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A devassa no acervo da Fundação Palmares contrariou, além de tudo, a profissão de bibliotecário

Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares. Foto: Reprodução Twitter

Como é de conhecimento geral, há cerca de duas semanas a Fundação Cultural Palmares (FCP), entidade vinculada ao Ministério da Turismo, promoveu uma devassa no acervo da sua biblioteca pelo fato do material bibliográfico, supostamente, fazer “apologia” ao marxismo, à pornografia e ao “banditismo”, entre outras afirmações.

Parte do material foi dividido em grupos como “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos’”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lênin e Stalin” e “material obsoleto”.

Segundo a instituição, os critérios adotados para o desbaste (quando o material é retirado do acervo para avaliação e posterior descarte) foram: 1) “Ordem Regimental”, que engloba os itens que estariam em desacordo com a finalidade da Fundação e 2) “Ordem Legal”, que abarca o material que contrariaria as leis brasileiras”.

Mas apesar de apontar “critérios” que justificariam a devassa no acervo, a professora de História do Livro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Ana Virgínia Pinheiro, garante que não consta na literatura científica qualquer referência a estes critérios de seleção apontados pela FCP que justifique o desbaste realizado no acervo da sua biblioteca.

Assim, atendendo a uma ação judicial, a Justiça decidiu na semana passada que a Fundação não pode promover a doação do material bibliográfico pertencente à instituição, sob pena de multa pessoal ao seu presidente, Sérgio Camargo, no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) pela doação de cada item, além das demais consequências cíveis e criminais decorrentes do descumprimento dessa ordem.

“A despeito da autonomia da Fundação [Palmares], bem como da separação dos Poderes, entendo que a desmobilização de parcela relevante do acervo da mencionada entidade deva passar por uma discussão mais ampla e plural, de acordo com a finalidade da própria Fundação e das comunidades que ela visa proteger e representar, sendo decisiva a participação de múltiplos atores, sob pena de lesão irreparável aos valores das comunidades negras e da sociedade brasileira como um todo”, disse o juiz federal Erik Navarro Wolkart na sua sentença.

De volta ao desbaste no acervo, chama a atenção o fato deste trabalho ter sido desenvolvido pelo Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC), coordenado pelo jornalista Marco Frenette, que aparentemente não conta com nenhum profissional bibliotecário em seus quadros. Ou seja, o CNIRC desenvolveu uma atividade para a qual não estava habilitada nem técnica, nem legalmente.

Por isso, um dos dois ofícios enviados pelo Conselho Regional de Biblioteconomia da Primeira Região (CRB1) à diretoria da Fundação Cultural Palmares diz respeito à fiscalização do exercício profissional da biblioteconomia na instituição, tendo em vista a suposta atuação de não-bibliotecários em atividades restritas a bibliotecários.

“Cabe ressaltar que a Lei n. 4084, de 30 de junho de 1962, reserva apenas a bacharéis em biblioteconomia, devidamente registrados, atividades como a direção de bibliotecas e a organização de serviços de documentação, tarefas que devem ser exercidas sob a luz do Código de Ética da profissão, o qual repudia qualquer forma de censura”, diz uma nota à imprensa do CRB1.

Nesta nota divulgada à imprensa na semana passada, o CRB1 elenca as ações tomadas pela a autarquia a partir da constatação por veículos de comunicação e por declarações de dirigentes da Fundação Cultural Palmares acerca do desbaste em seu acervo. Leia abaixo a integra da nota:

Considerando o Estado Democrático de Direito e os direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;

Considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidades em 1948;

Considerando o estabelecido na Lei n. 4084/1962, que regulamenta a profissão de bibliotecário e estabelece atividades exclusivas à profissão;

Considerando o Código de Ética e Deontologia do Bibliotecário Brasileiro, estabelecido pela Resolução CFB n. 207/2018, que, no parágrafo único de seu artigo segundo, repudia toda as formas de censura e ingerência política;

Considerando o cunho humanista da profissão de bibliotecário, tal qual expresso no juramento da profissão, estabelecido pela Resolução CFB n. 6/1966;

Considerando a obliteração de espaços físicos e extinção de bibliotecas sob responsabilidade do poder público;

Considerando a garantia do direito ao acesso à informação ser um dos pilares da Biblioteconomia contemporânea;

O Conselho Regional de Biblioteconomia – 1. Região (CRB-1), diante da sua atribuição legal de fiscalizar o exercício da profissão de bibliotecário na região Centro-Oeste, vem por meio desta nota destacar as ações tomadas pelo CRB1 a partir da constatação por veículos de comunicação e por declarações de dirigente da Fundação Cultural Palmares, sediada no Distrito Federal, acerca do desfazimento arbitrário, de caráter ideológico, do acervo bibliográfico daquela instituição.

No dia 8 de junho de 2021, enviamos à Fundação dois ofícios. O primeiro com um convite aos dirigentes para um debate acerca da situação e, principalmente, conhecer o destino do acervo; o segundo ofício relacionava-se à fiscalização do exercício profissional da Biblioteconomia na instituição, tendo em vista a suposta atuação de não-bibliotecários em atividades restritas a bibliotecários. O CRB-1 não obteve resposta até a presente data, ainda que se frise o prazo de 15 dias a contar do recebimento de nossas notificações.

Cabe ressaltar que a Lei n. 4084, de 30 de junho de 1962, reserva apenas a bacharéis em Biblioteconomia, devidamente registrados, atividades como a direção de bibliotecas e a organização de serviços de documentação, tarefas que devem ser exercidas sob a luz do Código de Ética da profissão, o qual repudia qualquer forma de censura.

A escalada de declarações de caráter ideológico por parte de dirigente da Fundação Cultural Palmares em relação à exclusão de obras de um acervo bibliográfico bastante caro à memória nacional e à história do povo brasileiro, a incerteza do destino dos materiais retirados e a flagrante indisposição da Fundação em atender as nossas tentativas de contato fizeram com que o CRB-1, em conjunto com o Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB), ingressasse com uma ação no Ministério Público a fim de que a situação possa ter também um encaminhamento jurídico.

Finalmente, no dia 17 de junho de 2021, a convite da deputada federal Fernanda Melchionna, presidente da Frente Parlamentar Mista do Livro, Leitura e Escrita, o CRB-1 e o CFB participaram de uma reunião com parlamentares da bancada negra e também lideranças da sociedade civil a fim de debater possíveis ações relacionadas ao caso Palmares. Na ocasião, o CRB-1 relatou todas as medidas que tomamos.

Há ainda de se destacar que, nos últimos anos, como nunca antes, observa-se uma verdadeira onda de extinção de bibliotecas administradas pelo poder público. Ao contrário de serem fortalecidas com orçamento adequado, não são raras as notícias de bibliotecas que perderam espaço físico, por interesses e caprichos alheios ao bem comum, e paulatinamente têm diminuído a capacidade de fazer frente às demandas que lhes chegam. Trata-se de uma situação aterradora diante de toda a desigualdade social e os desafios educacionais que se impõem sobre o Brasil.

Neste contexto de vulnerabilidade, reafirmamos a relevância do papel do Conselho Regional de Biblioteconomia – 1. Região, integrante do sistema CFB-CRBs, como instrumento de fiscalização e valorização da atividade bibliotecária. Isto passa por verificar o aparente exercício ilegal da profissão, um verdadeiro prejuízo para aqueles que utilizam os serviços prestados pela Biblioteconomia e, notadamente, para toda a sociedade brasileira. É preciso, mais uma vez, destacar o rechaço que a atividade bibliotecária estabelece com toda forma de censura e ingerência política.

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