“A biblioteca da ocupação da Câmara funciona todos os dias, sendo aberta a todos. Eles estão aceitando doações de livros, vá até lá colabore e apoie essa ideia”.
O relógio marca 18h e a Cinelândia, no coração do Rio, está agitada. Carros da Polícia Militar (PM), com suas sirenes em cor vermelha de luz intermitente, patrulham o local. Não muito longe dali, uma manifestação contra a prisão de integrantes do Black Bloc acontece em frente ao Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro (TJERJ). De volta à Cinelândia, o tradicional Bar Amarelinho está lotado de pessoas – como é de costume às sextas-feiras –, em geral tomando um chopp após uma semana cansativa de trabalho.
A poucos metros do local, barracas de camping estão espalhadas pelas calçadas. Faixas com dizeres de ordem e pedaços de compensados amarrados nos postes denunciam as injustiças: abusos da CPI dos ônibus, das forças policiais, do governador Sérgio Cabral, do prefeito Eduardo Paes etc. Numa dessas faixas se estampa a pergunta, até agora sem resposta, que está nas mentes e corações indignados do cidadão carioca: onde está o Amarildo?
Esse é o cenário da Ocupação do Palácio Pedro Ernesto, onde está localizada a Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Após informações de que manifestantes teriam organizado uma biblioteca nas escadarias da Câmara Municipal, a equipe da Revista Biblioo foi até o local para conferir essa iniciativa e levantar informações.
Entre livros e trocas de ideias
Ao chegar à entrada principal da Câmara abordamos um grupo de jovens que estavam sentados em um sofá branco. Após cumprimenta-los, indagamos a respeito da criação de uma biblioteca pela ocupação. Um jovem apertou a minha mão e apontou para o lado direito, onde se localizava a biblioteca. Vestia ele um boné do Movimento dos Sem Terra (MST) e em sua camiseta branca se lia: “Bicicletas precisam de espaço”,
Seguimos em direção ao local indicado. Lá, além dos livros, o cuidado de dois jovens nos chamou a atenção. Como a semana era de chuva e de baixas temperaturas, eles estavam esticando uma lona azul, improvisando uma espécie de tenda para proteger os livros e alguns colchonetes espalhados pelo chão. Voltamos nossa atenção para os livros que estavam armazenados em uma estante improvisada, ao lado de uma placa de madeira com letras de forma em cores azul e branco e uma seta abaixo voltada para o lado direito indicando que aquele espaço era uma biblioteca.
Ao procurar identificar os livros do pequeno acervo, logo visualizamos obras de autores como Eduardo Galeano e Lima Barreto. Não resisto e começo a folhear as páginas do Teatro do bem e do mal do Galeano quando sou interrompido pelo jovem que apertou a minha mão na chegada. Ele se apresenta como Pedro Eugênio, popularmente conhecido como Pedro Ciclista. Para mim o dizer da camisa pedindo espaço para as bicicletas passa a fazer sentido.
Pedro Eugênio inicia a conversa falando do livro que segurava na mão direita e que tinha consultado na biblioteca antes da minha chegada. Por mais sugestivo que possa parecer, o livro era a desobediência civil de autoria do Henry David Thorreau. O jovem Pedro começa a ler de forma efusiva um trecho do livro e em seguida iniciamos uma conversa sobre a ocupação da Câmara e assuntos que estão nas pautas das recentes manifestações. No meio da calorosa troca de ideias, somos interpelados por um jovem que vestia a camisa do Vasco carregando uma sacola de plástico. Ao se aproximar, ele pergunta se estão aceitando doações de livros, entrega uma sacola branca, com o logo de um supermercado, e com alguns livros que são colocados sobre a estante improvisada. O vascaíno desce as escadas da Câmara e desaparece no fluxo de transeuntes que atravessam a Cinelândia sem explicar o que lhe impulsionou àquela atitude.
