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Quem pode dizer o que é erotismo e pornografia?

Imagem do livro em quadrinhos "Vingadores, a Cruzada das Crianças" que está sendo comercializado na Bienal Internacional do Livro do Rio e que sofreu tentativa de censura por parte do prefeito Marcello Crivella. Imagem: divulgação

É bizarro. Mas não é novidade. A história está aí para trazer a nossas vistas as recorrentes tentativas de interdição ou policiamento do desejo. Esta semana o Brasil se escandalizou com o vídeo do pastor neopentescontal e prefeito do Rio de Janeiro no qual informava que fiscais da prefeitura visitariam a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro para recolher todos os livros que, por serem considerados pornográficos, deveriam estar lacrados com saco preto com advertência do conteúdo proibido para menores, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A advertência se encerra com “é preciso proteger nossas crianças”.

Sabendo que coordeno um grupo de estudos na UFC que desenvolve pesquisas sobre erotismo e pornografia na história ocidental, com destaque para a literatura brasileira, tenho recebido perguntas de colegas, alunos e desconhecidos sobre a diferença entre erotismo e pornografia. Querem saber, ainda, o que pode ser considerado pornografia. Especificamente em relação à HQ da Marvel – Os vingadores: a cruzada das crianças – motivo da tentativa de censura pelo prefeito-pastor, perguntam por que o beijo entre dois homens é visto como obsceno e/ou pornográfico.

A questão é complexa, porque pensar sobre o sexo sempre foi uma forma de tentar controlar o que não se deixa prender nos domínios das leis, das crenças e dos governos. No entanto, essas três instâncias sociais, mais a ciência e a medicina, sempre buscaram apreender esse território perigoso que chamamos desejo, libido, prazer, pulsão e suas inúmeras formas de manifestação entre os homens, desde o afeto demonstrado num abraço ou num beijo até o ato sexual e seu alfabeto do prazer entre dois corpos, homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher, ou mesmo solitariamente, com a masturbação.

O problema é que apreender não significa necessariamente compreender. A história tem mostrado que o olhar ao que nos é desconhecido e nos move na direção do desejo tem sido uma forma de conhecer para controlar, não para libertar. Isso é o que, por exemplo, diz a obra de Foucault sobre a sexualidade. Ao contrário do senso comum, que repetiu por muito tempo a cantilena de que, desde a Idade Média, o corpo e o sexo foram instados ao silêncio, sofrendo uma feroz interdição, Foucault afirma que nunca se incitou tanto os homens a falarem sobre o sexo. Era uma verdadeira obsessão, seja por meio da confissão (um sacramento da igreja), seja através da medicina (as tentativas de tratar a histeria no século XIX), seja por meio do Estado e de seus mecanismos jurídicos (a elaboração de normas para definir o que é proibido ou não em matéria da sexualidade).

O homo sapiens, de que nos orgulhamos fazer parte (não me refiro ao homo argilorum, produto de um mito, reforçado por aqueles que se negam a pensar na hermenêutica das mitologias), é também homo sexualis que, contrariando a ideia de que biologicamente só podemos, como qualquer mamífero não humano, praticar o sexo em tempos de cio, com fins à procriação, dissemos não a essa natureza e inventamos a sexualidade, elaboramos uma cartilha do prazer, fizemos do sexo uma linguagem. Os humanos praticam o sexo no sentido mais amplo possível. Portanto, não me refiro à penetração de um pênis na vagina, essa ação tão binária, tão heteronormativa, tão culturamente compulsória.

Se não compreendemos que somos sexo da cabeça aos pés, que, do mais insignificante fio de cabelo à unha encravada do dedão do pé, tudo em nós respira sexualidade, (embora, como já disse Freud, não se saiba onde nasce e se esconde o desejo), se isso for uma constante negação em nós e naquelas instituições que nos congregam socialmente, estaremos fadados ao fracasso em qualquer atividade que nós propusermos a executar individual ou coletivamente falando.

O erótico e o pornográfico, duas instâncias de representações culturais do prazer, estão presentes em espaços onde jamais poderíamos supor. apenas tendo como recorte o Ocidente, O que nos dizem os corpos nus nas pinturas e esculturas em vários momentos da história da arte (com destaque para a representação do corpo feminino)? O que dizer das cenas famosas de amantes cantados e narrados na literatura, desde Ilíada, e suas representações nas artes visuais? Que imaginar quando fachadas de igrejas medievais europeias expõem vaginas e pênis disfarçados de calhas de recolhimento da água da chuva? Que pensar quando livros da Bíblia apresentam poemas e prosa de rara beleza sobre o desejo sexual e suas manifestações nos corpos dos amantes, inclusive homoafetos? Podemos dizer que toda essa cultura fartamente documentada é pura perversão? Não estaríamos falando de uma pedagogia do desejo, que nutre tudo o que temos enquanto cultura e molda o que nossa humanidade?

Mas ainda não disse o que compete ao erótico e o que é da alçada do pornográfico. Quem estuda o erotismo costuma ler e ouvir duas vertentes em relação a isso. A perspectiva tradicional faz questão de enfatizar a dualidade hierarquizante entre o erotismo (algo sempre elevado, que não apenas sugere, que não se expõe, implícito) e o pornográfico (algo rebaixado, da ordem do obsceno, que mostra tudo, explícito).

