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Resenha quase crítica de “Comunidades, algoritmos e ativismo digitais”

A biblioteconomia preta pode ser confundida com uma discussão de representatividade, uma questão de ativistas pretas que cobram reparação histórica ou um barulho feito por uma minoria étnica que reivindica espaço dentro das ciências da informação. Essa incompreensão da desigualdade étnica racial e suas implicações dentro da área é fruto de uma incompreensão dos efeitos deletérios do racismo.

Descendentes de reis e rainhas, berço da humanidade, da civilização, da matemática, filosofia, artes, astronomia, física, química, medicina, organização política, e tudo que há de bom no mundo (parafraseando as Meninas Superpoderosas); a população preta foi reduzida a estilhaços devido a um processo contínuo de racismo sistemático que dá base a todo a civilização chamada “ocidental”. Pois é, o mundo ocidental tem base e raízes no racismo e dele se aproveita para continuar sua dominação.

Tudo o que está sendo difundido como inovação, na verdade é apropriação. Assim nos lembra Emicida no prefácio do livro “Comunidades, algoritmos e ativismo digitais: olhares afrodiaspóricos”, organizado por Tarcízio Silva e publicado pela LiteraRua. Emicida também nos recorda do eurocentrismo: “Tudo o que sabemos (ou o que o hemisfério norte e seu confiante eurocentrismo julga saber), equivale só a 4% do universo, o resto é matéria e energia escura […]”.

Nesse ponto é importante enaltecer a biblioteconomia preta que tem apresentado outras abordagens além da eurocêntrica, branca, ocidental, classista, heterossexual. O que a gente sabe e toma como pressupostos na nossa ciência ainda é muito pouco de todo o universo já publicado. Sobre essa questão, discuti junto com Franci Shakur (Francilene Cardoso) no capítulo “Biblioteconomia e questão racial: notas para pensar uma biblioteconomia social e etnicamente diversa” do livro “Biblioteconomia social: epistemologia transgressora para o Século XXI” publicado pela Abecin.

A obra organizada por Tarcízio Silva traz importantes discussões sobre o racismo na tecnologia que ainda não estão explicitadas. Ruha Benjamin aborda o uso de big data para discriminação algorítmica, o uso do hot spoting médico para identificar populações clinicamente vulneráveis que reproduz formas de estigmas classificatórios.

Esse capítulo deixa evidente que os profissionais precisam aprender sobre racialidades, porque são eles que irão gerenciar as políticas públicas, defendê-las, direcionar recursos, pesquisas, legitimar estudos. Se essas pessoas são direcionadas por vieses racistas, toda sua prática profissional irá invisibilizar a raça e/ou legitimar o racismo e sustentar sua manutenção/continuidade. Não há neutralidade, ou você é direcionado para a manutenção ou extirpação do racismo.

Luiz Valério P. Trindade desconstrói o mito da internet como ambiente “colour-blind”, “ou seja um espaço onde as diferenças raciais seriam irrelevantes.” O autor aponta que a raça é importante no ciberespaço, porque o maior capital econômico e cultural dos brancos lhes permite maior acesso e imposição da sua visão de mundo (p. 30). Fato comprovado pela “Síntese de indicadores sociais” do IBGE que demonstrou que pretos e pardos tinham maiores restrições à internet.

Trindade demonstra que os espaços de privilégio, progresso e modernidade são considerados legitimamente brancos, enquanto os associados com atraso e inferioridade são associados aos pretos. Como um fio que segue, Niousha Roshani continua o debate do discurso de ódio na internet, este conduz ao isolamento e silenciamento de suas vítimas e muitas vezes à internalização da mensagem de subordinação.

A falta de culpabilização dos agressores gera desconfiança no Estado e nos mecanismos repressores ao racismo. Importante recordar que o racismo é crime previsto na Constituição Federal e em diversas legislações, mas de pouca aplicação. Racistas são condecorados na sociedade brasileira. Exemplo disso é a quantidade de seguidores em redes sociais de pessoas que fizeram atos racistas publicamente como participantes do Big Brother Brasil.

O “Black Twitter” também foi analisado na obra, no capítulo escrito por André Brock. Utilizando a análise crítica tecnocultural do discurso, o autor faz importantes análises sobre o uso de tecnologias. Este definiu o “Black Twitter” como um fenômeno de afroamericanos utilizando o Twitter em números superiores à sua representação demográfica. O autor afirma também que “as TICs não são artefatos neutros fora da sociedade; elas são moldadas pelo contexto sociocultural de seu design e uso”.

Outra questão importante para a comunidade preta, principalmente as mulheres é discutida por Larisse Louise Pontes Gomes ao analisar a transição capilar no ambiente virtual. A autora traz relatos de mulheres que encontraram nos grupos online apoio para o enfrentamento da exotização do corpo preto.

Trazendo o exemplo de Sarah Baartman, a Vênus Negra, a autora apresenta práticas racismo simbólico que levam a auto ódio de mulheres às suas características fenotípicas. Assim como muitas mulheres negras eu iniciei o alisamento do meu cabelo na infância e somente recentemente na idade adulta passei pela transição capilar por três vezes. O texto aponta que “[…] o alisamento ou outras técnicas que descaracterizam o cabelo provocam a expectativa de desvencilhar de estereótipos associados a suas características negras”.

Jobson Francisco da Silva Júnior, o bibliotecário do livro, escreve junto com Ronaldo Ferreira de Araújo um texto sobre blackfishing e a transformação transracial monetizada. Neste capítulo eu esperei muito que ele mencionasse a biblioteconomia preta brasileira, os livros produzidos pela Nyota, o Encontro Nacional de Bibliotecários Negros e Antirracistas, mas saí frustrada. Mas recuperada dessa frustração, pude aprender sobre esse ato de fingir ser negro quando na verdade é branco.

