Voyer d’Argenson, marquês de Paulmy, era filho, sobrinho e irmão de ministro. Pertencente a uma das famílias mais influentes do Estado, ele mesmo homem de alto mérito, conselheiro de Estado há vinte anos, comissário geral de guerras, secretário geral do Departamento da Guerra, ministro de Estado, embaixador na Polônia e em Veneza, abandonou tudo, em pleno vigor da idade, para se consagrar a sua biblioteca. Esta contava, na sua morte, com mais de cem mil volumes, talvez a mais numerosa de todas as que foram erigidas por um particular.

Ele não apenas a estabeleceu: ele a escolheu. Ele conhecia seus livros um por um; publicou numerosas obras de bibliografia que nada mais são do que catálogos raisonnés[1] de sua coleção, as Antologias de uma Grande Biblioteca,[2] a Biblioteca dos Romances,[3] o conjunto formando quase uma centena de volumes. Uma elite de bibliotecários, de homens letrados, de livreiros e encadernadores trabalhava para ele e atuava como conselheiros em torno dele. Ele acumulou para o público, pois esta coleção única constitui atualmente a base da Biblioteca do Arsenal.

A paixão também vos conduz, às vezes, ao amor à primeira vista. O visconde de Spoelberch de Lovenjoul[4] encontrou papéis de caligrafia fina e sobrecarregada em uma mercearia, um açougue nos Champs-Elysées:[5] ele se espanta, ele compra, ele estuda; e este é o ponto de partida desta incomparável coleção balzaquiana que o erudito cavalheiro legou ao Institut de France e que foi gradualmente completada por esses tesouros inéditos indispensáveis para conhecer a história literária da França no século XIX.

Este parece ter sido tomado, sobretudo, pelo ardor da pesquisa, da busca: “Nunca teve maior alegria na vida do que ir a esmo, guiado pelo seu faro de bibliófilo, por todos os lugares onde havia coisas raras ou trabalhos inéditos; e, quase sempre, voltava com uma pilhagem que o fazia estremecer de satisfação. Sim, quando ele põe as mãos em peças de grande valor bibliográfico, sente um arrepio de alegria que percorre todo o seu corpo. Ele “os cinge em seus braços”, diz ele, “com todo o ardor da posse;“ ele está tão encantado por tê-las conquistado” como se tivesse sido o primeiro a entrar em um desses túmulos reais no vale do Nilo, dos quais Théophile Gautier,[6] em O Romance da Múmia,[7] conta com tanta paixão a busca apaixonada. “Além disso, acrescenta ele, os amantes de documentos inéditos e os exploradores dos hipogeus[8]  são impelidos pelo mesmo desejo: a curiosidade pelo desconhecido. Os sentimentos por suas escavações e descobertas têm muita analogia.”

Esse instinto, esse gênio do bibliófilo é, sem dúvida, feito de atenção meticulosa, mas também de atividade engenhosa. Para ser um bom bibliófilo, não basta o par de óculos: é preciso ter pernas. O amante dos livros é um animal ambulante. Pela manhã e pela tarde ele está correndo. Ao amanhecer, lá está ele de pé. Porque ninguém pode chegar antes dele onde ele supõe encontrar a “peça boa”. Matutou a noite inteira e acordou cedo sob o aguilhão da concupiscência: À caça! Não basta o faro; é preciso sorte, determinação, habilidade e, acima de tudo, perseverança. Acompanhei uma dessas buscas do Visconde de Lovenjoul e que durou dez anos; e juro-vos que ele não fez estardalhaço: foi “a passo de chumbo e de lã”,[9] segundo uma expressão que o Cardeal de Richelieu[10] aplica ao diplomata; porque essa busca exige, além disso, muita diplomacia.

Em suma, a qualidade mestra do bibliófilo é o gosto requintado. Ele nunca está satisfeito; nesta questão do livro, ele não quer apenas o conteúdo, mas a forma; e, muitas vezes, aos seus olhos, a forma prevalece sobre a substância.

 

* Tradução do original “Bibliophiles” (Paris: F. Ferroud, 1924), de Gabriel Hanotaux (1853-1944)por Cristian Brayner. Hanotaux (1853-1944) foi um diplomata, historiador e político francês. Estudou na École Nationale des Chartes, e pelo desinteresse de se tornar arquivista, se tornou mestre de conferência na École pratique des hautes études. En 1879 ingressou como secretário no Ministério de Assuntos Exteriores, fazendo carreira no serviço diplomático.Em 1886 foi eleito deputado, mas ao ser derrotado em 1889, retornou à carreira diplomática, sendo nomeado, cinco anos depois, como Ministro de Assuntos Exteriores.Foi o delegado da França na Sociedade das Nações, onde participou das quatro primeiras assembleias gerais. Foi o único que se opôs a admitir o esperanto como língua de trabalho na Sociedade das Nações por considerar que já existia una língua franca: o francês.Aos 43 anos de idade tornou-se membro da Academia Francesa.

