Um quinto do século já passou, o ano é 2021, mas as tristes aparências ainda são do século XX. As impactantes mudanças trazidas pela pandemia da covid-19 abalaram as estruturas sociopolíticas e econômicas em todo o mundo, revelaram as diferenças e acentuaram as desigualdades. Enquanto avança o número de casos registrados, a contínua luta para a vacinação total apresenta consigo a ávida esperança de que a qualquer momento se tornará visível a saída do caos instaurado.
Aos poucos, e cada vez mais feroz, temas urgentes tomaram o centro e as margens das discussões em todo o planeta. Seja “a eficiência de alguns líderes mundiais” ou “a ineficiência e os crimes contra a humanidade de outros”; seja “a importância de dirigentes especialistas” ou “as condições básicas de saúde”, o fato é que há necessidade de novas composições que atendam às necessidades reais da população mundial.
Dentre essas pautas ainda palpitam “as conduções das instituições, a essencialidade dos equipamentos sociais, as mudanças comportamentais em torno das tecnologias de informação e comunicação, o acesso a produtos e serviços essenciais, a contínua desigualdade social, os limites da interação humana e o capitalismo como motor central do progresso”. Algumas, apenas algumas pautas. São tantas!
Enquanto respostas são aguardadas para a maioria dos questionamentos – novos ou já velhos conhecidos, paliativos ou fatais -, no centro disso tudo uma verdade pulsa: o mundo está em transformação ininterrupta, voraz e aparentemente sem obrigação de senso de justiça e igualdade. Aos poucos a ficha vai caindo: o século XX ainda não se findou. Verdades duras ainda acompanham a humanidade.
Década após década colocamos na tecnologia a esperança de mudança de mundo em visão e ação. Mas não há na tecnologia condição absoluta de resolução de problemas estruturais. Todo o sonho de liberdade e emancipação que a tecnologia um dia já pregou está falido. Repito: falido! O que sobrou não é suficiente, não há nova tecnologia, computador ou software que por si só resolva o problema da covid-19 senão a vacina. E ela não virá por um aplicativo de smartphone com download.
A “Ágora Digital” tão sonhada pela Nova Esquerda das décadas de 1960 e 1970 se fundiu com as ambições de articulação do mercado da Nova Direita. E até agora a única liberdade que tem prevalecido é a aplicação lógica da autonomia de consumo na rede. Richard Barbrook e Andy Cameron já haviam nos alertado sobre isso em 1995 e o quanto a “Ideologia Californiana” evidenciava os deuses desse novo mundo.
Liberdade agora é sinônimo de inexistência na rede
A ambição mundial que se concentrava em sonhos de liberdade não encontrou na tecnologia a resposta para essas imaginações. Ela não foi a resposta até hoje e talvez nunca seja, embora a humanidade continue nutrindo a esperança de que a qualquer momento será desenvolvida uma nova tecnologia que resolva os problemas das queimadas na Amazônia, a massacre na faixa de Gaza, o racismo estrutural e institucional no Brasil, a fome nos países menos desenvolvidos, a intolerância religiosa no Oriente, a desnutrição e as doenças em países do continente africano.
Ledo engano, a tecnologia não será capaz de resolver todos os problemas da humanidade. Nem tudo pode ser alcançado por meio da opinião de um “deus” em códigos algorítmicos. Não há indicativos reais de que as redes sociais na Internet estejam realmente aproximando mais do que distanciando as pessoas. Enquanto alguns relatam a felicidade em reencontrar parentes distantes pelo Facebook e Instagram, outros estão sendo mortos pela crescente intolerância e propagação de informações falsas e criminosas. São inúmeros os casos de violência ao redor do mundo e crescente o número de grupos organizados para a difusão de fake news: um dos mais cruéis ataques à democracia contemporânea, uma ameaça sem igual.
Não surpreende que em 2017 Achille Mbembe já concebesse como problema do século a existência de uma íntegra vida política para a civilização. Diferente do que muitos consideram ser o caminho a percorrer, a tecnologia que aqui se refere é resultado direto e indireto do encadeamento ao lucro incessante. As relações estão se enraizando pelo capital, e a vida humana passando a ser objetivada em consumo e em números. Documentários como “o dilema das redes” e “privacidade hackeada” recentemente vêm denunciado a calamidade global.
Máquinas e algoritmos minam dados estraçalhados de indivíduos e recombinam em sequências de induções lógicas baseadas na personalidade, no instinto, na paixão, no ódio. Hoje, humanidade em opiniões codificadas, e Heidegger já nos ensinou sobre isso: “a essência da técnica não é técnica, mas sim humana”. E não há lógica que admita para si a imparcialidade da tecnologia, da Internet, dos algoritmos que operam tudo isso.
