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Não me diga “feliz dia!” Levanta e luta comigo

A história acontece no miudinho das horas. É preciso preparação para ter olhos de ver, ouvidos de escutar, abertura, acolhimento. É assim que saímos do plano das boas intenções e estabelecemos conexões potentes, passamos do proselitismo à prática, transformando sementes em raízes profundas. Para desenraizar também. É trabalho minudente a transição de ser humano para sendo humano.

Fui escutando e matutando e lendo ao longo de março para chegar até aqui, nesta escrita. A motivação foi um convite que recebi da Editora Moderna para participar do Café Literário Empoderamento: a luta feminista começa na escola. Estavam lá a Bel Santos Mayer, a Denise Guilherme e a professora Tatiana de Sá Pereira. A prosa foi mobilizadora. O link está aqui.

O que é feminismo pra mim?  Penso o mesmo que Rosa de Luxemburgo:

“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”

Quando me dizem feliz dia da mulher eu tenho vontade de retribuir dizendo feliz dia da arvore. Confesso: embora entenda a importância da efeméride, nutro antipatia pela apropriação. Fosse Dia Internacional da Luta pelos Direitos da Mulher eu entenderia. Sim, é preciso celebrar a coragem, a persistência, as conquistas das vidas de quem vieram antes de nós abrindo caminhos por igualdade. É que quando é preciso existir “um dia para lembrar” é porque há o risco de estar apagado em todos os outros dias. A existência de um dia da mulher é a prova de que vivemos numa sociedade erguida a partir de uma lógica masculina.

Eu sempre me pergunto em qual esquina da história a mulher foi submetida. E sempre vibro com achados arqueológicos que desconstroem os estereótipos consagrados. Sim, mulheres eram guerreiras. Vibro quando a ciência em ação revela a importância da mulher na promoção de vantagens cognitivas à nossa espécie, a ruptura de preconceitos de supremacia racial e a anunciação da potência biológica do feminino, como o achado da Eva mitocondrial”: somos descendentes de uma mesma mulher africana e herdamos de nossa mãe, não importa com qual gênero nascemos, a mitocôndria, que são estruturas dentro das células responsáveis pela produção de energia para as funções mais vitais do corpo humano.

Vibro com o resgate da presença e produção intelectual de mulheres em tempos anteriores à modernidade. Vibro quando as ciências sociais trazem novos olhares, como este sobre ter sido o medo da potência do feminino e não a misoginia a razão das crueldades perpetradas contra as mulheres ao longo da história. E para chegar mais pertinho aqui do chão no qual pisamos, vibro quando a lente de aproximação permite ver com clareza as “práticas de exclusão e dominação racista das quais negras e indígenas são testemunhas vivas”.

Num dia em um tempo antes da pandemia, fui visitar duas crianças, uma menina de 4/5 anos e seu irmãozinho de cerca de 2 anos. Levei o mesmo “tipo” de presente: brinquedo de montar, a única diferença era o tema, acho que um era fazenda e outro floresta. Assim que a menininha abriu o embrulho e viu o conteúdo disse, contrariada: “Eu não sou menino!”. Trago esse relato real aqui para exemplificar a sutileza do bordado da desigualdade de gênero. Sua raiz está no mesmo lugar onde nascem e vicejam todas as desigualdades. No miudinho. Adubando, sabemos onde podemos chegar. Desconstruindo, quanta potência podemos conquistar.

De que feminismo falamos? Daquele em que mulheres ganham sobrecarga com dois turnos de trabalho, na empresa e em casa? Daquele em que mulheres deixam seus filhos pequenos sem os cuidados maternos porque precisam cuidar de filhos de outras mulheres para sustentarem seus filhos e não têm sequer a garantia de creche? De mulheres ocupando lugares de liderança nas organizações com a mesma lógica machista fazendo a roda girar como sempre girou considerando licença maternidade uma desnecessidade porque “seu trabalho precisa de você em tempo integral” ou porque tem medo que possa ser substituída por alguém que não gere filhas(os)?

