“A democracia não é um problema de representação, mas de participação estética e discursiva na polis.” [Cezar Migliorin e Isaac Pipano]
1.
É quase o sobressalto que nos desperta quando soa o primeiro grito. A primeira personagem a surgir com nitidez narrativa, na pele de Grace Passô, fora acordada pela chamada do telefone, que vibra forte com insistência. Essa primeira personagem acorda e atende ao telefone, e logo parece um tanto surpresa com a notícia que recebe: “Como assim!”. Não ficamos sabendo nesse momento do que de fato se trata, mas a personagem que há pouco despertara busca confirmar a notícia: abre um notebook ali mesmo, com o telefone e ainda deitada, e a luz que então ilumina seu rosto é a confirmação da novidade surpreendente. “O xamã?”, pergunta por fim. É quando ela se levanta, circula atônita no espaço de sua sala, vai até a janela que abre afobada, e solta com força o primeiro grito.
É esse primeiro grito que quase nos sobressalta. Mas, ao abrir a janela para lançar seu grito, a personagem que sonhava e acordara possibilita que uma multidão de sons entre e ocupe o espaço privado de sua sala, sons que povoam as ruas à noite e que permaneciam no “lá fora”. Da altura de seu apartamento, essa primeira personagem lança seu grito, que ecoa na noite e se junta a latidos. Da janela observamos então, com os olhos da personagem que sonhava, uma figura humana que se desloca no vazio povoado das ruas, estaca e se firma em seu cajado: é quando essa figura do “lá fora” lança, de baixo para cima, seu grito igualmente lancinante.
O hino nacional desta República Federativa já propusera em sua letra: “Brasil, um sonho intenso”. E a personagem que no filme lança o grito inicial, e quase nos sobressalta, não o dissemos ainda, parecia justamente estar imersa em “sonho intenso” quando o telefone insistente lhe acordou. Ao menos assim nos parece, diante da primeira sequência que acompanhamos: imagem borrada, uma figura sem contornos, o som de um batuque com vozes e, por trás de tudo isso, uma chama a crepitar em alto e bom som (que parece aquecer a imagem que acompanhamos). Da indefinição em que se dilui a figura presente nessa sequência onírica, ouvimos um sussurro quase indistinto: “Colonizadora”. É quando o telefone toca com insistência, e a personagem que sonhava no sofá escapa de seu “sonho intenso”.
2.
O cinema negro é a disputa por uma estética própria, o esforço de confrontar uma outra estética cinematográfica brasileira: a que promove o esquecimento, essa que teima em tentar apagar, podar ou mascarar qualquer narrativa que não represente o reflexo do branco nestas terras. O cinema negro é a rebeldia que parte de sujeitos incomodados com toda a história que lhes foi tirada ou escondida, que não poderiam abraçar outro movimento que não o de gerar incômodo em quem tão bem se acomodou na inércia e nos lugares comuns em que se favorecem. República, de Grace Passô, é o cinema negro brasileiro, e o cinema negro brasileiro é a sua República.
Uma obra visceral e crua que se debruça sobre a vivência de corpos negros perante a história brasileira. Uma estética que mistura elementos do real ao que há de místico nos sonhos e pesadelos, esta que propomos chamar de “estética do incômodo”, estendendo a realidade ao toque mais antigo das feridas de um povo. O sonho é um desejo íntimo dormente, pode vir desfocado como nos primeiros minutos da trama, também pode revelar-se enquanto se estendem os diálogos nas conversas ao telefone, ou pode transformar-se em um pesadelo, assim como no confronto com aquela que esteve no “lá fora”.
Envoltos em uma relação de som, silêncio e solidão, os diálogos servem para nos apresentar as reações das personagens diante dos “sonhos” presentes na narrativa. A notícia recebida pela personagem que sonhava — “O Brasil é um sonho” — constata um Apocalipse para esta nação que irá desaparecer no momento em que a dona deste sonho acordar. O medo que deveria acometer os personagens diante de um iminente fim é subvertido nos diálogos, gritos de alívio, alegria e extravaso. O fim de tudo é o ambicionado descanso para corpos exaustos de tanto travar lutas brutais através da história, uma exaustão tão bem representada nos trejeitos e na fala cansada da personagem que sonhava, que logo mais se senta em uma poltrona, enquanto desperta da ficção que vai sendo sonhada, em um exercício de metalinguagem.
