Assisti aos dois longas-metragens anteriores de Kleber Mendonça Filho, filmes que de imediato evidenciavam o trabalho de um dos realizadores mais interessantes do atual cinema brasileiro. Em algum momento do ano passado, procurei saber o que o diretor preparava para lançar nos cinemas e soube por alto que realizava um filme de terror, em parceria com Juliano Dornelles.
Fiquei intrigado e curioso com aquilo, e rememorei os sinais que já havia nos filmes lançados que sinalizassem para essa evolução até um filme de terror. Os sinais existiam – certa ambiência fantasmática de suspense já fora elaborada nas narrativas de O som ao redor e de Aquarius. Mas terror maior e mais cotidiano, espécie de filme ruim reiterado todos os dias pelo noticiário nacional, passaríamos a viver vertiginosamente mesmo com o início do governo Bolsonaro, avatar grotesco do fascismo tropical que historicamente nos assola.
Diante de realidade assim marcada pelo terror, um filme que se configurasse com os traços de tal gênero não seria de espantar. Bacurau, no entanto, não é simplesmente um filme de terror, mas espantou a torto e a direito.
A ambiência de fantástico terror instaura-se na primeira sequência depois dos letreiros iniciais do filme, em que um caminhão-pipa percorre uma estrada do sertão pernambucano, desviando de buracos no asfalto, de repente passando por cima de um fúnebre caixão de madeira. O inusitado da cena faz o espectador pensar que estará diante de narrativa fantástica, em que a ordem dos acontecimentos se apresenta distante da normalidade cotidiana.
O caminhão avança e destroça mais dois ou três caixões, e pouco mais adiante as imagens do filme revelam a justificativa para cena tão inusitada: a alguma distância os ocupantes do caminhão-pipa avistam um acidente na estrada, e entre os veículos envolvidos está um outro caminhão, que carregava caixões, carregamento que havia se espalhado pela estrada e se amontoara no local. O que parecia figurar o sobrenatural na ambiência do filme se revela da ordem do cotidiano mesmo – assim como nosso espanto cotidiano diante do noticiário político-policial.
Estamos observando a primeira sequência do filme, ainda nos minutos iniciais, que já sugere ao espectador estar diante de narrativa que expõe sua própria fabulação ficcional, seu jogo antropófago com os gêneros tradicionais da indústria cinematográfica. Explicita-se o caráter de ficção do filme, que demonstra de saída que narrará acontecimentos fantasiados, e que além disso deixará à vista do espectador os artifícios cinematográficos de que se utiliza em modo irreverente.
Diante disso, seria equivocado que o espectador esperasse narrativa factual, filme que testemunhasse os episódios da crônica política atual, que aliás parece ter “entortado” a percepção de muitos daqueles que assistiram ao filme. Diante destas vozes críticas, os realizadores de Bacurau poderiam dizer o versinho famoso de Drummond: “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”.
O enredo tramado tem referências cinematográficas bastante evidentes e significativas – como Os sete samurais (1954), de Akira Kurosawa, e Assalto a 13ª DP (1976), de John Carpenter, – que revelam a disposição de criticar e ressignificar velhos clichês, debruçando-se sobre as próprias convenções da linguagem cinematográfica. Algo parecido com o que Rogério Sganzerla entendia por “filme de cinema”. – “Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?”.
Pois o que mais me surpreendeu na argumentação de parte da crítica que foi desfavorável ao filme foi justamente isso: tomá-lo como espécie de manifesto de resistência ao fascismo instituído no país, como programa de reação contra os ataques ao estado democrático de direito, como profissão de fé do guerrilheiro distópico de nossos tempos…
Esse equívoco me parece grosseiro – e é provável que os acontecimentos de nosso cotidiano político estejam entortando a percepção de elaborações ficcionais. Elas parecem nesses dias mais aferradas à representação da realidade imediata, absurda e revoltante. Sim, é verdade que nossa militância de esquerda tem se mostrado inepta para enfrentar os desafios impostos – mas não é certo que possamos tomar a narrativa ficcional do filme debatido aqui como projeção de uma plataforma dessa militância.