Na geração da minha mãe, que nasceu na década de 20 do século passado, era comum a escola ser negada às meninas porque a elas cabiam o cuidado do lar. Esta motivação privou a minha mãe da escola que tanto queria frequentar e ela fez dessa pilhagem potência para que a história não se repetisse com suas filhas. Quando eu recebia algum formulário para preencher nome e profissão de minha mãe fui treinada a escrever: “prendas do lar”. À época, sem saber exatamente o porquê, antipatizava com essa descrição. Sem saber nasciam ponto e linha da minha determinação em tecer uma outra descrição não só para mim. E minha mãe foi, sempre e para sempre, a sustentação da minha jornada.

A gente tanto não deve medir a vida só com números, sem deixar de usar lupa afiada para ver no miudinho o que há por detrás deles, porque corre o risco de celebrar equivocadamente. No exemplo “sair de casa e ocupar o mercado de trabalho”: segundo dados do IBGE a presença das mulheres como chefes de família saltou de 22% em 1992 para 48,2% em 2019. Só que, entre outras: “As famílias chefiadas por mulheres estão mais concentradas em faixas de renda per capita baixa, onde 53,4% vivem com até 1 salário mínimo (SM) por mês, quando entre os homens o percentual é de 46,46%. Dentre as famílias chefiadas por mulheres, 11,28% recebem renda per capita mensal de até ¼ de SM e 14,54% mais de ¼ até ½ SM; no caso dos homens a participação é de 9,5% e 11,55%, respectivamente”. 

Os avanços relacionados à equidade de gênero existem. Mas não estão sós. Vêm acompanhados de armadilhas que precisamos desconstruir, ponto a ponto, para tecer igualdade de fato e não retórica. Reconhecer é extremamente importante para não retroceder e não deixar ninguém para trás.

Sendo a escola essa fronteira civilizatória por aqui, da qual tanto se espera e tão pouco se dá, fui conversar “ao pé do ouvido virtual” com educadoras e um educador para entender melhor os desafios e as potências. Retorno deste pequeno mas profundo mergulho de escutas com algumas percepções.

O feminismo ainda não é pauta transversal

Assim como tudo o que se refere à aprendizagem de leitura e escrita fica a cargo apenas de educadoras(es) da área de Linguagem, o que é um absurdo em si, já que a escrita é transversal na apropriação de conhecimento, a pauta dos direitos humanos e, no caso, do feminismo, está ora a cargo de professor(a) de história, ora de Linguagem, ora de artes, ora de quem assume para si como projeto temático.

Sempre há honrosas exceções e cito uma: no parâmetro de uma escola consta tratar as “mulheres nas ciências exatas e na matemática” e encontrei uma venturosa prosa com um professor de matemática sensível e envolvido em aprofundar seu conhecimento e seus sentidos, seja promovendo escuta atenta em sala de aula já que há uma cultura de que “matemática é coisa de menino”, seja desconstruindo a narrativa que impera de que só há gêniOs da matemática, trazendo para a cena mulheres com destacada atuação na área, sempre superando ou sendo impedidas pelas barreiras impostas pela sociedade machista. Direto de Alexandria lá no século I temos Hypatia, pulando para o século XIX Mileva Maric Einstein, aterrissando em 2019 Katie Bouman.

Quando a escola tem um outro contorno e um outro “contrato” com as famílias há espaços privilegiados de escuta e diálogo. E temas como feminismo podem emergir a partir do que está presente, inquietante e pulsante na vida de estudantes, como nas alterações de seus corpos quando ingressam na puberdade. É hora de construir apoios que desconstruam preconceitos.

É sempre muito mais potente, porque pleno de sentido, quando a experiência de imersão em um tema relacionado aos direitos humanos passa pelos corpos em ação num determinado lugar, tempo e circunstâncias sociais, históricas e pessoais. Com a boa mediação de um(a) educador(a) podem, em espaço de confiança, falar de espantos, desconfortos, reelaborar. Sim, meninos também choram. Sim, meninas querem ser apreciadas e não violadas.

Não raro ouvi sobre o temor de ser uma pauta com “prazo de validade”, seja porque configuram como projetos e estão nas mãos de educadoras(es), e sua saída da escola pode significar a interrupção da abordagem do tema na escola, porque não há um trabalho sistematizado conectado ao projeto político pedagógico, seja porque demanda formação preparatória e sistemática de professoras(es) que não está garantida e acessível para todas(os).

Isso não significa que se deve “jogar o bebê junto com a água do banho”. Ao contrário, trata-se de olhar como uma janela de oportunidade o que de fato está ocorrendo nas escolas, fruto do trabalho comprometido de educadoras(es), e atuar pelos recursos necessários à sua efetividade, tendo em vista também os limites do tempo escola. Leitura de entorno para ir além. Nem euforia. Nem derrotismo.

