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Jasy Jaterê acãhatã: travessuras do Saci Pererê

No artigo anterior falei do Cara´í Lu´í (senhor lobisomem) e o seu ataque noturno a nossa casa no povoado de Bella Vista, Paraguai (clique aqui para ler). Che Valle, meu povoado, era cheio de estórias estranhas e lendas, e a mais conhecida era a do Jasy Jaterê [1], uma lenda da mitologia guarani. Desde pequenino que ouvíamos:

Mitã´í churí, casõ mboca´í

(menino abandonado, calças trabuquinho[2])

Ry´ê ky´á, tujá mbaracá

(barriga suja, violão de velho)

Reicô pêrupi asajepytẽ

(que anda por aí na hora da sesta)

Háke! Jasy Jaterê!

(cuidado! Saci Pererê!)

As travessuras faziam parte do cotidiano da gurizada, mas não sem o devido castigo. A lenda do Jasy Jaterê, que, nas horas da sesta, saía pelos caminhos da mata à procura dos meninos travessos era bastante conhecida e respeitada. Os guris acãhatã [3], dito arteiros, ele os levava para longe dentro da mata e lhes dava de comer, para sustento, favos de eira, mel, por vários dias, até devolvê-los às famílias com indícios de loucura. Das meninas ele abusava, pois não conseguiam resistir à sua sedução. Seus cabelos ruivos cacheados, olhos claros, pele amorenada, sempre com seu bastão/flauta de ouro na mão e chapéu enorme de carandá, faziam dele uma figura que povoava com freqüência o imaginário popular.

Nas noites de lua cheia, seus cabelos se faziam embranquecidos, como que grisalhos, e ele se punha a tocar a flauta, atraindo as mocinhas. Durante o dia, o seu toque atraía os pássaros, que em revoada giravam ao seu redor, elevando-o sobre o chão e lhe servindo de transporte por entre os arvoredos.

No entanto, mesmo conhecedor da lenda, fui protagonista de algumas travessuras, correndo o risco de ser sequestrado pelo Jasy Jaterê. Entre as minhas proezas, posso citar a vez em que, por me sentir contrariado nos meus interesses gastronômicos, decide fugir para a floresta. Teria eu então quatro anos, pois já não achava mais estranho a berruga no rosto da minha babá Conrada, e nem me assustava mais com a feiura do Kerambú, dorminhoco, um guri, de uma etnia do Chaco paraguaio, que tinha os olhos saltados das órbitas e que parecia que nunca tomava banho.

Era uma tarde de domingo.

Minha mãe abriu uma lata de marmelada, delícia pura naquela época. Na sua lógica geométrica quem era menor recebia pedaço proporcional. Mas não era a minha lógica; quem era menor tinha que receber pedaço maior para crescer logo.

Deu no que deu.

Emburrei, cruzei os braços e estiquei o beiço, na maior cara de birra. Quando, pela má criação, ela tentou me pegar para me passar o tento[4], eu corri em direção à mata, gritando que ia morar lá a partir de então. No começo pensaram que eu estava brincando e deixaram que eu me aproximasse dos primeiros arvoredos, quando então a mamãe deu a ordem para que minhas irmãs me pegassem. Como a Kéca [5] dispunha de um par de pernas longas, logo fui trazido carregado para o portão da casa, onde fui calorosamente recepcionado pelo tento.

Pouco tempo depois, foi a arte junto ao pé de manga.

Ña [6] Affonsa varria todos os dias as folhas das mangueiras e fazia um grande monte em que punha fogo esporadicamente. Naquele dia, estava eu a me balançar numa pranchinha de madeira presa ao galho da manga por duas cordas de piola. Em dado momento, não sei se foi por obra do Jasy Jaterê ou por fatalidade, uma das cordas se soltou e lá fui eu para dentro da fogueira. Foi muito rápida a minha queda, mas mais ligeiro ainda fui eu me debatendo para escapulir das chamas, o que acabei conseguindo. Mas, não consegui escapar do tento.

A calecíta, assim era chamado o parquinho nos fundos da Casa Paroquial. O sabor das primeiras travessuras iniciáticas era ali que se vivia. O poste onde a gente se balançava pendurado numa corda de piola, amarrada com vários nós para apoio das mãos. Dado o embalo, era só levantar os pés e lá se ia a gente dando voltas ao redor do poste. Naquele final de tarde, algo deu errado; minha mão ficou presa n, e graças à força centrípeta fui me aproximando perigosamente do poste, até que uma violenta testada na dura madeira fez crescer um soberbo galo na testa. Foi um Chororó de fazer inveja ao Chitãozinho. Daí em diante, a gente fazia círculos com o dedo e apontava um galo na testa; era a deixa do trompaço.

A Kéca foi sempre muito quietinha.

Uma menina de longos e lisos cabelos negros.

Olhos perspicazes que inibiam qualquer tipo de gracinha que não fosse do seu agrado. Mas, como o ciclo da lua, ela também tinha suas fases, de travessuras, é claro.