A resistência que a população de Bacurau empunha ante os ataques sofridos não figura como espelho da mentalidade das esquerdas brasileiras, como desejo até então inconfesso e que teria então se projetado país afora, ainda que o vilarejo figurado no filme possa ser percebido como representação complexa da realidade brasileira. A era da pós-verdade parece evidenciar sintomas sensíveis em certa dificuldade de compreender artefatos ficcionais.
É preciso ressaltar a complexidade dessa representação. O caráter alegórico do filme exige percepção atenta a essa complexidade, e algumas perspectivas propostas para criticar a narrativa parecem ter ignorado isso, achatando sua leitura. Os elementos que compõem uma narrativa alegórica estabelecem articulação autônoma, sem corresponder ponto a ponto ao contexto representado: é possível, por exemplo, reconhecermos a representação de personagens típicos da política brasileira na figura do prefeito que aparece em Bacurau (Tony Júnior), mas disso não decorre que o filme pretenda intervir na vida política do país realmente sugerindo modos de resistência.[1]
Um dos críticos enfatizava sua avaliação enfezada do filme perguntando: “Alguém se imaginou ser governado pelo homem do teco na cabeça [indivíduo que se tornara famoso pelos assassinatos que cometera]?”. O “homem do teço na cabeça” é conhecido pela alcunha de Pacote, e o crítico sugere que a mentalidade da esquerda teria se projetado em personagens como ele, elemento que encaminha a reação de Bacurau aos ataques sofridos com mais alguns “fora da lei”.
Mas creio que não tenha havido quem possa ter realizado esse tipo de projeção, ao menos entre espectadores com a saúde mental minimamente preservada – esta que tem sido violentada cotidianamente por decisões e pronunciamentos de um governo entreguista, autoritário e incompetente.
Testemunhos de críticos capacitados trouxeram para o debate sobre o filme, reconhecido internacionalmente, avaliações que confundem a narrativa ficcional do filme e a grotesca realidade que nele viram espelhada. Houve os que expressaram seu espanto diante da manifestação catártica do público, que tem vibrado nos assentos do cinema ao assistir às cenas em que a população de Bacurau reage ao ataque que sofre, matando com fúria sangrenta os invasores assassinos.
E esses mesmos críticos registram seu espanto não somente pelas cenas projetadas na fabulação do filme, mas por estarem convictos de que esta mesma fabulação ficcional foi percebida pelas esquerdas atarantadas do país como uma saída para os ataques que vem sofrendo: para esses ilustres críticos, o filme seria a projeção de um imaginário anacrônico de nossas esquerdas já que, em suas opiniões ilustradas, as próprias esquerdas, que se dirigiram deslumbradas para os cinemas para assistir a Bacurau, se espelhou na tela e se viu na pele dos que furiosamente garantem a resistência do vilarejo atacado.
E é essa leitura enviesada que não parece corresponder à comprovada inteligência de alguns críticos, que viram no filme uma espécie de tutorial distópico da resistência ao fascismo nativo. O que é achatar a narrativa, e se indispor com ela, pela pretensa correspondência entre a resistência do vilarejo e as perspectivas e projeções da nossa esquerda. E essa indisposição por vezes parece revelar certa má vontade com o filme, vendo nele problemas que não deveriam ser vistos a partir de um artefato ficcional como uma produção cinematográfica.
Até mesmo o reconhecimento internacional do filme foi questionado por vozes críticas universitárias, considerando o entusiasmo que incensou a recepção do filme como consequência da premiação em Cannes, que teria afagado o reiterado complexo de vira-latas tupiniquim. Ora, reserva crítica como essa parece não perceber que as condições de produção cinematográfica vêm sendo devastadas pelo atual governo, e que portanto será imprescindível contar com o reconhecimento internacional, aliado necessário frente à política de terra arrasada do governo Bolsonaro.