Importa, e muito, o que se lê

Leitura em voz alta, compartilhada, silenciosa. Leitura para ocupar outro corpo em outro tempo ou em outro lugar. Ultrapassar a dimensão do saber e penetrar na experiência do viver. É preciso curadoria fina sobre os livros e as leituras. Quem escreve? De onde escreve? De quem fala? Como fala? Há diversidade? Representatividade? Porque não há uma mulher. Somos plurais. Não há um feminismo. Somos plurais.

Os textos que amparam as jornadas formativas são de autoria de mulheres? O feminino está como marca d’água na história, nas ciências, nas artes, nas geografias, nas exatas, nas humanas? Tem Leopoldina na urdidura da Independência do Brasil? Tem Dandara rompendo grilhões da escravidão? Tem Cleópatra não como a “meretriz” tingida por Hollywood, mas sagaz jogando o jogo do poder? Tem mulheres indígenas protagonizando a garantia de direitos à ancestralidade, à terra, à vida?

Estes livros desconstroem estereótipos, tiram do apagamento e trazem as mulheres à cena central? Mãos à obra para ler de perto o acervo didático e literário que compõe o acervo da biblioteca da escola – e brigar por ela caso não exista. É preciso colocar os devidos pingos nos is nas histórias para a construção de histórias que promovam equidade. Aqui tem uma boa e potente relação de obras e aqui poucas e boas indicações para crianças e adolescentes. Há muito, muito mais à disposição e à espera de leitoras(es) e leituras.

Escola da presença

A pandemia impôs aulas on line – se é ensino e aprendizagem, não sabemos. Uma educadora usou uma figura de imagem para descrever o engajamento de estudantes nesta condição que achei genial – e passou pelo teste drive com minha filha adolescente. Você sabe aquele brinquedo bem antigo, que tem um animal feito de madeira ou plástico, e quando você aperta embaixo o animal se deita completamente rendido? Acho que se chama “bichinho articulado”.  Ela usou como referência para falar sobre a disposição de estudantes para os encontros on line após quase um ano e meio de vida digital. A girafinha da foto que trouxe para ilustrar a ideia está de pé, mas estudantes estão tombadinhas(os), com baixa disposição para trocas.

Pois bem, a escola é lugar de presença, de encontros. O que acontece nesse tempo real com pessoas reais nos espaços da escola, nas salas de aula, é fundamental para a educação sobre os humanos direitos. Na troca de um olhar, na escuta da modulação da voz, num hiato entre uma frase e outra, num esbarrão de ideias ou de corpos, na percepção sobre as perguntas e as respostas emergem as oportunidades de um bom debate. É preciso ter escuta!

A partir de uma pergunta que irrompe de supetão, como “SORA, TU ÉS FEMINISTA?”, pode nascer a oportunidade única para um diálogo sem proselitismo, construído com recortes do cotidiano perfeitamente conhecido de qualquer estudante em qualquer lugar. Convido você a ler o relato aqui.

Há muitas sutilezas no território da educação que precisam de focalização e tratamento para que a escola rompa e não reproduza os preconceitos fartamente distribuídos na sociedade. Um desafio que até parece pegadinha, uma vez que a escola é parte integrante da “matrix”. O artigo Ser mulher e professora numa sociedade machista, de Lara Marin, mestre em Estudos Culturais pela ECA/USP, é contundente e esclarecedor. Convido à leitura.

Pra frente é que se anda apesar do recrudescimento do conservadorismo e desumanismo (apánthropos, em grego) vigentes. Caminhamos a passos mais curtos e mais lentos do que a urgência da vida. No entanto… Fato é que crianças e jovens têm chegado à escola com um outro patamar de percepção sobre igualdade de gênero. Fato é que educadoras(es) têm assumido o protagonismo na condução desta pauta. Fato é que retroceder não é opção. É preciso saber, sentir, se comprometer. A escola é parte integrante desta luta. Que bom seria se educadoras(es) de escolas públicas e privadas transpusessem as trincheiras para saber mais, partilhar mais, aprender mais, se unir num traçado comum e plural, tão necessário à tecitura de humanidades, no miudinho dos instantes.

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