Perambulando pelas ruas, existia uma mulher de porte pequeno, e que caminhava com o andar de uma pata. Aliás, que era o seu apelido: Paloma Riacho [7], que ela detestava mais do que tudo no mundo, e ai daquele que assim a chamasse e que ela botasse as mãos; esfolava com a sombrinha que carregava sempre embaixo dos braços.

Naquele dia, ela cruzava pela rua, atrás do nosso quintal. Seu gingado denotava pressa e irritação. Ai de quem mexesse com ela! Para não a confrontar, eu e minhas irmãs passamos pelo arame farpado da cerca e entramos no quintal vizinho, com mato ralo e algumas árvores. Talvez se sentindo em segurança, a Kéca desandou a gritar:

Paloma Riacho! Paloma Riacho!

A reação foi imediata. Uma mistura de impropérios com palavrões saiu da sua boca, que, com cerca dificuldade, cruzou também pelo aramado.

Foi um Deus nos acuda.

No desespero subimos num pé de goiaba bastante alto para nos garantir certa segurança. Quando cheguei ao topo, me deparei com a Kéca balançando no galho mais alto; ela continuava provocando a fúria da mulher. Ficamos por uma hora ali pendurados, até que a Paloma Riacho arrefeceu a fúria e nos liberou.

Essa havia sido por pouco.

Ocorriam as travessuras coletivas.

Para a chácra [8] de cara´í Teófilo e ao sítio de Don Octávio Gonzalez, no Huguá [9], íamos todos à cata de melancias. Pelo tape po´í[10], trilheiro, atravessávamos as matas e os campos, e de longe avistávamos a casinha caiada de branco de cara´í Natividad Fleitas, mais conhecido como cara´í Natín. Ña Ignácia, esposa de cara´í Octávio, nos atendia com a costumeira hospitalidade, e assim o dia logo apontava a hora da volta para casa.

No transporte para casa, somava-se o peso à vontade de se deliciar mais um pouco com a polpa refrescante das melancias. A caminhada era longa, intercalada por várias cercas e tronqueiras. De adrede combinados, ao passarmos por baixo dos alambrados e portões alternadamente deixávamos cair uma melancia de cada vez; e uma vez quebrada, o jeito era comer ali mesmo, no meio do caminho; até a próxima tronqueira, com a troca de passos, a digestão estava feita…

Todas essas artes se sucediam ou em hora matutina ou vespertina, nunca na hora da sesta, que era para o Jasy Jaterê não nos sequestrar, muito menos seduzir as minhas irmãs, apesar que eu sempre achei que ele poderia se dar mal com a Kéca…

Um dia correu um boato na pequena e espalhada comunidade bellavistense. O Jasy Jaterê havia sequestrado um menino da família Garcete. Muitos dias se passaram até que o menino foi encontrado perdido no meio da mata. Ele afirmou que saiu em companhia de um amiguinho loiro, que lhe servia mel quando tinha fome. O mais estranho é que o menino retornou para casa com os pelos de um dos cílios embranquecidos. Ele apresentou na adolescência problemas mentais, que o levaram mais tarde a óbito.

Passamos um bom tempo bem comportadinhos.

Quando eu cruzava por frente da casa de madeira dos Garcete, que se mantinha sempre fechada, meus pés criavam asas, como a própria entidade da lenda, que, se dizia, voava no meio de um redemoinho.

Essa lenda, do Jasy Jaterê, da mitologia guarani foi que deu origem, no folclore branco, ao Saci Pererê. Por força da escravatura, a entidade de pele queimada de sol foi substituída por um negrinho, e os cabelos avermelhados, ruivos, por um gorro vermelho, e a passarada que o carregava em rodopio por um redemoinho.

Grande Jasy Jaterê, de muitas travessuras…

A lenda do Jasy Jaterê, bem como do Kyvy Mirim, da mitologia guarani, pode ser encontrada na minha obra “MARANGATU – dois mitos guarani”, narrativa em versos e ricamente ilustrada por Márcia Széliga (Cortez Editora, 2015). Detalhes em www.brigidoibanhes.blogspot.com.br

[1] Jasy Jaterê deu origem, no folclore branco, à lenda do Saci Pererê, com algumas adaptações promovidas pela Casa Grande para sempre depreciar os negros da Senzala.

[2] Trabuquinho – vem de trabuco, arma rudimentar que tem o cano de boca larga e assim pareciam as bocas das calças dos meninos naquele povoado.

[3] Acãhatã – literalmente “cabeça dura”, assim denominados os meninos muito bagunceiros.

[4] “Passar o tento” – tento era um chicotinho de couro usado para espantar as galinhas que adentravam pela cozinha, mas que servia também para a corretivo nas crianças.

[5] Meu pai tinha o apelido de Kéco, minha irmã mais velha era chamada de Kéca e eu era conhecido como o Kequito.

[6] Ña – dona.

[7] Paloma Riacho – pombona do córrego.

[8] Chacra – assim eram chamados na fronteira os pequenos sítios ou chácaras.

[9] Huguá – assim chamado o bairro mais afastado do centro, mais ou menos traduzido como cafundó.

[10] Tape po´í  – caminho estreito literalmente, trilheiro.

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