Estamos acompanhando desde o ano passado o movimento Escola sem partido, um projeto de lei que tem como objetivo “por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar”, o que vem gerando muitas polêmicas, principalmente entre os educadores das ciências humanas e sociais.
Mas como tratar de fatos históricos ou de geografia humana, cuja abordagem pode ser política e/ou religiosa, sem ser classificado como opinativa, formadora de pensamento ideológico e doutrinadora por seus alunos e pais? Ao mesmo tempo, neste ano de 2017, completa-se 20 anos sem o nosso maior expoente da educação, Paulo Freire, que influenciou a pedagogia crítica a nível internacional.
Penso que tais assuntos precisam ser mais abordados por nós, bibliotecários, pois se atinge as escolas, com certeza atingirá as bibliotecas escolares e, quiçá, as bibliotecas universitárias, comunitárias e públicas. Venho acompanhando alguns debates e realizando cursos on-line que abordam o pensamento deste importante educador, o que me leva a concluir que devemos refletir também sobre o nosso universo profissional. Dessa forma, trago para algumas informações que considero relevantes para o debate.
Escola sem partido
A ideia desse movimento no Brasil existe há alguns anos, porém foi em meados de 2016 que se tornou uma polêmica a nível nacional inspirando projetos de lei a nível municipal, estadual e federal, como podemos ver no projeto de lei n.º 867, de 2015, que se encontrava na Câmara dos Deputados.
No site do movimento Escola Sem Partido, se afirma que “basta informar e educar os alunos sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores; basta informar e educar os professores sobre os limites éticos e jurídicos da sua liberdade de ensinar”, sendo que para isso seria colocado um cartaz em cada sala de aula dos seis deveres dos professores.
No site do movimento, onde se pode fazer denúncias enviando mensagens com vídeos e com fotografias, existe o tal cartaz dos deveres do professor, além dos projetos de lei estaduais e municipais. Importante destacar que este movimento apregoa a neutralidade, fazendo oposição aos ideais de Paulo Freire.
Atualmente este projeto encontra-se em tramitação com a PLS nº 193 de 2016, de autoria do Senador Magno Malta (Partido Republicano do Espírito Santo – PR/ES), e está sob consulta pública.
Paulo Freire: vida, obra e método
Como mencionei, o pernambucano Paulo Freire (1921-1997) é até o momento o nosso maior expoente da pedagogia, sendo o patrono da educação brasileira. A vida pessoal desse educador influenciou diretamente em sua carreira e em suas obras. Freire era de família de classe média e morava em Recife. Com o falecimento do seu pai e a crise de 1929, sua família vai morar em Jaboatão dos Guararapes (PE) e passam por dificuldades financeiras.
Assim como muitos brasileiros, Freire teve que parar de estudar. Algum tempo depois ele retoma os estudos e, mais tarde, forma-se em direito pela Faculdade de Recife. Não exerce a profissão, indo trabalhar com famílias carentes no SESI e depois como diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife. Com o tempo, ele vai desenvolvendo seu método de alfabetização e faz duras críticas à educação, onde o professor era o único detentor do conhecimento.
O método de alfabetização freiriano consistia em fazer um levantamento do universo vocabular dos alunos e escolher tais palavras, uma leitura do mundo; criar situações típicas dos alunos, pois quanto mais próximo do contexto deles, mais se aprende; elaborar fichas roteiro e fichas com a decomposição das famílias fonéticas correspondentes aos vocábulos geradores. Com o método, Freire alfabetizou três de cinco alunos em 30 horas no círculo de cultura do Movimento de Cultura Popular no Recife, assim como alfabetizou 300 trabalhadores de cana-de-açúcar em 45 dias, em 1963.
Na época, o educador foi chamado pelo Presidente João Goulart para organizar o Plano Nacional de Alfabetização, porém não assumiu, pois houve o Golpe Militar (1964). Com isso, houve a implantação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), que difere muito do método freiriano. Com o golpe, Freire foi exilado em alguns países e durante este tempo, atuou como consultor em reforma educacional em colônias portuguesas na África.
O educador retornou ao país na década de 1980, indo dar aula na Universidade de Campinas (UNICAMP) e, depois, vai reestruturar a educação em São Paulo. Já na década de 1990, dedicou-se a escrever mais livros e a viajar por vários países fazendo congressos. Entre os diversos livros que escreveu, destacam-se a Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia.
