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“Recordar é viver”

[…] Aquele grito assim inaudível na memória – no passado,
no presente em todos os tempos […] nem é tão alto, mas vivo para sempre

Aproveitando o sucesso do filme “Flores Raras”, produção do cinema nacional, faço a leitura e análise do conto “Na vila”* da escritora e uma das maiores poetizas do século XX, Elizabeth Bishop, premiada com o Pulitzer de Poesia de 1956, dentre outros prêmios literários.

Sem a pretensão de abordarmos sua vida objetivamente narrada naquele filme citado,  podemos comentar algumas possibilidades de compreensão do conto e do próprio processo de pensar questões universais da vida humana sob o ponto de vista de uma “leitura” da recordação de sua infância despertada pela atmosfera provinciana da cidade brasileira de Petrópolis em 1953.

Mesmo que os críticos literários possam comentar sobre uma possível idealização, neste conto, de sua infância em Great Village, na Nova Escócia (Canadá). Porém, prefiro me ater ao seu imaginário e nas sensações que a leitura da obra nos evoca.  E possíveis fragmentos de recordação entrelaçadas em paisagens.

A memória projetada de sua infância e um determinado espaço de uma “Vila’ não é, senão, uma linha tênue que torna os fatos contados tão cheios de realidade que submergimos, por um segundo, como mergulhadores num oceano de sensações que faz o “tempo” estacionar por alguns instantes.  Leiam o seguinte trecho inicial:

Um grito, o eco de um grito fica suspenso no ar, naquela vila da Nova Escócia. Ninguém escuta; e o grito permanece suspenso lá, para sempre. É uma leve mancha naquele céu azul que os viajantes comparam ao da Suíça, que é escuro demais. Um azul tão forte que parece um pouco que parece um pouco mais escuro na linha do horizonte – ou seria aquele azul que a gente vê na borda dos olhos de algumas pessoas? A cor de uma nuvem de flores desabrochando nas árvores, o tom violeta dos campos. Alguma coisa escurecendo sobre as matas e as águas, e também no céu. Aquele grito assim inaudível na memória – no passado, no presente em todos os tempos. Talvez não fosse tão alto assim. Ele simplesmente veio para ficar, ficar para sempre – nem é tão alto, mas vivo para sempre. O tom daquele grito na escuridão seria o tom da minha vila. Bata de leve com uma varinha no sino da igreja e você vai ouvir esse som.

A lembrança do grito de sua mãe (desequilibrada emocionalmente na realidade) como uma comparação metafórica com o som evocado e sugerido com a frase imperativa bata de leve com uma varinha no sino da igreja e você vai ouvir esse som, provoca o leitor a ter a percepção correta do som no imaginário pela protagonista (uma criança) como uma possível percepção de um narrador-personagem que presencia tudo a sua volta e nos conta uma história.

Essa frase imperativa de apelo ao leitor a entender a possível a dimensão da “dor do narrador (escritora) é recurso muito interessante na aproximação com os leitores e, faz diálogo intertextual, entre outros, com o poeta brasileiro Manuel Bandeira, que também faz chamamento ao leitor para sua dor, no poema Desencanto, escrito na cidade de Teresópolis em 1912,  publicado em  seu primeiro livro, Cinza das Horas, em 1917.

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto
.

 

Um “Plim” marcado, textualmente, em dois momentos da história (no início e no final) nos lembra dos recursos de escrita de alguns autores brasileiros como, por exemplo, Clarice Lispector na prosa, no romance Hora da Estrela, livro publicado em 1977. Lembrar-se do enunciado “explosão”, também marcado, textualmente em vários momentos da estória, uma forma do narrador chamar atenção para momentos que a protagonista vai se afirmando e realizando uma mudança conceitual a partir do conhecimento de si mesma.

“Um grito inaudível na memória” faz o narrador indicar o fio que criará a sequencia da história.  As personagens deste conto são, de fato, pertencentes à família e às pessoas que convivera na infância, em destaque para sua mãe e para a criança (o olhar do narrador sob o ponto de vista infantil). As outras personagens são: avô e as duas tias da criança; os avôs paternos em Boston, a costureira, o ferreiro, e os vizinhos além da vaca (Nely) com quem tinha uma amizade.

Porém a memória a que refere é mais um ato de recordação (sentir de novo passando pelo “coração”) do que uma rememoração (lembrar-se de novo). A lembrança das paisagens de sua infância torna o conto em aproximação espacial com a paisagem provinciana brasileira da cidade de Petrópolis em 1953.

A Nova Escócia de 1910, no conto, assemelhava-se, em verossimilhança, a Petrópolis de 1953 de maneira particularizada, cidade na qual a escritora vivia com sua companheira e arquiteta, Lota de Macedo soares, idealizadora e supervisora do projeto de construção do Parque do Flamengo. De alguma maneira a escritora “sentiu no coração” novamente uma lembrança.

As paisagens gerais em uma descrição da cidade referem-se como, por exemplo, a existência de uma igreja presbiteriana “deslumbrante”, “muito alta” e “fechada”. Neste caso sabemos da existência de uma igreja católica, mais precisamente, da Catedral de São Pedro de Alcântara, imponente em seu estilo neogótico francês do século XIII, com características parecidas ao que relata pela história.

Se uma paisagem evocou a memória no sentido da recordação, possa ser um fato certo, o mais importante é a leitura de “Na Vila” nos fazer submergir a um espaço-tempo repleto de alegria, cor, sabores e sons. Sons estes que mesmo “inaudíveis” estejam lá e que tenhamos consciência de sua existência para além de possíveis “traumas” ou “dores” pessoais do escritor, mas que consista na descoberta da natureza universal do ser humano em qualquer paisagem.

O final da história nos faz refletir sobre o passar do tempo e nossa condição humana perante isso, nossa sensação de fragilidade perante a morte e a possibilidade de uma imortalidade ou eternidade das nossas “vozes” nos “fragmentos” ou lembranças que deixamos em objetos, ações entre outras coisas.

Mas não reproduzo, aqui, o trecho final pelo motivo de não “estragar a surpresa” ou de direcionar demais a interpretação que é muito pessoal. Deste modo convido os leitores a se deliciarem com a leitura deste conto de Elizabeth Bishop e deixarem “passar novamente por seus “corações” as memórias das paisagens familiares.

* Faço uso da primeira tradução para língua portuguesa (pasmem! ) feita em 2009  pela EDUFBA uma editora universitária a partir de um trabalho de um grupo de Pesquisa Tradução, Processo e Criação e Mídias Sonoras (PRO.SOM) coordenado pela Profa Dra. Sílvia Maria Guerra Anastácio da UFBA. Trabalho de professores e estudantes de iniciação científica de inglês e alemão e contou com parceria de professores e alunos da Escola de Teatro da UFBA.  Assim, foi produzido um livro impresso com um objeto digital, um audiolivro, com leitura dramatizada; e outra em versão MECDaisy, com uma leitura branca  para pessoas com deficiência visual.

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