Como um bibliotecário/jornalista curioso e ansioso para ver as novidades doadas, abro a sacola e consigo visualizar um dicionário da Língua Portuguesa ainda lacrado. Meio sem jeito fecho a sacola sem conseguir visualizar o restante das obras doadas.
A conversa continua e Pedro Ciclista ressalta a importância de conscientizar as pessoas. Ele argumenta de forma crítica sobre a forma evasiva atual da vida e a falta de engajamento: “atualmente são poucas as pessoas que militam em algum movimento social; a grande maioria está preocupada com seus afazeres cotidianos”.
O que representa essa iniciativa?
A simbologia da biblioteca da ocupação da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro é uma iniciativa que serve de lição para os bibliotecários brasileiros, especialmente os cariocas. A carência de espaços públicos destinados ao incentivo á leitura, aliado aos cinco anos de fechamento da Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro para obras de modernização, é preocupante. O silêncio de parte da classe bibliotecária e dos órgãos de representatividade perante essa situação, juntamente com a ausência de ações efetivas no decorrer desses cinco anos é o reflexo da apatia política e do descaso do poder público.
Grande parte dos jovens que estão na ocupação da Câmara não são bibliotecários de ofício. Apenas um estudante de Biblioteconomia e uma bibliotecária estão entre os manifestantes. Mesmo assim, através dessa iniciativa eles estão demonstrando a importância das bibliotecas enquanto espaço de resistência, de coletividade e de acesso a todos. A Revista Biblioo vem divulgando e acompanhando essas iniciativas no Blog da Redação.
A biblioteca da ocupação da Câmara funciona todos os dias, sendo aberta a todos. As doações de livros são aceitas.
A poesia e o fim de conversa
A conversa com o jovem Pedro Eugênio vai chegando ao fim enquanto os helicópteros das emissoras de televisão sobrevoam o local tentando registrar a melhor imagem da manifestação dos Black Blocs no TJERJ. A agitação das patrulhas da PM demonstra que o clima é de tensão ao entorno. Leio o poema Somos nós de Sérgio Vaz e penso que talvez a poesia e as bibliotecas sejam as inspirações para a indignação necessária daquelas pessoas.
Somos Nós
Vocês dizem que não entendem
Que barulho é esse que vem das ruas
Que não sabem que voz é essa
Que caminha com pedras nas mãos
Em busca de justiça, porque não dizer, vingança.
Dentro do castelo às custas da miséria humana
Alega não entender a fúria que nasce dos sem causas,
Dos sem comidas e dos sem casas.
O capitão do mato dispara com seu chicote
A pólvora indigna dos tiranos
Que se escondem por trás da cortina do lacrimogêneo,
O CHICOTE ESTRALA, MAS ESSE POVO NÃO SE CALA..
Quem grita somos nós,
Os sem educação, os sem hospitais e sem segurança.
Somos nós, órfãos de pátria
Os filhos bastardos da nação.
Somos nós, os pretos, os pobres,
Os brancos indignados e os índios
Cansados do cachimbo da paz.
Essa voz que brada que atordoa seu sono
Vem dos calos da mãos, que vão cerrando os punhos
Até que a noite venha
E as canções de ninar vão se tornando hinos
Na boca suja dos revoltados.
Tenham medo sim,
Somos nós, os famintos,
Os que dormem nas calçadas frias,
Os escravos dos ônibus negreiros,
Os assalariados esmagados no trem,
Os que na tua opinião,
Não deviam ter nascido.
Teu medo faz sentido,
Em tua direção
Vai as mães dos filhos mortos
O pai dos filhos tortos
Te devolverem todos os crimes
Causados pelo descaso da sua consciência.
Quem marcha em tua direção?
Somos nós,
Os brasileiros
Que nunca dormiram
E os que estão acordando agora.
Antes tarde do que nunca.
E para aqueles que acharam que era nunca,
Agora é tarde.