Em março deste ano o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, negou recurso extraordinário à Câmara de Vereadores de Manaus para derrubar a decisão do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ/AM) que julgou inconstitucional a Lei 1.679/2012, de autoria do vereador Marcel Alexandre (PHS), que obriga os espaços públicos de leitura da capital amazonense a ter um exemplar da bíblia sagrada.
Para o ministro, a obrigatoriedade do livro em bibliotecas públicas “demonstra ausência de igualdade material em relação às outras religiões”. “O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro”, disse o ministro que negou seguimento ao recurso interposto pelo Ministério Público do Estado do Amazonas. E embora seja uma decisão recente, a questão não é nova no Judiciário brasileiro.
Em 2011 o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, sancionava uma lei (Lei nº 5.998/2011) tornando obrigatória a manutenção de exemplares da bíblia nas bibliotecas situadas naquele estado. De acordo com a referida lei, o descumprimento do dispositivo legal implicaria em multa, podendo esta ser dobrada na hipótese de reincidência.
Anos antes o estado do Rio Grande do Norte adotava legislação parecida. Pela lei potiguar (Lei nº 8.415/2003), ficava determinada a inclusão no acervo de todas as bibliotecas públicas do estado de, pelo menos, dez exemplares da bíblia sagrada, sendo quatro delas em linguagem braile. Este cenário se repetiu, ainda, nos estados do Mato Grosso do Sul (Lei nº 2.902/2004) e Amazonas (Lei nº 74/2010).
Inconformado, o à época procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou no STF quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 5248, 5255, 5256 e 5258) questionando as leis estaduais. Janot propôs, ainda, a ADI 5257 contra lei de Rondônia que oficializava naquela unidade da federação a mesma publicação como livro-base de fonte doutrinária para fundamentar princípios, usos e costumes de comunidades, igrejas e grupos.
Nas quatro ações que questionavam a inclusão da bíblia nas escolas e bibliotecas públicas, o procurador-geral da República alegava que as leis ofendiam o princípio constitucional da laicidade estatal, previsto no inciso I do artigo 19 da Constituição Federal de 1988.
O referido dispositivo constitucional prevê que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Rodrigo Janot argumentou na ocasião que se por um lado os cidadãos detêm liberdades individuais que lhes asseguram o direito de divulgarem publicamente suas crenças religiosas, por outro, o Estado não pode adotar, manter nem fazer proselitismo de qualquer crença específica.
“Conquanto não haja impedimento constitucional à mera presença de exemplares de livro religioso em bibliotecas e unidades escolares nem à sua divulgação em espaços públicos, o mesmo não ocorre com determinação, por ato normativo, de disponibilização obrigatória de obras dessa natureza, com imposição dos respectivos custos ao poder público”, alegou Janot em seu parecer.
Ainda de acordo com o PGR, o princípio da laicidade estatal impõe que entes federativos que se abstenham de adotar, subvencionar ou fazer proselitismo de cultos religiosos ou igrejas específicas, impedindo que o Estado promova, por atos administrativos, legislativos ou judiciais, juízo de valor sobre crenças ou conceda tratamento privilegiado a determinada religião.
Janot ainda destacou que a norma acaba por promover tratamento desigual entre cidadãos, na medida em que assegura apenas a adeptos de crenças inspiradas na bíblia acesso facilitado, em instituições públicas, a esse livro.
“Não se justifica como medida de promoção de valores culturais inserta na permissividade constitucional do ensino religioso em escolas públicas […] Fosse esse o intuito, deveria necessariamente ter observado as diversidades culturais e religiosas do Brasil, não podendo prestigiar e beneficiar livro-base de crença específica em detrimento das demais”, defendeu.
Apontou na ocasião o procurador que, além de impedido de adotar ou professar crenças, o Estado encontra-se impossibilitado de se imiscuir ou de intervir sobre aspectos internos de doutrinas religiosas.
“Seu dever com relação aos cidadãos, nessa seara, é o de apenas garantir a todos, independentemente do credo, o exercício dos direitos à liberdade de expressão, de pensamento e de crença, de forma livre, igual e imparcial, sendo vedada, em razão da laicidade, que conceda privilégios ou prestígios injustificados a determinadas religiões”, argumenta.
Na avaliação de Rodrigo Janot, ao obrigar a inclusão da bíblia em escolas ou bibliotecas públicas, os quatro estados fizeram juízo de valor sobre livro religioso adotado por crenças específicas, considerando fundamental, obrigatória e indispensável sua presença naqueles espaços. “Contudo, incumbe aos particulares, e não ao Estado, a promoção de livros adotados por religiões específicas”, sustentou.
Sobre as ações impetradas junto ao STF, o procurador destacou que seu interesse era “unicamente proteger o princípio constitucional da laicidade estatal”, de modo a impedir que os estados promovessem ou incentivassem crenças religiosas específicas em detrimento de outras, sempre se resguardando, por outro lado, os direitos dos cidadãos de assim procederem, em decorrência do exercício das liberdades de expressão, de consciência e de crença, previstos na Constituição Federal.
A inconstitucionalidade
No caso da lei fluminense, em julgamento monocrático, realizado em março de 2018, o ministro do STF e relator da ação, Alexandre de Moraes, julgou prejudicada a ADI 5248, que pedia a inconstitucionalidade da lei local, pois, segundo ele, a norma questionada já havia sido considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), em acórdão confirmado pelo STF.
De fato, em 2015 os desembargadores do TJ-RJ consideraram inconstitucional Lei nº 5.998/2011. Na ocasião a maioria dos magistrados do Órgão Especial do Tribunal acompanhou o voto do relator, Carlos Eduardo da Rosa da Fonseca Passos, que classificou a regra como uma “ofensa ao Estado laico”.
“A obrigatoriedade imposta às bibliotecas situadas neste estado configura ofensa ao Estado laico, na medida em que exige a manutenção, em seus acervos, de livro sagrado, em prejuízo à igualdade de credos e à impessoalidade religiosa que norteia atuação dos órgãos administrativos”, afirmou o relator em seu voto na ocasião.
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