Esse tipo de ato tem sido realizado por influenciadores digitais que se apropriam de alguns fenótipos socialmente aceitáveis da população negra como formato dos lábios, tranças e cor da pele. Os autores citam como exemplo a cantora Ariana Grande, mas poderia ser usado como exemplo a Kim Kardashian. É importante assinalar que há uma tentativa histórica de colocar brancos no lugar de pretos quando é conveniente.

Cheik Anta Diop aponta que existe “um procedimento nazista que consiste em explicar qualquer civilização africana pela atividade de uma raça branca ou seus descendentes, mesmo que tenhamos que decretar que “pretos brancos” ou “brancos vermelho escuro” existem […][1]

O capítulo do organizador Tarcízio Silva traz importantes questionamentos da plataformização das redes sociais e dos algoritmos. “Os sistemas algorítmicos tomam decisões por nós e sobre nós com frequência cada vez maior. […] Decisões que eram normalmente baseadas em reflexão humana agora são feitas automaticamente” (p. 123).

Em complemento, o autor ainda analisa que os algoritmos são idealizados por pessoas, e pessoas incorporam seus vieses inconscientes nos algoritmos. Novamente, a obra recorda a necessidade de discutir impossibilidade de existência da neutralidade e que devemos estar vigilantes. O autor traz uma importante análise de micro agressões e faz uma taxonomia de casos de racismo algorítmico mapeados pelo autor.

Em sequência, Fernanda Carrera discute o racismo e sexismo nos bancos de imagens digitais. Neste capítulo, os bibliotecários têm que ficar muito atentos à indexação em bancos de imagens e como elas criam imagens distorcidas. A autora informa que “o fotógrafo cria tags (etiquetas de demarcação) para cada imagem, direcionando a interpretação do que consta ali e a associação a palavra-chave de busca que seriam apropriadas.

No entanto, embora esse primeiro passo de tagueamento seja responsabilidade do fotógrafo, o banco revisa todas as imagens e suas tags antes de colocá-las à disposição”. A partir da demonstração da autora, é possível compreender que a distorção racista de imagens não se trata de uma ação de descritores equivocados, mas de uma deliberada ação racista de gestores de bancos de imagens.

Abeda Birhane traz uma importante discussão da colonização algorítmica do continente africano que pode ser exemplificada pelo mapa de densidade populacional que está sendo construído sem a participação da população do continente. Também discute sobre o uso acrítico de tecnologias digitais como pressuposto inequívoco de desenvolvimento. Neste capítulo também são apresentados os equivalentes africanos do Vale do Silício, como o “Vale do Sheba” em Addis Abeba, na Etiópia, “Vale de Yabacon” em Lagos, Nigéria, e a “Savana do Silício”, em Nairóbi.

Também discute o uso de tecnologias para tomada de decisões na esfera social “ao entregarmos a tomada de decisões sobre questões sociais a sistemas automatizados desenvolvidos por empresas com fins lucrativos, não apenas estamos permitindo que nossas preocupações sociais sejam ditadas por incentivos corporativos (lucro), mas também estamos entregando questões morais para o mundo corporativo”.

Serge Katembera discute o ativismo digital no continente africano, trazendo nomes e ações de web-ativistas. Thiane Neves Barros traz um resgate da luta das mulheres pretas para se emancipar do racismo e das violências patriarcais. A autora resgata nomes, histórias e ações com base no feminismo preto digital. Taís Oliveira e Dulcilei Lima também trazem a discussão sobre mulheridades pretas e tecnologia trazendo a discussão sobre afroempreendedorismo.

Comparação entre o sistema de divinação (ato de buscar o conhecimento de coisas futuras ou ocultas) de Ifá e a ciência da computação é feito por Femi Ololabe Alamu, Halleluyah Aworinde e Walter Isharufe. Os autores fazem comparações entre o sistema binário e a necessidade de um operador utilizado nos dois sistemas. E por fim Seyram Avle analisa as performances em tecnologia dos retornantes a Gana. Os retornantes trazem experiências e conhecimentos que são valorizados financeiramente e que indicam uma “mudança na sociedade em direção a uma nova elite empresarial baseada principalmente em áreas urbanas.”

A tecnologia não é neutra, assim como nada na sociedade. A tecnologia é racista, assim como tudo que há na sociedade. Com esses dois pressupostos já devíamos estar mais atentos ao desenvolvimento e uso de tecnologias, mas infelizmente não estamos. Estamos utilizando as plataformas que capturam nossos dados, dirigem nossas decisões, nos categorizam, reproduzem o racismo da sociedade, sem nos dar conta que o racismo presente na sociedade é reproduzido na tecnologia.

O racismo é uma árvore com raízes profundas que precisa ser arrancada e seus frutos queimados para que não se reproduzam. O livro organizado por Tarcízio Silva precisa ser lido e discutido por bibliotecários. O blog InspirAda na Computação lançou um clube da leitura no dia 06/04, e estão a algumas semanas analisando este livro.

Os vídeos do clube estão disponíveis no canal do Youtube. Também é possível participar de canal no telegram, e também de outras plataformas de discussão disponibilizadas pelo blog. O livro está disponível para download gratuito no site da editora, e os que desejarem podem adquirir a versão física, e é uma ação antirracista as pessoas brancas doarem o exemplar físico para as pessoas pretas.

Sobre o livro

Título: “Comunidades, algoritmos e ativismo digitais: olhares afrodiaspóricos”

Organizador: Tarcizio Silva

Editora: LiteraRUA

Ano: 2020

 

 

 

 

[1] DIOP, Cheik Anta. Origem africana da civilização: mito ou realidade. Paris: Présence Africaine, 1967. p. 294

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