Esse viés da crítica, que se pôs perplexa ao imaginar que as esquerdas no Brasil caíram em desespero e querem resistir tal e qual o povo de Bacurau, me lembrou o famoso personagem glauberiano de Paulo Martins, em Terra em transe, que com alguma boa vontade (!) e muitos preconceitos de classe, se dirige diretamente ao espectador, depois de ouvir as palavras atrapalhadas de uma liderança popular: “Vocês já imaginaram o Jerônimo no poder!”.
Bacurau parece figurar desde o início uma evidente afirmação da vida, ainda que haja tantas mortes em sua trama. A primeira sequência, já referida aqui, configura uma metáfora contundente dessa afirmação reiterada no decorrer da trama: o caminhão-pipa passando por cima dos caixões na estrada sugere que aquela população vive cercada pela ameaça de morte – que se insinua nos remédios vencidos doados à população, na forma como o prefeito manda descarregar velhos livros para a escola local, na privatização criminosa da água e no próprio assalto dos gringos assassinos ao povoado –, mas resistirá a todo custo a esta ameaça.
As cenas sangrentas protagonizadas pela população de Bacurau feriram a sensibilidade de críticos sagazes, e certamente os realizadores deliberaram dar ao público uma narrativa violenta e agressiva (o que já fora proposto na “estética da fome” de Glauber). O que no entanto parece ter instaurado mal estar maior nessa parcela da crítica foi a reação do público, e a compreensão equivocada de que na tela não se exibia um “filme de cinema” apenas, mas uma proposta de ação para as esquerdas plenas de inércia.
E uma das graças de Bacurau é justamente a complexidade do artefato ficcional, as múltiplas referências que vão compondo a trama traumática do filme. A disposição parodística dos realizadores, da qual a crítica indisposta perece nem ter suspeitado, é aspecto que por si torna questionável as queixas de quem percebeu no filme mensagem de-cifrada para nossas letárgicas esquerdas – que pareciam ameaçar sair dos cinemas como quem está “sob o efeito de um forte psicotrópico”, enfim com a coragem de cortar as cabeças dos invasores…
A apresentação dos letreiros iniciais evoca odisséias espaciais famosas do cinema, a sequência seguinte insinua o terror, adiante o faroeste é figurado, passo além o nordestern, e tantos outros usos paródicos de gêneros e de representações convencionais da formação cultural brasileira.
A própria trilha sonora do filme contribuiu para confirmar aos críticos incomodados que não se tratava apenas de mais uma ficção cinematográfica exibida nas telas dos cinemas brasileiros: e a música de Geraldo Vandré, com o relevo de sua voz tomada de outras fabulações fílmicas, foi ouvida como celebração da barbárie: “se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar”.
Mas desde quando a gente escuta assim letras de música! Como dizia o Drummond convocado mais acima, “foi seu ouvido que entortou”, prezado crítico! As músicas que ajudam a tecer a trama de Bacurau participam do regime de paródia que percorre todo o filme. E tomar expressões artísticas assim como apologia a qualquer coisa que esteja fora da lei é o que fazem as autoridades incompetentes de qualquer governo autoritário, como é o nosso caso atual.
Outra sequência que surpreende o espectador pela aparência inicialmente sugerida, logo adiante revelada em sua verdade, é a do momento em que um disco voador (“um objeto não identificado”) segue pela estrada no encalço de um dos habitantes do vilarejo que sofrerá o ataque. A convencional imagem do disco voador nos deixa suspensos na surpresa de elemento que acrescentaria mais um ingrediente às camadas da composição paródica: tem até ET!