Imagem do livro em quadrinhos “Vingadores, a Cruzada das Crianças” que está sendo comercializado na Bienal Internacional do Livro do Rio e que sofreu tentativa de censura por parte do prefeito Marcello Crivella. Imagem: divulgação

Assim, por ser algo elevado, inclusive tendo em seu conceito o radical da mitologia grega, o deus Eros, o erotismo pode ser adequado a figurar nas páginas dos livros, nas pedras esculpidas e expostas em casas ou museus, nas telas da pintura, na fotografia e no cinema. Já o pornográfico é relegado aos lugares fétidos do proibido, tanto que na sua etimologia leva o nome “porn”, que significa “puta”, como se as putas não tivessem seu valor social, afetivo e econômico nas culturas. Mas qual o lugar social delas? E no que uma mulher puta difere de uma mulher casadoura? Inúmeras perguntas, que não cabem aqui agora.

Acontece que o termo pornografia e suas variantes é bem recente, tem aí por volta de 500 anos. A historiadora Lynn Hunt, em A invenção da pornografia (1999), situa a elaboração desse conceito entre 1500 1800, ou seja, trata-se de um conceito moderno, nascendo justamente “em resposta à ameaça de democratização da cultura” (1999, p.12), ou seja, quando se popularizou o livro, com o advento da reprodução tipográfica, foi preciso que se dissesse o que era permitido e o que era proibido ler: “A pornografia começou a aparecer como gênero distinto de representação quando a cultura impressa possibilitou às massas a obtenção de escritos e ilustrações” (HUNT, 1999, p.13). E logo se criam os infernos na biblioteca, espaços para onde os livros obscenos eram destinados, onde não saiam para a leitura do público comum (dentre esses livros, encontravam-se inúmeras obras escritas por ou sob o tema da prostituição); surgiram também os museus secretos, espaços onde eram trancafiados os objetos considerados pornográficos.

Ou seja, a pornografia como conceito e palavra nasce para separa o joio do trigo, na acepção bíblica do que pode e o que não pode ser apresentado à sociedade. E, é claro, que “a história de sua regulamentação demonstra que os esforços empreendidos para controlar a pornografia contribuíram, em parte, para a sua definição” (HUNT, 1999, p. 12). Então, não se pode falar de erotismo e pornografia, sobretudo dessa última, sem pensar que não são palavras, mas conceitos historicamente maleáveis e inseridos nas políticas e moralidades do seu tempo. Estamos falando de leituras sobre a representação do desejo. Por exemplo, quando a sociedade atual fala do pornográfico, quase sempre está pensando na indústria e no comércio em torno do sexo que se proliferou com os cinemas, as TVs, as revistas com ensaios fotográficos de corpos nus e as fotonovelas com narrativas cuja finalidade é excitar o leitor ou espectador. Quem consome esses produtos está mesmo ciente da disputa dos termos erótico e pornográfico no campo político? Parece que não.

Voltando a Foucault, nunca como nos séculos XVIII e XIX, se falou e se estimulou a falar sobre o sexo na tentativa de se mapear os discursos sobre o desejo a fim de intervir, controlar e dirigir. É o sexo como uma instância de poder, portanto, um domínio a ser perseguido: “Mas o essencial é a multiplicação dos discurso sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado” (FOUCAULT, 2015, p. 20).

A questão que se coloca é: a quem interessa dizer o que é obsceno e pornográfico? Em nome de quem e do que se interpreta um beijo gay, por exemplo, como a representação de um ato obsceno? As legislações e os governos, sobretudo aqueles autoritários e fundamentalistas, sabem tirar proveito dos discursos sobre o desejo em benefício próprio. A pesquisadora e ativista feminista lésbica estadunidense, Gayle Rubin, em texto clássico sobre a política da sexualidade, escrito na década de 1980, é categórica ao afirmar que “O sexo é sempre político. Mas há também períodos históricos em que as discussões sobre a sexualidade são mais claramente controvertidas e mais abertamente politizadas. Nesses períodos, o domínio da vida erótica é com efeito renegociado” (RUBIN, 2017, p. 64).

Nessa direção vai o escritor estadunidense Gore Vidal, num famoso artigo intitulado “Sexo é política”, publicado inicialmente na Playboy americana, em 1979 e em de Fato e Ficção (1987), no qual fala de “botões quentes” usados por certos políticos para angariar o apoio das massas em determinados momentos; entre esses “botões”, estaria a repetição do “Salvem nossas crianças”, que o autor traduz para “abaixo as bichas”.

Parece que estamos vivendo em tempos como esses descritos por Rubin, e não resta outra saída a não ser elaborar estratégias de renegociação do que é da ordem do erótico, visto aqui como algo mais amplo, e não necessariamente o que é menos ou mais explícito. Em tempo autoritários, as legislações são usadas para legitimar ações interpretativas esdrúxulas como a do prefeito-pastor, que se utiliza do ECA para censurar uma obra, ao invés de se apropriar da mesma lei de proteção do menor e do adolescente para ajudar na educação no núcleo familiar, onde estão abusadores em potencial e onde se sabe que ocorrem estupros e feminicídios.

