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Quais oportunidades a Lei Aldir Blanc pode trazer às bibliotecas?

Atividade cultural na Biblioteca do Complexo Cidadão Centro, no Amapá. Foto: divulgação

No fechar de junho foi publicada a “Lei Aldir Blanc” (Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020), que trata das ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Essa lei prevê que a União irá destinar três bilhões de reais aos estados, o Distrito Federal e municípios para que eles apliquem de três formas:

1) No primeiro a renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura será no valor de 600,00 (seiscentos reais), sendo que a mulher chefe de família recebe duas cotas. Para receber a renda emergencial, as trabalhadoras e trabalhadores da cultura devem comprovar de forma documental ou autodeclaratória que atuam social ou profissionalmente nas áreas artísticas e cultural nos 24 meses anteriores à publicação da lei, assim como estar inscritos em cadastros de fundos de cultura.

Nesse primeiro requisito é importante que as bibliotecas fiquem atentas aos pedidos de comprovantes ou declarações de atividades realizadas nas bibliotecas como, por exemplo, um contador de histórias, um poeta, uma atriz, um grupo de capoeira que realizaram ações de dinamização dos produtos e serviços ali oferecidos. São também requisitos não ter emprego formal ativo, não terem recebido o auxílio emergencial, não serem titulares de benefício previdenciário, assistencial, seguro desemprego e programa de transferência de renda, salvo o Bolsa Família.

Assim como ter renda familiar mensal de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal total de até três salários mínimos, e não terem recebido em 2018 rendimentos tributáveis acima de  R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos). Essa renda dividida por 12 seria de R$ 2.379,97 por mês. Considerando que o salário mínimo em 2020 é de R$ 1.045,00, seria como se o trabalhador recebesse um pouco mais que dois salários mínimos por mês.

Dessa forma o Estado reconhece que os trabalhadores da cultura percebem uma baixa renda anual e de outro lado não oferta recursos para fazer frente a manutenção de equipamentos, materiais e outros recursos que são utilizados pelo trabalhador para exercer seu ofício. O valor de R$ 600,00 é insuficiente para pagar aluguel, gás, alimentação, luz, água, IPTU, IPVA, e manutenção dos equipamentos.

2) No segundo o subsídio mensal se destina à manutenção de espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social. Este subsídio tem valor mínimo de R$ 3.000,00 (três mil reais) e máximo de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Essa linha de renda emergencial é destinada a espaços culturais e artísticos, microempresas e pequenas empresas culturais, organizações culturais comunitárias, cooperativas e instituições culturais com atividades interrompidas, que devem comprovar sua inscrição e a respectiva homologação em, pelo menos, um dos cadastros de financiamento da cultura. Essa renda tem prazo para prestação de contas, que é de 120 dias após o recebimento da última parcela.

E ela é uma renda emergencial que tem contrapartida determinada pelo Estado, porque quem a receber fica obrigado a garantir, após o reinício de suas atividades, a realização de atividades destinadas, prioritariamente, aos alunos de escolas públicas ou de atividades em espaços públicos de sua comunidade, de forma gratuita, em intervalos regulares, em cooperação e planejamento definido com o ente federativo responsável pela gestão pública de cultura do local.

Esse subsídio é o famoso “se vira”, porque a conta não fecha, o recurso é insuficiente para manter um espaço artístico e ainda fazer reservas para executar projetos gratuitos no reinício das atividades e também coloca uma responsabilidade que não se tem como garantir. É preciso lembrar que estamos em uma pandemia e é impossível determinar que uma pessoa estará viva para cumprir tal contraprestação.

Se a pessoa que buscou o subsídio falecer a obrigação de cumprir a contraprestação pode recair sobre os herdeiros sobreviventes retivimizando-os, o que pode deixar muitos ressabiados de buscar o auxílio com receio de não poder se comprometer a cumprir a contraprestação ou de que na sua falta (por exemplo, pela morte e sequelas da covid-19) outras pessoas possam ser responsabilizadas a realizá-la.

Outra questão sobre a contraprestação é que mesmo recebendo o subsídio pode acontecer o encerramento das atividades do espaço cultural, por motivo de falecimento de membros, por mudança de carreira, por migração de membros e, novamente, o que seria para auxiliar o setor cultural pode ser um peso sobre os trabalhadores da cultura. Esse inciso também incide sobre as áreas do livro, literatura e bibliotecas ao considerar como espaço cultural pontos e pontões de cultura, centros culturais, casas de cultura e centros de tradição regionais,  bibliotecas comunitárias,  livrarias, editoras e sebos e  espaços de literatura, poesia e literatura de cordel.