[1] Tipo de publicação de em que se cataloga todas as obras conhecidas de artista. Nesses catálogos são registrados dados como título, data, descrição, dimensões, técnica empregada, localização, histórico de exibição, estado de preservação, assinatura/monograma/inscrições, bibliografia relacionada e numeração catalográfica.

[2] Os sessenta e nove volumes de Mélanges tirés d’une grande bibliothèque são obra de Antoine René de Voyer d’Argenson, marquês de Paulmy (1722-1787), auxiliado nesta tarefa pelo editor André-Guillaume Contant d’Orville. O objetivo da coleção era publicar romances, especialmente os antigos, susceptíveis de competir com o sucesso da Bibliothèque universelle des romans, cujo Paulmy tinha tomou a iniciativa, mas teve que abandoná-la depois de brigar com o conde de Tressan. A partir do quarto volume da coleção surgiu um novo título que expressava uma ambição enciclopédica – De La Lecture des livres français –, passando a contemplar, além dos romances, livros de filosofia e de política, de gramática e retórica, militares, de Física, Matemática, Geografia e História.

[3] A intitulada Bibliothèque universelle des romans é uma coleção literária francesa com publicação periódica, composta por 224 volumes de 1775 a 1789 por iniciativa do marquês de Paulmy e do conde de Tressan, e vendidos por assinatura. O objetivo era tornar conhecido sob a forma de fragmentos os romances franceses e estrangeiros “publicados desde a Antiguidade até aos tempos modernos”. O marquês de Palmy deixará o projeto em 1779.

[4] O belga Visconde Charles de Spoelberch de Lovenjoul (1836-1907) construiu uma impressionante biblioteca de escritores franceses do século XIX, incluindo volumes, resenhas literárias, jornais e, a partir de 1870, manuscritos e cartas de autógrafos que legou ao Institut de France, em 1905. A coleção inclui o manuscrito e impressos de Honoré de Balzac, George Sand, Théophile Gautier, a maior parte da correspondência de Gustave Flaubert, mas também numerosos documentos sobre escritores do século XIX, em particular Sainte-Beuve: 1.500 manuscritos, 40.000 volumes impressos, 900 títulos de periódicos (para o período 1800-1907), vários objetos e lembranças, bem como uma grande quantidade de arquivos pessoais, incluindo sua correspondência, rica em quinze mil cartas.

[5] Prestigiada avenida de Paris.

[6] Théophile Gautier (1811-1872) deixou uma vasta produção jornalística e literária em prosa e em verso. Iniciou-se na literatura pelo romantismo, mas ficou consagrado como poeta parnasiano. Na prosa, seu trabalho mais conhecido é Le Capitaine Fracasse (1863), uma trama cheia de aventuras que ganhou diversas versões cinematográficas. Ainda na prosa, publicou os livros Mademoiselle de Maupin (1835) e La Morte amoureuse (1836). Como poeta, sua produção mais importante foi Émaux et camées (1852), e como crítico publicou, entre outros, Histoire de l’art dramatique depuis vingt-cinq ans (1858-59).

[7] Romance histórico publicado em 1858. Não muito longe do rio Nilo, no vale de Biban-el-Molouk, um jovem aristocrata inglês, Lord Evandale, e um egiptólogo alemão, Doutor Rumphius, descobrem, graças à ajuda de um vigarista grego chamado Argyropoulos, uma tumba inviolada. Por mais de 3.500 anos, ninguém caminhou no chão da câmara mortuária em que repousa o sarcófago de um faraó. Mas quando a pesada tampa de basalto negro é aberta, os dois homens encontram, para sua surpresa, a múmia perfeitamente preservada de uma jovem de beleza magnífica chamada Tahoser. Após a descoberta desta múmia, o romance conta a história desta múmia e seus amores. Essa paixão pelo antigo Egito estava na moda na época da publicação do romance. Apesar de certos anacronismos, esta obra permanece bastante fiel historicamente.

[8] Do grego hypógeion (“subterrâneo”) é uma escavação ou construção subterrânea, destinada a servir de sepulcro. Foram construídos ao longo do tempo pelas mais inúmeras sociedades, desde o Antigo Egito, aos fenícios ou aos romanos.

[9] Embora conste no texto “à pas de laine et de plomb,” a expressão adotada pelo cardeal de Richelieu era “à pas de plomb et de laine”,

[10] O Cardeal de Richelieu (1585-1642) foi, segundo seu bibliotecário, Gabriel Naudé, “retirado do fundo de sua biblioteca para governar a França.” Como primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642 e arquiteto do absolutismo na França, foi enriquecendo sua biblioteca como mostra não simplesmente de seus interesses, mas de seu poder. (NAUDÉ, Gabriel. Considérations politiques sur les coups d’Estat. Rome: [s.l.], 1639. p. 318, tradução nossa).

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