Controlar o tempo tem sido uma obsessão humana desde priscas eras. Se fosse possível, retornaríamos ao passado, viajaríamos para o futuro, manipularíamos o tempo como se ele fosse o nosso escravo. No entanto, a piada cósmica é que o contrário é absolutamente verdadeiro. Não há poder mais insano do que o tempo, uma ideia abstrata que tem suas próprias regras, tal qual uma criatura que domina o criador e que grita aos quatro ventos: “Ninguém aqui é especial! Eu arrastarei todos comigo!” Diante desse cenário incontrolável, o homem, que a tudo quer dominar, se vê às voltas com essa impossibilidade.
Em menos de cem páginas, o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald contou a história de um ser humano que trapaceou a ordem do tempo em “O curioso caso de Benjamin Button”. Nascido com a aparência física e mental de um vovô de setenta anos, o recém-nascido-matusalém Benjamin Button foi um golpe duro no seio de sua família aristocrata. Tido como anomalia inexplicável, o jovem-velho veio ao mundo como todos os bebês, mas de forma avessa. Após o seu nascimento, o pai, que a princípio o repudia, tenta convencer a si mesmo que tudo é uma ilusão. E é assim que Benjamin percorre toda a história: como se fosse fruto de uma profunda ilusão que não merece ser explicada, apenas abafada. O jovem-idoso representa a falta de lógica, a fagulha de descontrole temporal, uma voadora do homem no tempo.
Acompanhamos todas as fases de Benjamin, perplexos diante da irreversibilidade de sua situação e do silêncio oportuno de seus contemporâneos. Indo contra a corrente, Benjamin rejuvenesce enquanto todos definham: de senhor grisalho e galante, ele se torna um jovem esportista, bonito e cheio de vida. É claro que todas essas viradas do destino, que em um primeiro momento podem parecer ideais, revelam-se um peso acima do que Button pode suportar.
O conto de Fitzgerald tornou-se conhecido depois que a versão cinematográfica foi lançada, em 2008. As semelhanças entre as duas versões param na ideia principal. O resto é completamente diferente – afinal, trata-se de uma adaptação e devemos lembrar ainda que literatura e cinema possuem linguagens diferentes. Se no filme, acompanhamos um Benjamin calmo e abnegado, no livro vemos um ser humano que sente o incômodo de sua situação e de tudo o que ela gera. Resultado: ele demonstra sua insatisfação e desinteresse com o mundo e com as pessoas ao redor, especialmente com a esposa.
É um conto interessante e que nos faz perguntar logo de início, fazendo uso de nossa mentalidade visual: aquele filme enorme foi inspirado em menos de cem páginas? Pois é. A magia da criatividade humana não encontra limites.
No mesmo exemplar, publicado pela editora L&PM, o conto “Bernice corta o cabelo” fala sobre a perda da inocência. Encontramos a jovem Bernice, tímida e recatada, leitora de “Mulherzinhas”, romance de costumes de Louise May Alcott, enfiada na casa da prima, a sedutora e egoísta Marjorie. Por ter um comportamento oposto ao da prima, Bernice se sente deslocada e esquecida. Quando percebe todos os rapazes do baile de olho em Marjorie, ela acha que precisa mudar.
Oportunista, a prima vê a chance de aprontar uma com Bernice, provando que o mundo é dos espertos. Para isso, ela usa o que conhecemos por psicologia reversa. Durante todo o conto, observamos a ilusão de Bernice, a realidade que ela consegue ver porque quer acreditar no que vê e sua submissão aos caprichos de Marjorie. O tempo todo, acompanhamos a queda de um modelo feminino romântico e recatado, tão cultuado pelas gerações anteriores, para uma proposta de sedução e manipulação consciente através de conversas sem conteúdo, mas com aparência de conteúdo, e a manipulação de sentimentos através da beleza. Nesse conto, é possível notar um esboço do que encontramos hoje nas redes sociais, onde o importante é, acima de tudo, parecer ser e parecer ter.
Assim como a vida de Fitzgerald, seus contos falam de ilusões que não podemos domar e esconderijos falsos, lugares que são incapazes de esconder a dor da realidade. Um ataque cardíaco acabaria fulminando um dos escritores mais proeminentes da “geração perdida”. Mas não sem antes ensiná-lo o que ele quis repassar através de sua literatura e que, quase oitenta anos após a sua morte, cabe a nós decifrar nas entrelinhas.
Infos:
Livro: O Curioso Caso de Benjamin Button (seguido de Berenice corta o cabelo)
Tradução de Rodrigo Breunig, Cássia Zano
ISBN-13: 978-85-254-2857-8
Páginas: 96
Edição: agosto de 2016