Olhe a foto acima. O que você vê? O que sente? O que sabe? O que acha que é capaz de suportar? Essas foram algumas perguntas que fiz a mim mesma antes de iniciar a leitura de “Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear” (original russo, tradução de Sonia Branco, Companhia das Letras, 2016, págs. 384), obra premiada da jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch. Em 2015, Svetlana ganhou o Nobel de Literatura e, com o título, veio o reconhecimento mundial. Merecidamente, é preciso destacar.

Vozes de Tchernóbil é um livro difícil, doloroso, sangrento e necessário. Tive que interromper a leitura diversas vezes, seja para marcar ou anotar alguma passagem interessante ou para respirar fundo antes de continuar. O livro levou mais de uma década para ser escrito e reúne depoimentos de pessoas que sobreviveram ao maior acidente nuclear da história da humanidade, ocorrido em 26 de abril de 1986. Na obra, encontramos viúvas de liquidadores (homens que trabalharam diretamente na Central Atômica e foram contaminados – e mortos – por níveis inimagináveis de radiação), cientistas, soldados, pesquisadores, ex-ocupantes de cargos públicos e camponeses.

Sentados em nossos sofás, camas ou cadeiras, acompanhamos a dor de eternas viúvas devastadas pela morte precoce e horrenda de seus maridos. Nos dois capítulos denominados “Uma solitária voz humana”, conhecemos a história de Liudmila Ignátienko e Valentina T. Apanassiévitch, mulheres que estiveram ao lado de seus maridos quando eles perderam a pele do corpo, vomitaram vísceras e presenciaram a aparência de ser humano ir desaparecendo. Ao passar os olhos pelas palavras reproduzidas por Svetlana, podemos sentir as lágrimas escorrendo do papel; ouvimos os gritos e imaginamos a dor – apenas imaginamos.

No decorrer do livro, conhecemos o relato de mães que perderam seus filhos para a leucemia e outros tipos de câncer; ouvimos sobre a vida de crianças que nasceram com deformidades genéticas que as impedem de urinar, andar, sentir e viver; descobrimos que existem idosos abandonados por suas famílias, pois se recusaram a deixar a zona proibida, e que vivem em meio à solidão e aos animais selvagens; tomamos ciência do massacre de cães e gatos pelos soldados responsáveis por evacuar as cidades contaminadas; também conseguimos ouvir a voz de crianças que perderam suas referências e que nutrem um medo incontido do ar, da terra, da água, da comida e de tudo o que se mexe… Crianças que foram obrigadas a abandonar a infância e sobreviver sem nação ou lar.

São inúmeros relatos, acertadamente chamados pela autora de ‘monólogos’, que nos fazem teorizar e chorar a sorte de milhões de pessoas contaminadas e evacuadas quando uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Atômica de Tchernóbil, localizado próximo à fronteira da Belarús. A antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) desmoronou, levando consigo a utopia política e social que dominou os países do bloco. Enganados por um governo vil, sedento por controle autoritário e manipulação coletiva (como são 99,9% dos governos), homens, mulheres, crianças e animais de estimação foram alimentados com comida contaminada, informações falsas e levados à destruição generalizada.

Com o livro de Svetlana Aleksiévitch, descobrimos que, depois do acidente, as pessoas foram enganadas e levadas a viver com normalidade para “evitar pânico e caos”. A cúpula governamental sacrificou centenas de homens, convocando-os para trabalharem sem nenhuma proteção nas zonas contaminadas e no reator; abateu mulheres, que ficaram sem seus maridos e filhos (a recomendação máxima era que essas mães abortassem seus filhos; caso contrário, teriam que suportar parirem crianças natimortas ou portadoras de mutações genéticas espantosas). O governo desamparou inúmeros idosos camponeses ao retirar suas casas, seus pouquíssimos bens e seu mundo – muitos deles se recusaram a sair da área de contaminação; famílias inteiras foram lançadas para outros países e lugares, atravessando privações e abandono.

Na maioria dos depoimentos, há desencanto total e absoluto. Frases como “sou um homem do meu tempo”, “nós somos soviéticos”, “acreditamos no nosso governo, no nosso partido e nos nossos ideais” fazem coro às associações religiosas com a tragédia, uma espécie de “destino a ser seguido”. O “homem vermelho”, que cresceu acreditando na noção de povo e não de indivíduo, precisou aprender a se reerguer diante de uma calamidade comparada aos piores momentos da história da humanidade.

Tchernóbil é o reflexo de um mundo que falhou e que, 34 anos após o horror nuclear, não aprendeu a lidar com sua ganância, egoísmo e ilusão.

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