Freire ganhou ao todo 29 títulos de Doutor Honoris Causa de universidades da Europa e América, tornando-se o brasileiro mais homenageado da história e recebeu diversos galardões como o prêmio da UNESCO de Educação para a Paz (1986). Em 1991, foi fundado o Instituto Paulo Freire (IPF). Em 2012, tornou-se patrono da educação brasileira.
Durante todo o curso online gratuito Semana de Paulo Freire, os professores Ivo Dickmann e Ivanio Dickmann (2017) mostraram como na Educação Freiriana há sempre o diálogo entre o educador e o educando, pois para Paulo Freire, o ser humano é um projeto inconcluso; que o conhecimento interfere no mundo e este por sua vez interfere no primeiro, por isso, todo conhecimento é inacabado.
Neste método, tanto o educando aprende com o educador, como o contrário também, sendo assim uma via de mão dupla, havendo um encontro de saberes. Para Freire, o método de educação era conscientizadora, portanto um ato político, onde o aluno e professor vão repensar o seu contexto.
Algumas reflexões sobre esse contexto e a biblioteconomia
Ao realizar uma busca na Internet, encontrei cursos de graduação, entre eles a biblioteconomia, afirmando serem contrários ao PL da Escola Sem Partido. Porém pouco conteúdo que refletisse e relacionasse com a nossa área informacional. Apenas a Biblioo publicou dois textos sobre o assunto: Escola Sem Partido?! (de autoria do professor Cláudio Rodrigues) e 2) Escola Sem Partido, Uma Escola A Favor Da Cultura Da Indiferença (escrito por Moacir Gadotti na Carta Educação)
Também encontrei no site Cabuloso Leitor um debate entre Lucieno Bibliotecário e três educadores que se apresentam veemente contra a Escola Sem Partido (CabulosoCast #174 – Escola sem Partido?). Caso esse projeto de lei fosse aprovado não iria apenas atingir os professores, mas também autores e bibliotecários com a proibição de publicação e da escolha de livros para a leitura.
Recentemente a justiça norte-americana liberou o uso de sete livros, que estavam proibidos no estado do Arizona, para as escolas públicas, entre eles a Pedagogia do oprimido, pois tal ato estaria, conforme a decisão, lesionando os direitos constitucionais dos estudantes do estado, como pode ser visto na reportagem do Opera Mundi.
Durante a minha formação acadêmica, o único contato com Paulo Freire foi a leitura do livro A importância do ato de ler (1989), que mostra a importância do ato de ler em todas as fases da vida, exemplificando com suas experiências. O livro apresenta os tipos de leitura (a da palavra e a do mundo); afirma que a alfabetização deveria partir da própria vivência do alfabetizado e que esse processo está intimamente ligado aos cinco sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato). A obra faz uma oposição entre qualidade e quantidade nas leituras, questionando o excesso de leitura aplicada aos alunos e a falta de memorização. Ao longo de todo o texto se reafirma que a alfabetização é tanto um ato político quanto um ato de conhecimento.
No livro Biblioteca escolar, as autoras Adelaide Ramos e Côrte e Suelena Pinto Bandeira expressam: “Não basta colocar um livro, a qualquer custo e a qualquer tempo, na mão de uma criança sem que haja uma ligação entre o que ela lê e sua história, seu referencial de vida, seu próprio ambiente. É preciso que se crie uma identificação entre ela e a leitura. Por mais tênue que seja, é preciso que haja uma ligação para haver interesse, motivação, a vontade de seguir adiante, para saber aonde vai dar essa estória.” (2011, p.2).
O livro afirma também que o bibliotecário deve atuar na biblioteca escolar como professor em sala de aula. Tal trecho mostra claramente que podemos trazer os ideais de Paulo Freire para biblioteca e, dessa forma, a biblioteca irá atuar de forma transformadora nas vidas do educando/leitor e do educador/bibliotecário.
Portanto, devemos refletir sobre esses dois pensamentos de Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo” e “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: a sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”
Por fim, gostaria de dividir com vocês uma reportagem Jornal Universitário da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) de maio de 1973, onde Paulo Freire mostrou toda a sua admiração e teceu elogios ao bibliotecário Edson Nery (1921-2014).
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