participação popular nos rumos do país. É o caso, por exemplo, da extinção do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) e do próprio Ministério da Cultura (MinC), além da edição de decretos que afrontam a autonomia universitária, bem como cortes no orçamento destas instituições na tentativa de asfixiá-las.
Embora a resposta pudesse ter sido mais contundente, os estudantes não se intimidaram e foram às ruas fazer as maiores manifestações dos últimos anos no país. Em 15 de maio, que ficou conhecido com #15M, milhões foram às ruas. Quinze dias depois a juventude promoveu um #TsunamiDaEducação, uma resposta contundente ao governo de que não haveria recuo caso os cortes e os ataques às universidades persistissem. O recado era claro: “a balbúrdia vai continuar!”.
Após prometer, durante sua campanha à presidência, “expurgar Paulo Freire”, Bolsonaro finalmente conseguiu atacar o educador referência em todo o mundo ao excluir seu nome da Plataforma Capes de Educação Básica. Aliás, não foi só do governo federal que vieram notícias ruins aos segmentos de livro, leitura e bibliotecas. No Rio o prefeito Marcelo Crivella, um aliado ideológico de Bolsonaro, tentou censurar, durante a Bienal do Livro, a história em quadrinhos “Os Vingadores”, na qual dois personagens do sexo masculino aparecem se beijando.
No estado do Rio, o governo do estado cancelou a exposição Literatura Exposta, na Casa França-Brasil (CFB), alegando descumprimento do contrato por parte do Coletivo És Uma Maluca, organizadora da atividade. Em protesto, o grupo realizou uma performance na rua como forma. Também no Rio, despejada a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (SECEC) foi alojar-se às pressas na Biblioteca-Parque do Estado (BPE), comprometendo o atendimento ao público num espaço que já vinha sendo desprestigiado pelos governos anteriores.
Pelo Brasil nossas bibliotecas públicas e escolares continuaram em 2019 seu calvário rumo a universalização, um objetivo que continua mais longe de ser alcançado. No caso das bibliotecas escolares ou salas de leitura, apenas 45,7% das escolas públicas de ensino básico contam com este tipo de equipamento, enquanto o Congresso Nacional busca ampliar o prazo estabelecido pela Lei nº 12.244/2010 ao mesmo tempo que busca efetivar a criação de um Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares, esta sim uma notícia positiva caso confirmada.
É sintomático que tanto o Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB) e o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), ambos órgãos da Secretaria Especial da Cultura (que substituiu o MinC), agora subordinada ao Ministério do Turismo, continuem tão desprestigiados no momento em que o mercado editorial e as bibliotecas enfrentam crises sem precedentes. Desde que Guilherme Relvas foi exonerado da direção do DLLLB, ainda não se sabe quem assumiu a pasta.
Ainda no plano nacional, nada mais absurdo do que a nomeação de um olavista para presidir a Fundação Biblioteca Nacional. Não só porque se trata de um seguidor do suprassumo da estupidez, mas porque estamos falando de um sujeito que nada entende de patrimônio bibliográfico, podendo piorar o que já estava ruim. E por falar em patrimônio bibliográfico, este permanece em perigo enquanto o governo nada faz para resolver.
Ainda há esperança
Um dos poucos fatos que devem ser comemorados é a retomada pelo Congresso Nacional da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro e da Leitura e da Escrita. Como disse a bibliotecária e deputada Federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS), em artigo publicado na Biblioo em outubro, o lançamento da Frente “é parte de uma extensa agenda de lutas contra o desmonte das políticas públicas de estímulo à leitura, à escrita e aos livros e o fortalecimento de uma ideia autoritária de educação e de sociedade”.
Quem também trouxe boas notícias em 2019 foi a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), parceira da Biblioo. Umas destas boas notícias foi a criação da primeira biblioteca indígena do estado do Rio de Janeiro, que disponibiliza agora um acervo rico e diverso de literatura da cultura indígena para aproximadamente 40 famílias e 200 integrantes da Aldeia Itaxi, em Paraty, região da Costa Verde fluminense.
A propósito, as bibliotecas comunitárias parecem ter salvo um ano de tanto desalento para o segmento livreiro. Mesmo sem apoio do poder público, elas continuaram a se proliferar e a se consolidar pelo país afora cumprindo a função que muitas vezes deveria ser cumprido pelas bibliotecas públicas. Além de disponibilizar produtos e serviços, as “bibliotecas contribuem para a criação de sentimento de comunidade”, conforme atestou Ester Calland, professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em entrevista à TV Biblioo.