Outro desejo alimentado na contemporaneidade adota a Ciência como ponto central e simultâneo da angústia e da esperança. Se por um lado grande parte da humanidade espera cada vez mais resultados imediatos da Ciência e dos agentes, no contraponto estão grupos obscurantistas e negacionistas que colocam em cheque toda a estrutura das pesquisas científicas.
O panorama não é diferente de cem anos atrás. Negar a Ciência sempre foi argumento de líderes mal-intencionados e descomprometidos com as pessoas mais vulneráveis. Além disso, partindo do princípio de conhecimento legítimo da situação por parte desses líderes – conhecimento do real cenário pandêmico, conhecimento dos riscos, das fatalidades e das limitações –, o negacionismo também é sinônimo de covardia e mau-caratismo.
Com o patrocínio governamental aos poucos a máquina obscurantista se caracteriza como método de ação. Exemplo disso foi a eleição presidencial dos Estados Unidos da América com dados manipulados pela Cambridge Analytica e direcionamento de fake news para mudança de comportamento da sociedade. Conjuntura da qual o Brasil se assemelha com as cascatas de mentiras disparadas pelo WhatsApp que prestaram vitória ao então presidente Jair Bolsonaro.
Parece difícil compreender e aceitar que governos totalitários estão se instalando no mundo, que uma grande onda de extremismo cobre os continentes. Difícil aceitar o aumento da vigilância e do controle, a ampliação das ações punitivas, o acrescentamento das intolerâncias, a perda da liberdade individual e a invasão da privacidade como moeda de troca para promoção de proteção.
Diante disso tudo um questionamento se levanta: “cabe ao corpo científico a responsabilidade de informar as pessoas? Aliás, se o próprio governo nega a Ciência, corta recursos destinados às pesquisas, minimiza e não lamenta impactos fatais, não prioriza a Ciência no enfrentamento à crise sanitária, e não intermedia o diálogo com a população por meio dos meios formais de comunicação, como seria possível informar bem a população?”.
É um desafio atrás do outro: o fenômeno da pós-verdade é cruel!
Em termos de pandemia mundial não deve haver espaço para evidências baseadas na conjunção política, pois estas só cabem aos especialistas. O bom senso espera por políticas que se pautem em evidências científicas. Evidências sérias, consistentes, fortes e capazes de estabelecer hipóteses e metodologias de ação: avanço e retração.
Se por outro lado o crescente negacionismo continuar a ganhar palco, sobretudo entre pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, certamente a Ciência enfrentará ainda mais forte período de crise de confiança e sensibilidade. Discutivelmente obscurecer a Ciência revela um padrão comportamental em meio a crises sanitárias, a exemplo disso a tão recente gripe espanhola.
A História mostra que em 1918 também se avistavam pessoas com máscaras, limpeza de ambientes coletivos. Assim como os velhos raciocínios equivocados: “nosso clima é quente, somos um país tropical de muitos jovens, essa tragédia não acontecerá conosco, é invenção da Alemanha para ganhar a guerra”. As semelhanças não são meras coincidências.
Daí aconteceu o pior, e tal qual a pandemia da covid-19, a gripe espanhola entrou com as pessoas mais ricas pelos navios, afetou o país inteiro, matou dezenas de milhares no Brasil e milhões em todo o mundo; em sua maioria pobres, como já se podia prever.
Agora, cem anos depois, enquanto países formaram verdadeiros esquadrões de profissionais para liderar forças empenhadas em conter o avanço e os riscos da nova ameaça global, o exército brasileiro que assume para si a capa da salvação empenhou esforços em produção laboratorial de medicamentos ineficazes. Como resultado disso os contratos são objeto de investigação pelo Ministério Público no superfaturamento de insumos.
Se alinhasse a força tática à Ciência, talvez o Brasil tivesse sido um excelente exemplo para o mundo no enfrentamento. Mas, em contrapartida, enquanto negava a vacina o Ministério da Saúde do Brasil distribuía a ineficaz hidroxicloroquina aos estados.
E mesmo que a Ciência trabalhe com extrema urgência, a tragédia que a tecnologia digital não pôde evitar e que o negacionismo continua a alimentar, hoje resulta em mais de 149 milhões de casos confirmados e mais de 3,14 milhões de mortes em todo o globo. Evidencie, pois: evitável!
Se a perspectiva continua esta, se as verdades continuam duras, se a humanidade caminha cega, faz sentido crer que a virada do século ainda esteja sucedendo. O historiador britânico Eric Hobsbawm já havia dito, mas nem todos ouviram, que o fim do século XIX só se deu após o fim da Primeira Guerra Mundial. Agora a transição do mundo da tecnologia e da pós-verdade indicam: ao findar da pandemia mundial da covid-19 o século XX está acabando, e o século XXI está, enfim, começando.