Mas que massa formidável é esta de livros! Aqueles que os escreveram, os disseminaram, pela força do trabalho e da dor, numa única certeza: não perecerem totalmente, não serem esquecidos, estarem ali presentes, corpo e alma, no juízo final. Agora, diante desta multidão de fantasmas voejando acima, e com asas de papel, quem sobreviverá, quem merece sobreviver? Quem será achado digno de se sentar à destra do Senhor, e quem será condenado, destinado ao fogo?
Os livros armazenados nessas galerias funerárias são quase todos caixões vazios. Quantos suplicantes no vale de Josafá![1] Quantos livros condenados que, no entanto, não querem morrer! Abra um catálogo, uma bibliografia e explore essas listas de funerais. Quantos romances, contos, peças, coleções de poemas, dissertações teológicas, folhetos, contos, resumos, epítomes, manuais, brochuras de uma página, enciclopédias em uma centena de volumes, que sem dúvida tiveram seu momento de utilidade e de glória, e que estão destinados a nunca mais se abrir!
Por outro lado, quantos livros excelentes pereceram! A maioria das belas “edições originais”, mesmo as que foram publicadas recentemente– os “românticos” – são “ilocalizáveis”. Le Cid[2] e O Misantropo[3] não são encontrados. Resta apenas o “primeiro tomo” dos Pensées de Pascal Quem decidirá o destino dos livros? Quem eliminará e quem salvará outros? Quem fará a primeira escolha? Quem dirá: estes são os eleitos e estes os réprobos? Sem dúvida, esta missão é precisamente a do bibliófilo: é a sua função própria. Para isso ele nasceu. Ele será o juiz.
Missão que é vocação. O bibliófilo é um convocado, é um destinado. Diz-se do famoso bibliófilo Barbier,[4] que foi bibliotecário de Napoleão, que essa aptidão era evidente nele desde a faculdade: Antigo companheiro do senhor Barbier, disse MLV Raoul, “vi o nascimento nele desse gosto por pesquisa bibliográfica que, desde então, não o deixou, e ainda me lembro da época em que, todas as noites, ele voltava para a faculdade com o que chamávamos de livro…” – Ele se dirigia, disse outro de seus camaradas, às livrarias e livreiros, às bibliotecas públicas e até privadas, às vendas de livros, para fazer algumas descobertas, sejam em obras raras, sejam nas conversas com amadores que conheceu… Se alguns de seus colegas desejavam uma obra, era para ele que se dirigiam com confiança, e ele ficava feliz em desenterrá-lo para eles.
Esta complacência ele teve até mesmo para com alguns miseráveis revendedores de livros em barracas ou cestas, os quais ele iniciou no sigilo de sua profissão e que, aproveitando de suas lições, adquiriram conhecimentos nas livrarias e ampliaram gradualmente seu pequeno comércio, deixando todos surpresos ao encontrar livreiros em lojas. Suas relações não se limitavam aos seus protegidos; ele as estendia aos melhores livreiros da capital, que não se ruborizavam em consultá-lo com frequência. Assim ele foi um prelúdio para a pesquisa acadêmica com a qual desde então enriqueceu a bibliografia.
Vemos aqui, desde a juventude e quase desde a infância, este ardor inquieto, mas também esta bondade, esta camaradagem que aproxima e une o mundo inteiro dos amigos dos livros, que lhes dá uma vida comum, uma linguagem comum, mesmos tiques, as mesmas sobrancelhas suspeitas e estudiosas. O gênio do bibliófilo é um gênio apaixonado que abarca o homem inteiro.
[1] Em virtude de eventos ocorridos durante o reinado de Jeosafá, de Judá, o vale da torrente do Cédron passou a ser profeticamente intitulado de Vale de Jeosafá (em hebraico: עמק יהושפט), que significa “O vale onde Deus julgará (Joel 3:12). Segundo as profecias, na guerra de Gog e Magog as nações pagãs se uniriam, subjugando Israel. Contudo, Deus salvaria Israel e lutaria “com doenças, chuva, fogo e pedras” contra todas as nações que confabularam para destruir o seu povo escolhido.
[2] Peça de teatro tragicômica em versos (alexandrinos, em especial) de Pierre Corneille (1606-1684), cuja primeira representação ocorreu em 7 de janeiro de 1637, no Teatro do Marais. É uma das obras literárias mais conhecidas da cultura francesa.
[3] Em francês, Le misanthrope, é uma comédia de costumes escrita pelo dramaturgo Molière (1622-1673). Criada em 1666, é uma paródia de um personagem de princípios rígidos que não considera ninguém digno de comparar-se com ele e sua verdadeira natureza.
[4] Antoine Alexandre Barbier (1765-1825) foi um bibliotecário francês. Embora tenha sido ordenado padre, obteve licença das ordens sacerdotais, em 1801. Mesmo antes, foi encarregado de distribuir entre as diversas bibliotecas de Paris os livros que haviam sido confiscados durante a Revolução Francesa, tendo descoberto obras preciosas. Em seguida foi bibliotecário do Diretório Francês, no Conseil d’État. Em 1807, Napoleão Bonaparte o designou como bibliotecário. Colaborou com a elaboração da Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, uma das primeiras enciclopédias do mundo. Participou a fundação das bibliotecas do Louvre, de Fontainebleau, de Compiègne e Saint-Cloud, e no reinado de Luís XVIII, tornou-se administrador das bibliotecas particulares do rei. Entretanto, em 1822, foi privado de todos os seus cargos, morrendo em Paris, aos 60 anos.
*Tradução do original “Bibliophiles” (Paris: F. Ferroud, 1924), de Gabriel Hanotaux (1853-1944), por Cristian Brayner. Hanotaux (1853-1944) foi um diplomata, historiador e político francês. Estudou na École Nationale des Chartes, e pelo desinteresse de se tornar arquivista, se tornou mestre de conferência na École pratique des hautes études. En 1879 ingressou como secretário no Ministério de Assuntos Exteriores, fazendo carreira no serviço diplomático.Em 1886 foi eleito deputado, mas ao ser derrotado em 1889, retornou à carreira diplomática, sendo nomeado, cinco anos depois, como Ministro de Assuntos Exteriores.Foi o delegado da França na Sociedade das Nações, onde participou das quatro primeiras assembleias gerais. Foi o único que se opôs a admitir o esperanto como língua de trabalho na Sociedade das Nações por considerar que já existia una língua franca: o francês.Aos 43 anos de idade tornou-se membro da Academia Francesa.
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