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Uma odisseia que não é de homero, nem de joyce

Estou oco. Querendo escrever. E não consigo. Este texto, tenha certeza, não está sendo escrito, mas espremido. É porque sou obrigado a escrever. Quero-o mais que tudo. Quase como uma afronta é colocar os olhos na brancura do papel (que fica mais branco ainda quando é o papel eletrônico da tela do computador) e se obrigar a dizer algo. Por que tem que ser assim, sem uma prévia organização? Sei do que quero falar, mas quando me organizo, a coisa não avança.

Não sei onde li ou ouvi isso, mas tem me ajudado: quando você não souber ou sentir-se oco, comece então falando sobre essa sensação. A impossibilidade vira tema e, talvez, as coisas se deixarão entrever. Espero que sim. É o que espero. Sempre é bom ter esperança em matéria de escrita. Não que o que eu tenha para dizer seja lá essencial para o mundo. É uma fuga minha, um vômito, uma afronta com o finito que a gente é.

Eu tinha planejado falar sobre o cotidiano. Sobre como ele se torna o grande personagem da literatura desde o romance moderno. De como as ações mais pífias e da ordem da desimportância passaram a ser narradas como os grandes feitos de antigamente. O cotidiano é o próprio personagem da modernidade, o nosso Ulisses. Não é que as ações grandiosas estão escassas ou perderam a graça.

 É que se descobriu que basta estar vivo para ser lançado numa odisseia. As coisas mais banais que fazemos entre o nascer e o pôr do sol não são experiências irrelevantes. Pisar neste solo para uns pode ser um estágio para o inferno. Os heróis de hoje são anônimos. Muitos o serão. Nunca terão nem quinze minutos de fama na mídia. E, no entanto, têm muito a nos dizer de uma viagem, de mil batalhas, de estragos, de ganhos, de desatinos. Se as epopeias são velhas enquanto formas narrativas, elas persistem enquanto temas. Cada ser humano constrói sua epopeia, navegando num mar turbulento do irracionalismo, tentando se compreender, talvez, mais do que ser compreendido. E isso não é digno de uma grande narrativa? Essa solidão que domina a gente por mais que tenha gente do nosso lado (a gente nunca é gente por completo), essa catarata de perguntas sobre por que existimos (para quê), essa dúvida que nos assola sobre amar ou não, deixar ser amado, se permitir, aceitar que os outros sejam, esse mundo feroz que nos vigia, nos pune simplesmente porque ousamos ser; tudo isso não é digno de uma narrativa? A própria angústia que cito ao querer escrever e não conseguir, e ter que despistar a simples ideia de fracasso, forçando a mente a fazer jorrar pelo papel a lama, o lodo, a sujeira, a poluição verbal, para depois fazer brotar água (se ela vier); não é isso digno de narrativa?

Vai ver por isso boa parte dos romances de nosso tempo são metaficcionais, autorreferentes, e, assim, personagens e narradores desejam escrever livros, escrevem livros, vivem mergulhados no mundo da ficção que fala de si mesma. Talvez, não é afirmação, essa enxurrada de ficção atual seja mesmo fricção.

Entretanto, eu quero mesmo é falar de vida real, não inventada. Quero dizer que você e eu somos Ulisses e a vidinha mais ordinária assume agora a grandeza de uma Odisseia. Não é preciso querer ser grande para sê-lo. É isso o segredo da literatura?

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