3) Os recursos também poder ser destinados a editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos destinados à manutenção de agentes, de espaços, de iniciativas, de cursos, de produções, de desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária, de produções audiovisuais, de manifestações culturais, bem como à realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais.

A Lei Aldir Blanc é um passo importante no enfrentamento aos efeitos da pandemia de covid-19 no setor cultural, no entanto ela tem em aberto essas questões que destacamos para contextualizar a ação estatal. Em outro texto também publicado pela Biblioo discutimos sobre a concentração de livrarias em shoppings que conduziu ao consumo de livros via internet e também à fragilidade das atividades de editoras, sebos e livrarias independentes conduzindo também à concentração de mercado virtual.

Nesse sentido, esse processo legislativo que resultou na aprovação e sanção da lei também nos aponta para a necessidade de acompanhamento das propostas legislativas que se referem ou atingem às áreas do livro, da literatura, da leitura e das bibliotecas.

Planejamento de advocacy

Coachs que são na maioria das vezes brancos, cisgênero e heterossexuais têm feito vídeos no Youtube abordando as oportunidades trazidas pela pandemia de covid-19. Apesar dos diversos equívocos nas suas abordagens, elas nos trazem alertas relevantes. A primeira é a de que pandemia do coronavírus abre uma janela de oportunidade para as bibliotecas escolares, no sentido de que muitos estudantes de escolas particulares terão que migrar para a escola pública e seus responsáveis legais provavelmente irão exigir maior qualidade da educação. Assim como também os estudantes que voltarão para o espaço escolar podem querer utilizar mais o espaço físico e ter uma educação de maior qualidade.

Com o apoio da comunidade escolar e buscando apoio nos poderes do Estado, principalmente o Legislativo e o Executivo, pode-se aproveitar essa janela de oportunidade e união que podem ser desencadeados com a volta às aulas no pós pandemia. Com a comunidade motivada em volta da infraestrutura educacional, podemos conduzir um processo de advocacy em torno da área do livro, leitura, literatura e bibliotecas. Dessa forma, fizemos o compilado das legislações e projetos em tramitação de relevância para a área do livro, literatura e bibliotecas.

Todos esses dados são preliminares, portanto para serem usados em um trabalho de advocacy precisam ser qualificados. Devem ser analisados com cuidado o conteúdo proposto, além dos partidos e os parlamentares envolvidos. A informação qualificada pode assim ser insumo para ações em defesa de bibliotecas. No levantamento é possível observar que as bibliotecas estão incluídas nas indicações parlamentares de reformas de escolas. Assim, se conectadas ao monitoramento do Plano Nacional de Educação (PNE), pode-se desenvolver ações para melhoria e construção de bibliotecas, atuando, dessa forma, para o alcance da universalização da biblioteca escolar.

A avaliação qualitativa dos dados também precisa ser acompanhada de uma crítica dos mecanismos externos às casas legislativas que conduzem a uma maior ou menor apresentação de projetos que se relacionam às temáticas da biblioteconomia. Realizando o benchmarking é possível analisar os fatores que são decisivos e críticos para que as proposições existam e sejam efetivas.

Também é importante conhecer os mecanismos de participação social disponíveis no território que podem propiciar o controle social sobre atos que implicam na biblioteconomia. Os conselhos de cultura, sindicatos da área cultural, coletivos da cultura e associações podem ser aliados para a proposição e aplicação de legislações que sejam de importância para a área do livro, leitura, literatura e bibliotecas, bem como a cultura em geral. Essas instâncias colegiadas são importantes para o controle social e as pessoas bibliotecárias devem ficar atentas para verificar se a atuação abrange essas áreas e se for compatível com as aspirações pessoais, participar oficialmente desses órgãos.

Saliento que no âmbito federal diversos colegiados de controle social foram dissolvidos pelo arbítrio do governo atual, mas muito destes já estavam esvaziados desde o golpe de 2016. Outros colegiados de controle social que não são direcionados à cultura podem ser aliados para temáticas da informação como, por exemplo, os da saúde, assistência social, justiça e meio ambiente. Esses colegiados podem ter propostas e ações voltadas para a informação que devem ser de conhecimento das pessoas bibliotecárias e dos defensores das pautas.

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