A personagem que sonhava, para além de desejar ardentemente que este Brasil seja uma ilusão, o imagina e o recria como tal. A maioria absoluta das tomadas do filme percorrem o interior de um apartamento, e é possível sentir o quão indesejado é este país do “lá fora”. Percebemos este Brasil através dos diálogos, dos olhos cansados, marejados e atônitos. Nós não temos certeza de suas imagens, mas sabemos que este não é um bom lugar para os que são como as personagens que atravessam a trama: a que sonha deitada no sofá e a outra, que trafega no “lá fora”, na não existência de uma rua escura.
O filme parece querer que enxerguemos e imaginemos sua narrativa também através dos olhos que aparecem nas imagens filmadas por uma mesma câmera, sejam eles quais forem: são as imagens do confronto, à procura pelo incômodo. Os da personagem que sonhava estão sempre marejados, sugerindo a sensação de um descanso próximo. Ao caminhar pelo apartamento, a câmera perde sua nitidez e só a retoma para nos mostrar um segundo olhar, emoldurado em uma fotografia. Eles são estáticos, olham firmes e diretos para os nossos, que tão atentamente continuamos acompanhando o sonho. E, por último, os olhos da figura do “lá fora”, também encarnada por Grace Passô, revela olhos exaustos que gritam uma não existência, para que saibam de tamanho esquecimento — “O seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu!”.
É nesta narrativa quase afrofuturista em sua distopia, que pulsa intensamente a busca contínua por estéticas negro-brasileiras, a busca por incômodos diversos, qualquer um que movimente e remova do lugar as estruturas dolorosas de apagamento em que ainda permanece envolto este país, que nunca foi um sonho.
3.
A alegoria apresentada em República nos demonstra um fenômeno que podemos considerar ser a gênese do Estado brasileiro: nosso mito fundador. Existem ali duas realidades que dividem o mesmo espaço territorial ao qual denominamos Brasil. Essa representação faz, curiosamente, lembrar duas referências. A primeira é Lima Barreto, sua obra e vida. Vendo o filme, projetamos uma constante com-fabulação: “E se Lima pudesse ter visto isso?”. A segunda referência é um princípio matemático: “duas retas paralelas se encontram no infinito”.
Muito do que entendemos por Brasil é o retrato forjado de um saber oficial, é a elaboração calculada de uma imagem de país como alguns gostariam que fosse. Ser oficial, nesse caso, é inversamente proporcional a ser real. Há um Brasil sonhado pelos grandes, bem elaborado, redigido e pincelado com óleo sobre tela, mediante as mais preciosas estéticas herdadas do velho mundo. Em seu paralelo, desenvolve-se outro Brasil que, de tão destoante daquele, nunca existiu. Nossa trajetória como país — dois coexistindo em um mesmo território — é a junção dos que vivem uma aspiração, um sonho; e daqueles que vivem no “lá fora”. Somos, então, duas retas paralelas.
O filme atualiza essa imagem ao se utilizar do ambiente do apartamento e o da rua. Aquele olhar partindo de cima pode facilmente nos remeter aos brasileiros batedores de panelas que, do alto de seus prédios, descobriram que o modelo político em que vivemos pode não ser mais favorável a eles. De tão impactados com o descontrole de suas vidas, saber que seu país é apenas um sonho e que pode a qualquer momento acabar é no mínimo reconfortante. A República Federativa do Brasil foi a maior ambição alcançada pelos revolucionários que sonhavam.
Na mesma medida, quem olha de baixo nunca viveu esse sonho. Aqui retomamos a primeira referência. Afonso Henriques de Lima Barreto é um personagem de nossa história que produziu alguns dos relatos mais importantes para a compreensão de nossa trajetória como Brasís. Foi um menino negro nascido livre em um país que ainda possuía a escravidão como instituição legal; tornou-se um homem negro cativo da lógica social de seu próprio país. Ele já era uma criança de 8 anos de idade quando a Lei Áurea foi assinada, e no ano seguinte pôde observar a mudança de ares para o Brasil República. Sobre essa ocasião, relata Lima que “da tal história da proclamação da República só me lembro que as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabinas e meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha.”