Apesar do Rio ter eleito como governador Wilson Witzel, um sujeito conservador e militarista, o estado viu seus deputados derrubarem o veto ao Plano Estadual de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas – PELLLB (Lei nº 8.246/2018) fazendo com que as despesas decorrentes da implementação do Plano corram à conta da dotação orçamentária dos órgãos ou entidades executores das ações, projetos e programas, que neste caso são as Secretarias de Cultura e a de Educação. Os deputados do Rio também foram os responsáveis pela aprovação de uma lei que cria a Rede Estadual de Bibliotecas Escolares.
Neste meio tempo, depois de muita luta, São Paulo viu a retomada do Conselho Consultivo da Plano Municipal de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (PMLLLB/SP) que havia sido desmontado durante a gestão do então prefeito João Dória. O Conselho, entre outras coisas, opinar sobre a formulação do orçamento necessário à implementação do Plano, fiscalizando a utilização dos respectivos recursos; promover discussões e articular demandas regionais e setoriais, com as correspondentes devolutivas a essas instâncias, bem como outras competências estabelecidas em seu Regimento Interno.
Seguimos lutando
Em resumo, os motivos pelos quais não conseguimos dar tantas boas notícias sobre livro, leitura e bibliotecas em 2019 é em função, em grande medida, de optarmos por um governo que mais do que não priorizar as políticas públicas nessas áreas as escolheu como inimigas, muito embora os agentes e leitores continuem resistentes a estes ataques já preparando ações para o ano que se aproxima.
Apesar de todos os percalços, o ano foi bastante produtivo para a Biblioo em termos de conteúdo. Só reportagens foram produzidas 127, o que significa quase o dobro do ano passado. Mas como não nos contentamos apenas em reportar os fatos, analisamos os acontecimentos em 129 artigos e editoriais, seja de colaboradores fixos, seja de colaboradores eventuais, além de 15 entrevistas com pessoas que transitam por diversos temas que vão da literatura à ciência da informação.
Dessa forma, agradecemos a todos, leitores e colaboradores, que estiveram conosco neste ano tão difícil. Sabemos que os próximos anos continuarão sendo bem complicados para os veículos de mídia alternativa, principalmente para aqueles que se dispõem a cobrir as questões culturais, especialmente aquelas ligadas aos temas do livro, da leitura e das bibliotecas, como é o caso da Biblioo, mas vamos continuar firmes nessa nossa empreitada.
Se em 2019 foi tão difícil trazer boas notícias sobre os temas do livro, da leitura e das bibliotecas, bem como da educação, da arte, da cultura etc., esperamos que os próximos tempos nos reservem melhor sorte. Se depender da nossa disposição, teremos sim boas notícias nos próximos anos. Para finalizar, desejamos a todos boas festas e um ano novo cheio de realizações! Abaixo listamos nominalmente pessoas e instituições que contribuíram de alguma forma para que conseguíssemos chegar até aqui:
Pessoas
Adriana Ferrari
Alberto Calil
Alessandra A. Araujo
Briquet de Lemos
Carmen S. Amendola
Celia Escobar
Christine Castilho Fontelles
Cilene A. Oliveira
Claudio Cesar Temoteo Galvino
Claudio Rodrigues
Claudio Soares
Cleide A. Fernandes
Cristian Brayner
Debora do Nascimento
Edilberto Santiago
Edilmar Alcantara
Gilda Gama Queiroz
Gilvanedja Ferreira Mendes da Silva
Jonathas Carvalho
José Castilho Marques Neto
Kelly Pereira de Lima
Letícia Krauss Provenzano
Luciana Grings
Luciana Rodrigues
Mara Vanessa Torres
Marcelo Marques
Marcia F. Figueiredo
Margarete Gomes Borba
Maria Claudia
Moreno Barros
Rafael Lemos
Ricardo Queiroz
Soraia Magalhães
Suellen Alves da Silva
Thalita Oliveira da Silva Gama
Tiago Rodrigo Marçal Murakami
Vagner Amaro
William Okubo
Instituições
CartaCapital
Nuvem de Livros
Árvore de Livros
GIDJ
Eu Quero Minha Biblioteca
Editora Malê
Class Cursos
Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias
Grupo de Pesquisa em Bibliotecas Públicas da Unirio
Redarte
ONG Recode
Febab
Assina, os editores:
Chico de Paula
Rodolfo Targino