Sem a memória não saberíamos mensurar o caminho percorrido até aqui. Sem as lembranças nos tornaríamos reféns do agora, pouco importariam as lágrimas que regaram nossas bibliotecas e as fizeram se tornar espaços de resistência. Por isso lembramos, por isso escolhemos partilhar nossas fragilidades e medos, nossas experiências e angústias, na certeza que nossa trajetória pode inspirar e fortalecer outras bibliotecas comunitárias.
No ano de 2017, as redes que compõem a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias – RNBC (localizadas no Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul) receberam uma missão da assessoria do Instituto C&A: saírem de seus estados para sistematizarem as ações e memórias de todas as redes.
Tinha-se uma partida: resgatar a partir das memórias de cada integrante, sejam dos que já participaram das ações das redes locais, sejam daqueles que estão atuando, todas as conquistas e desafios encontrados no percurso de cada um dos nove eixos do Programa Prazer em Ler – PPL, do Instituto C&A: acervo, mediação, espaço, articulação, incidência política, comunicação, mobilização de recursos, enraizamento comunitário e gestão compartilhada. As bibliotecas comunitárias passaram a atuar em rede, a partir de 2009, dentro de uma ação de apoio e incentivo à leitura: o Programa Prazer em Ler.
Para isso, deu-se início aos Círculos de Cultura, proposta metodológica de Paulo Freire (A educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999), despertando uma experiência de diálogo coletivo, na qual cada integrante tem a sua voz escutada, suas memórias e experiências são ouvidas por todos, e estes são convidados a construir.
Esta metodologia foi realizada em cada rede local por seus próprios sistematizadores, sendo uma etapa de levantamento de informações, promovendo o resgate de memórias há tempos escondidas na rotina ininterrupta de trabalho e no interior de cada integrante da rede local. A nostalgia se fez presente através dos diálogos, algumas lágrimas foram derramadas, em alguns momentos o silêncio se fez escutar e ecoou para nos lembrar o quanto cada rede teve que lutar para crescer e se tornar um espaço de resistência e de formação de leitores.
Até esse momento da leitura o quanto de memória já não passou por sua mente? É como uma fotografia, em que milhares de flashs registram nossa trajetória de vida e vão nos fazendo sorrir e chorar. Para isso é preciso se relacionar com o passado na busca de traçar uma linha do tempo que nos possibilita enxergar as cicatrizes, as rugas e os caminhos percorridos até aqui.
Afinal, em tempos difíceis o simples fato de existir se torna um ato de resistência e esquecer quem somos seria o mesmo que fugir das causas pelas quais lutamos. Michael Pollak (Memória e Identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992), ao falar sobre a memória, a coloca como um acontecimento primeiramente pessoal, mas que também acontece em um grupo ou coletivo, sendo ela uma construção a partir de pessoas e personagens. Todo o trabalho de sistematização vem para registrar esses acontecimentos.
Tendo isso em foco, criou-se um objetivo: que as redes olhassem suas histórias e elas mesmas pudessem contá-las. Seguindo essa expedição, os sistematizadores saíram de seus estados e realizaram visitas de observação in loco. Tendo em mãos todos os dados oriundos dos círculos de cultura, observaram três eixos pré-determinados para cada rede.
As visitas para coleta de campo foram de uma riqueza ímpar para toda a sistematização. Esse olhar sensível do outro sobre as ações tornou todo o processo não uma pesquisa tradicional de campo, mas sim uma troca de experiências, um resgate de memórias e sentimentos. Desta maneira, assim como destacou Oscar Jara Holliday (Para sistematizar experiências. Brasília: MMA, 2006), a sistematização “busca penetrar na dinâmica das experiências. Algo assim como entranhar-se nesses processos sociais vivos e complexos”.
Para isso, foram entrevistadas pessoas que estão ligadas aos projetos das redes: mediadores, gestores, voluntários, leitores, família etc. É com essa diversidade de olhares e memórias que todo o trabalho da sistematização foi tecido com muita emoção e construído sob uma base forte: a ressignificação do trabalho em rede a partir do protagonismo.
Em agosto deste ano, toda a sistematização das ações, experiências e memórias das redes se materializa em um livro: “Expedição Leituras: tesouros das bibliotecas comunitárias no Brasil”, será lançado no XII Seminário Programa Prazer em Ler e 6º Encontro da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, em São Paulo. Todo o livro foi escrito em cartas, gênero textual escolhido para contar todas essas experiências, trazendo uma escrita leve, sensível e emocional.
Este livro, ainda nem lançado, já se configura em uma inspiração para todos aqueles que sonham em ver a leitura literária como um direito inalienável do indivíduo, tal como sempre defendeu Antonio Candido em seu texto “O direito à Literatura”.
Alguns minutos já se passaram desde que você iniciou a leitura desse artigo, minutos que não voltam, mas que deixam registrados na memória, a experiência da partilha que vivenciamos através da sistematização das experiências das redes de bibliotecas e o laço afetivo estabelecido com nossa memória são o que nos motiva a continuar na luta pelo reconhecimento da literatura como um direito humano.
*Colaborou Hugo Maciel, pedagogo e mediador de leitura da Biblioteca Peró e integrante da Rede Releitura.