Dentro da República, Lima relata que experimentou não só os levantes, revoltas e motins que eram, para ele, as violências políticas das “mais inocentes” — mas principalmente a “ação dos plutocratas, da sua influência seguida, constante, diurna e noturna, sobre as leis e sobre os governantes, em prol do seu insaciável enriquecimento”.[i] Foi também nesse Brasil em que o escritor foi internado como indigente em um hospital de alienados devido a problemas com álcool, quando era amanuense do Estado, remunerado como funcionário público.
Lima Barreto é exatamente o ponto em que as duas retas paralelas se encontram. É ele quem toca a insistente campainha atrapalhando nosso descanso e nos acorda de nossos sonhos para nos dizer que o seu Brasil “nunca existiu.” É a personagem do “lá fora” e é também a “que sonhava”, que caminha entre as duas retas paralelas e as observa se chocarem. É a representação dos dois Brasís encarando-se entre o olhar marejado e o fogo inicial tomando forma.
4.
Há algo de barroco na estrutura de República. A vida é sonho, aliás, é título de uma das mais conhecidas peças do teatro barroco seiscentista. A certa altura da narrativa, a fábula que vai sendo sonhada escapa da moldura ficcional, e passamos a acompanhar como que os bastidores da produção. Depois de receber a notícia e de lançar seu grito pela janela, a personagem que sonhava liga para sua mãe e exaltada lhe transmite a novidade surpreendente: “O Brasil é um sonho… o Brasil não existe. Alguém tá sonhando Brasil. A qualquer hora, a pessoa que está sonhando pode acordar”. A personagem que sonhava desliga então o telefone, sussurra um “Graças a Deus”, bate no próprio rosto como a verificar sua existência, e sentada estaca reflexiva e cabisbaixa. É quando ela olha diretamente para a câmera, e a fotógrafa que está filmando comenta: “Foi bem difícil o foco…”.
O registro ficcional se rompe: atriz e cinegrafista conversam, indicam dificuldades, demonstram insatisfação. Combinam de filmar novamente, mas antes será momento de fumar um cigarro, de beber uma água. Estamos fora do sonho ficcional que até há pouco acompanháramos, estamos nos bastidores de República. Na mão da cinegrafista, a câmera continua a registrar os percursos pelo interior do apartamento, e para, enfim, diante de um olhar estático, emoldurado por uma fotografia. Enquanto a câmera ali permanece, escutamos a água que parece ir enchendo um copo. E logo depois ouvimos uma campainha, que em sua insistência evoca os sinais sonoros que no teatro anunciam o início do espetáculo. Nesse momento, câmera ainda fixada diante dos olhos estáticos da fotografia, ouvimos a frase que irá se repetir: “O seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu”!
A estrutura do filme se mostra francamente vertiginosa nesse passo, à maneira de “um sonho intenso”. Desses que parecem evidenciar a erupção, depois de longo período de apagamento, daquelas figuras para quem o sonho de uma república “nunca existiu”. A fábula ficcional, que pausara um momento para um cigarro e para um copo d’água, retorna ao espaço da ficção sem mais conter a convivência com as existências do “lá fora”: “O seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu”. Como a romper com o artificioso sonho oficial que outro hino, o da Proclamação da República, fabulava em absurdo: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País…”. A personagem que sonhava certamente se aconchegara na ilusão deste absurdo, e por isso talvez ouvira em seu sonho inicial: “Colonizadora!”
*Este artigo foi escrito conjuntamente por Luiza Marina Maia, Mateus Ferreira Maia e Marcelo Magalhães. Marina e Mateus cursam Letras na Universidade Federal do Ceará, e compõem o Grupo de Estudos LiteraCine, vinculado ao Projeto de Extensão de mesmo nome, coordenado por Marcelo, professor do Departamento de Literatura, da mesma Universidade.
[i] Barreto, Lima. “São Paulo e os estrangeiros I”. In. _____. Antologia de artigos, cartas e crônicas sobre trabalhadores. Belo Horizonte: Viva Voz, 2012, pp. 41-44.
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