Mas logo em seguida fica revelado que não se tratava realmente de disco voador, mas apenas um drone em modelo retrô. Se os espectadores por um momento fantasiaram aquela presença como figuração extraterrestre, a gente que vive em Bacurau sabe muito bem que se trata de um drone, apesar da aparência enganosa. Os assassinos que atacam Bacurau pensam enganar os locais, supondo-os todos primitivos e jecas. O personagem que é seguido pelo “objeto não identificado” avisa a outro morador: “Parece um disco voador, mas é um drone!”.
O personagem que faz essa advertência a outro morador é Damiano, figura que atua como espécie de pajé do vilarejo, agindo e deflagrando a resistência com a agressividade que o ataque dos invasores impõe. Damiano será um dos primeiros alvos do ataque coordenado dos gringos assassinos, que vão encontrá-lo em sua morada, onde dialoga com as plantas enquanto as hidrata. O personagem do velho Damiano se caracteriza como conhecedor da natureza que o cerca, em vínculo orgânico com a terra, à maneira de sábio ancião indígena.
E é isso que justifica o fato de estar nu em sua morada, em contato franco com a terra em que se situa Bacurau, e deste modo receber os invasores empunhando resistência explosiva. A sequência é sangrenta, encarnando a tela com as cores de Quentin Tarantino, e está registrado entre os testemunhos dos críticos indispostos o mal-estar causado por esta sequência – o que é bastante compreensível, visto a violência das imagens.
Mas, além do sangue, a nudez de Damiano e de sua companheira, que junto a ele combate os invasores como veio ao mundo, também são motivo de desconforto e de queixas que se querem críticas, numa ladainha moralista que mais uma vez parece resultar de alguma de má vontade.
Há também referências à cultura literária brasileira, e podemos pressentir a evocação de muitos dos aspectos de Os sertões, o “livro vingador” de Euclides da Cunha. Livro que teve impressionante impacto na cultura brasileira da época, com sua contundente linguagem a um tempo barroca e científica, ainda hoje permanecendo revelador de traços de nossa formação. O que parece se evidenciar à flor da fabulação de Bacurau é certo espírito combativo que está presente na narrativa ensaística de Os sertões, que nas suas notas preliminares expõe uma perspectiva fundamental do livro empunhado: “este não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque”.
Euclides declara que não teve “o intuito de defender os sertanejos”, mas o propósito de revelar as “selvatiquezas” praticadas por “mercenários inconscientes”, tidos por “civilizados”. Os civilizados que atuaram como “mercenários inconscientes” em Canudos foram os soldados republicanos do exército brasileiro, e são esses que Euclides declara “involuntariamente” atacar. A fabulação de Bacurau, que atualiza uma clássica narrativa de resistência do cinema universal e da literatura brasileira, não poderia deixar de promover agudo ataque à mentalidade fascista que se instalou no país.
Creio que o filme de Kleber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles pode ser percebido com esta mesma perspectiva crítica: Bacurau é um filme de ataque – mesmo que “involuntariamente”, já que se propõe a ser tão somente artefato ficcional, filme de cinema, fábula imaginária… E se é pertinente percebê-lo com o objetivo de reagir criticamente ao ataque que a democracia no Brasil vem sofrendo – será válido ressaltar que não defende um modo de resistência, não propõe a insurreição do público, não celebra a barbárie, ainda que a mentalidade fascista que se instaurou no poder queira tratar as coisas desse modo, neste caso acompanhada infelizmente por uma crítica emburrada.
A gente que nasce em Bacurau afirma sua vontade de vida de muitas maneiras, e se for necessário matar para preservar a própria vida não hesitará – a placa na estrada que leva ao vilarejo nos avisa: “se for, vá na paz”. É fabulação que tem muito a nos dizer sobre essas “horas da noite”, sobre a barbárie que se instalou no estado brasileiro, principalmente se não esquecermos que se articula como criação artística.
[1] A narrativa de Os sete samurais, de Akira Kurosawa, semelha em muitos lances à narrativa de Bacurau.