Gayle Rubin, no mesmo artigo afirma que, na sociedade americana da década de 1960, “comunidades eróticas cujas atividades não se enquadravam no sonho americano do pós-guerra sofreram forte perseguição. Os homossexuais foram, junto com os comunistas, objeto de uma caça às bruxas em todo o país” (RUBIN, 2015, p. 68). E uma das táticas que governos assim se utilizam para incitar uma “histeria erótica”, segundo Rubin, é a necessidade de se proteger e defender enfaticamente as crianças.

Ou seja, através do pânico se obtém adesão ao projeto de extermínio do diferente ou do que causa incômodo. Não foi exatamente isso o que ocorreu por essa época aqui no Brasil, quando os militares tomaram o poder, apoiados por civis, pela imprensa e por parte da igreja, justamente aquele segmento que dizia defender a moral e os bons costumes?!

A procura pelo tema do erotismo e da pornografia só tem aumentado. Recentemente, junto com meu grupo de Estudos da língua de Eros, do Departamento de Literatura e do programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada, ambos na UFC, oferecemos um curso sobre introdução ao erotismo na cultura e na literatura. Eram apenas 20 vagas, mas tivemos quase 60 inscrições. Sujeitos das mais variadas ambiências sociais e profissionais queriam ouvir e falar sobre erotismo e sexualidade, entre eles, alunos de Letras, professores, psicólogos, atores, jornalistas, donos de sex shopping, religiosos…

Montamos uma turma que representa justamente as múltiplas faces sociais do desejo, e os encontros prometem, sobretudo, desconstruir as velhas dicotomias e, com elas, as ideias preconcebidas sobre o que é ou não da ordem do erótico. Fora disso, uma busca rápida no Google sobre erotismo e pornografia, ou sobre interdição e transgressão, traz uma enxurrada de links, dos mais variados matizes, que vão desde vídeos e cena do mercado pornô, que agora migrou consideravelmente para a comunidade www, até as notícias da imprensa oficial e popular que cobrem as tentativas de cerceamento de exposição de trabalhos artísticos sobre as corporeidades, sobretudo as dissidentes (gays, lésbicas, travestis, transexuais, mulheres, negras…).

Ou seja, não se trata apenas de tentar interditar o desejo e suas representações, mas é, sobretudo, a necessidade de impor uma determinada visão sobre o que deve ser aceito em matéria de desejo. E é claro que o que deve ser aceito por esses censores da moralidade é a ideia binária da sexualidade, heteronormativa, especificamente aquele modelo centrado numa hierarquia, que reconhece o lugar do homem sempre acima da mulher, inclusive na cama.

As masculinidades tóxicas se disfarçam às vezes. Podem vir disfarçadas de pastores, de padres, de professores, de cientistas, de advogados… É preciso estar atentos aos que usam as batas da profissão para disseminar seus preconceitos, suas homofobias, lesbofobias, transfobias, Lgbtqfobia, misoginia, racismo, xenofobia, enfim, tudo aquilo que torna a humanidade um pouco menos humana. Quem pode contra o desejo? Nem eu, nem você, nem a igreja, nem tampouco o Estado. Mas é preciso estar muito atento: onde há tentativa de cerceamento do desejo alheio, há medo e não aceitação da diversidade. Daí que é melhor dizer o que é erótico e ter domínio sobre ele para, assim, continuar perpetrando o discurso vertical de dominação masculina.

Resta-nos entender e viver o erótico, valorizando a autodescoberta, mas sobretudo, é preciso retirar o erótico das instâncias do poder cerceador. Por isso, só pode ser louvável ações individuais ou coletivas que rapidamente tentam deslegitimar discursos preconceituosos como o do prefeito-pastor do Rio de Janeiro. Diante da ameça de censura à bienal, as editoras começaram a publicar nas suas redes fotos da bandeira LGBT junto com textos de repúdio ao governo municipal do Rio. E, o mais notável, exemplo de contradiscurso, pelo alcance que tem e pela grandeza da ação, o youtuber Felipe Neto se utilizar da influência nas redes para comprar todos os livros de temática LGBT da bienal (cerca de 15 mil volumes) e oferecer de graça numa ação que é uma perfeita performance política.

Em síntese, o beijo na HQ dos Vingadores é problema não por ser obsceno, mas por ser a legítima representação de afeto entre dois homens adultos. A caça às bruxas, nesse caso, se resume na tentativa de interdição da homoafetividade pura e simples. Diante disso, impõe convocar  cristãos – católicos e evangélicos – que não compactuam com o patriarcalismo falocêntrico disfarçado de pastores e presidentes orarem a seguinte litania: “De Crivellas e Bolsonaros, libera nos Domine!”.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

HUNT, Lynn. A invenção da pornografia: obscenidade e invenção da modernidade. São Paulo: Hedra, 1999.

RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

VIDAL, Gore. “Sexo é política”. In: De fato e ficção: ensaios contra a corrente. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 227-250.

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